Por Alex Regis, do Nusec/UFAM
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Depois de ler algumas notícias sobre o complexo hidrelétrico Tapajós e ver um vídeo (Tapajós vivo e livre) sobre os mundurukus escrevi essas breves e caóticas linhas reflexivas.
Os fundamentos da desigualdade dos territórios e povos eram de início, “naturalizados” em função do “clima quente”, das “gentes frias” e de “animais frágeis” e “homens degenerados”. À luz desse pensamento, qualquer forma de intervenção sobre povos e culturas não ocidentais seria aceitável. (Freitas 2009: 21).
São os desdobramentos dessa perspectiva em curso, agora manejadas e legitimadas pelo estado nacional que atualiza processos de intervenção na Amazônia sob a égide do discurso neodesenvolvimentista. A Amazônia sob esse prisma é percebida como “reserva estratégica”, como “frente” de expansão econômica, “vazio” demográfico, válvula de escape para os impasses do crescimento econômico, aliás, o desenvolvimento tem sido cada vez mais reduzido a mero crescimento econômico traduzido em um economicismo empobrecedor onde o que importa é superávit externo, as exportações, as commodities, o balanço de pagamentos favorável, bem enquadrados na dinâmica de valorização do capital. Os mundurukus do oeste do Pará já sofrem os efeitos dessa “intervenção”: São Luiz do Tapájos é o espaço onde o rolo compressor do neodesenvolvimentismo quer instalar a primeira de um conjunto de hidrelétricas ao longo do rio Tapajós.
Eis mais um momento de “integração” de espaços e populações – distantes da civilização e próximas à natureza – ao Estado nacional. Lucia Lippu comenta que o mito do “gigante pela própria natureza” tem sido a mais forte matriz para interpretar o Brasil (Oliveira 2011: 123). Diria também que tem sido o mito mais forte para eliminar diversidades e diferenças ao mesmo tempo que busca ativamente “esquecer” as contradições e genocídios que se apresentam como “natureza” a ser “trabalhada” para o desenvolvimento nacional. Eliminar a diversidade soa como derrubar uma árvore que impede a passagem do “progresso” materializado em uma estrada.
Desta maneira o estado brasileiro hoje recupera um padrão, que segundo Oliveira (2011: 127) era praticado no século 19e 20: “ser civilizado, ser desenvolvido, significava que a civilização deveria vencer a natureza.” Vencendo ou mesmo tentando preservar a natureza, fato é que a construção da identidade nacional ancora-se para o bem ou para o mal numa relação tensa e contraditória com um patrimônio que antes de ser natural é social e cultural. Não, Amazônia nunca foi um vazio em nenhum sentido! Como bem registra Marilene Corrêa:
A Amazônia Indígena que antecede a Amazônia Lusitana não tem equivalente na cultura europeia. É produto do desenvolvimento independente dos povos que ocuparam a Região Norte, num período de pelo menos três mil anos, antes da colonização. As distintas interpretações de arqueólogos, linguistas, antropólogos, encontram, hoje, um ponto comum sobre os seus modos de existência e a efetiva adaptação ao meio ambiente pelos seus habitantes: a densidade populacional, a fartura de alimentos, a extensão de seus domínios pelas várzeas e terras firmes, e as formas não predatórias de relação com a natureza. (Freitas 2009: 15)
Contudo, atualmente, o neodesenvolvimentismo atualiza uma imagem construída sobre a Amazônia que vem sendo forjada há centenas de anos. O intuito é basicamente convertê-la em espaço para reprodução ampliada do capital. Como sugere Marilene Corrêa, a colonização e o desenvolvimento do capitalismo no contexto amazônico “criaram os problemas regionais, o subdesenvolvimento econômico e sociocultural, inventou a pobreza e a dependência, além de e instituíram a desigualdade estrutural e federativa, de classes e povos.” (Freitas 2009: 22).
Os processos sociais, políticos e culturais operados pelos projetos de conquista, colonização e desenvolvimento do capitalismo deixaram “uma dívida incalculável ao patrimônio físico e sociocultural de seus povos e territórios”. Muitas foram as tentativas de modernização da Amazônia cujo resultado, se não foi desastroso, foi no mínimo duvidoso quanto aos supostos resultados positivos. Plano de Desenvolvimento Nacional, Plano de Desenvolvimento da Amazônia, Serviço de Proteção ao Índio, Projeto Sivam, Sipam, Calha Norte, rodovias, complexos hidrelétricos, Programa de Pólos Agropecuários e Minerais da Amazônia e PPG-7 são alguns dos projetos ou programas que talvez os mundurukus nunca tenham ouvido falar e tampouco trará a eles qualquer vantagem essas iniciativas. Nenhuma corrobora com sua reprodução material e imaterial enquanto população indígena.
O fato é que as históricas formas de adaptação humana foram substituídas, em sucessivos “ciclos econômicos”, por políticas públicas nacionais inadequadas, precárias e fracassadas; por modelos desprovidos de desconhecimento sobre as realidades regionais; pela negação das populações tradicionais índias e caboclas e de suas formas de ocupabilidade; pelo caráter interventivo da criação de suas fronteiras físicas e políticas; pelos equivocados planejamentos à distância, enfim, por modos brutais de destruição da biodiversidade e da sociodiversidade amazônica. Esta tragédia deixou de ser silenciosa há alguns anos, mais por contingências internas e externas do que por decisões da sociedade civil nacional. (Freitas 2009: 22)
Benchimol (1979: 3-4), referindo-se a dinâmicas pretéritas de aniquilamento do patrimônio cultural indígena, argumenta que a herança indígena (cultura, visão de mundo, visão de Amazônia mais justa), depois de desprezada pelos “conquistadores d’armas”, fora substituída por estudos e imagens (modernas) que concebem a “Amazônia mais em termos de grandeza,” visualizando-a “em sua enormidade, sem pensar, ou pensando pouco, na sua fragilidade.” E mais, essas investidas interpretativas, em geral “bastante fracionadas e segmentadas”, não possuem “no sentido continental, os graus exigíveis de conexão, correlação e interdependência necessários ao estudo sistematizado do fascinante universo”. Terminam por rejeitar “a dúvida, a incerteza; prefere-se dar grandes saltos no desconhecido, perdendo-se o senso de distinção entre o verdadeiro e o falso, entre o fato e a ficção, entre a realidade e a fantasia”.
Esse último registro possui vital importância e significado no atual contexto regional, nacional e mundial, pois o que se observa é que apesar de novas teorias, discursos e práticas que se fundamentam por propostas alternativas de desenvolvimento regional (sustentável, integral, territorial, local etc.) ainda há limites notáveis para alcançarem êxito, especialmente porque colocam em xeque propostas tradicionais de se conceber o desenvolvimento, simplesmente negando ou suprimindo-as como formas ou vestígios arcaicos e primitivos de se viver e produzir. Esquecem ou preferem não considerar que as formas de vida e trabalho das múltiplas populações e etnias da região possuem mitos, crenças e uma cosmovisão sofisticada sobre o funcionamento do mundo, da natureza e da vida, onde o existir não é visto apenas sob o prisma econômico.
Ao que tudo indica, as formas contemporâneas e predominantes de se pensar, conceber e projetar ações, mecanismos, programas e projetos para Amazônia ainda se ancoram no modelo hegemônico e ocidental de conceber o desenvolvimento: aquele orientado para o crescimento econômico e para dinamização econômica a qualquer custo tendo em vista elevar taxas e estatísticas do PIB; um desenvolvimento que historicamente se caracteriza não pelo diálogo e respeito pela temporalidade das populações, mas por práticas de genocídio e epistemicídio. Modelo que historicamente evidenciou seu esgotamento pelo conjunto de crises que tem acarretado, pelas consequências ecológicas geradas pelos padrões de justiça alcançados, pelas desigualdades, pela subordinação da tecnologia para fins de competitividade e acumulação.
Poderíamos dizer que, para além das dificuldades reais que bloqueiam um desenvolvimento mais qualificado para as populações amazônicas, é importante registrar a invenção ativa de imagens, ideias e representações da região que lhes conceberam como subdesenvolvida, atrasada, inculta e polo negativo das díades. Em outras palavras, nosso subdesenvolvimento se, de um lado, foi e continua sendo resultado histórico de políticas, programas e ações internas ou externas, por outro lado, é tributário de uma construção ideológica assentada nos pressupostos da “máquina antropológica do ocidente”, que não apenas aniquilou povos, práticas e saberes, como os classificou em uma ordem hierárquica de um suposto processo civilizador no qual os países Europeus estavam na dianteira e representariam o estado mais elevado de progresso da humanidade, sugerindo que o “outro” (todos os demais povos) devesse guiar-se pela caminhada desses países em uma perspectiva evolutiva de cariz linear. Foi no afã de realizar esse trajeto esquemático e ideologicamente orientado rumo ao progresso – depois substituído pela noção de desenvolvimento – que muitos povos, culturas e civilizações se diminuíram ativa ou passivamente, subordinando-se cultural e politicamente a uma monocultura de produção e civilização, afinal, os termos de comparação (ciência é técnica, por exemplo) naturalizados como representantes indubitáveis do suposto desenvolvimento de um povo sempre lhes lembravam seu lugar na inventiva escala da evolução humana.
Agora, nos perguntamos: em que medida a construção dessa imagem (apresentada no início do texto) ou representação sobre Amazônia serve para explicar ou revelar sobre aqueles que erigiram ou inventaram essa arquitetura imaginária? Em que medida os contrapontos de atrasado, selvagem, pré-civilizado, vazio, inculto, primitivo, arcaico, sertão revelam sobre os nomeadores? Como não deixar de perceber que todo processo de classificação é um processo de dominação? Dos idos do ‘descobrimento’, passando pela colônia, império, república, regime militar até chegar ao período supostamente democrático, as Amazônias são destituídas de suas potencialidades criadoras via classificações, ou melhor, violências simbólicas que lhes capturam sua resistência através de processos de dominação política e expropriação econômica por parte de agentes internos e externos.
Mas nem tudo é derrotismo ou fatalismo: a Amazônia já foi periferia, inventada como periferia. No século 21 ela explode potentíssima como centro do mundo; o centro habita nas suas entranhas, e como registra Marilene Corrêa (2011) e Giuseppe Cocco (2009), a crise da relação entre o centro e a periferia acena para superação em potencial, das dimensões hierárquicas e deterministas que condicionam o habitar da Amazônia no mundo — e aqui me refiro aos “ismos” que capturam suas energias insurgentes, colonialismo, neocolonialismo, imperialismo, neoliberalismo. Esperamos que essa superação ganhe contornos decisivos nas atuais lutas e resistências dos povos indígenas, como os mundurukus, que atualmente desafiam representações, conceitos e práticas podres que o atual neodesenvolvimentismo busca ainda dar vida. Que sua luta, nossa luta, seja um momento fundamental para crítica e deslocamento do atual modelo de desenvolvimento (linear e progressivo) para outras formas alternativas de desenvolvimento onde o “bem viver” e o usufruto sustentável dos recursos naturais seja o fim a ser alcançado e não o empecilho a ser retirado.
Espera-se que os resultados desse embate represente um momento de qualificação do devir-Brasil, pois o devir-Amazônia coloca para aquele a seguinte questão: a proteção da natureza e os direitos dos povos indígenas são questões de democracia, da relação que vincula a produção à luta, à democracia.
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Alex Regis participa do Núcleo de Socioeconomia (NUSEC) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Foto: Rachel Gepp (Nov/2014).
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Referências
COCCO, Giuseppe. Mundobraz: O devir-mundo do brasil e o Devir-Brasil do mundo. Editora Record, RJ,2009
BENCHIMOL,Samuel. Uma Oikopolítica para Amazônia. Manaus, 1979.106 pg. Edição xerografada.
OLIVEIRA, Lucia Lippi. Natureza e identidade: o caso brasileiro. Desigualdade & Diversidade – Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio, nº 9 ago/dez, 2011, pp. 123-134
FREITAS, Marilene Corrêa da Silva. As metamorfoses da Amazônia, Manaus, Ed. da Ufam, 2000
____. Os amazônidas contam sua história: Território, povos e populações. 2009