Por Hugo Albuquerque, Universidade Nômade e O Descurvo
Palestra na Casa de Rui Barbosa, 6 de setembro de 2012.
Uma classe sem nome ascende, de modo selvagem, deixando o debate político brasileiro em chamas. E dizemos que ela é sem nome justamente por ter tantos, por haver tanta insistência no fato de que ela precisa ter um: classe c, nova classe média, subproletariado, consumitariado, proletariado endinheirado, batalhadores e tantos outros possíveis e imagináveis. Mas ela assume a todos e, assim, os recusa plenamente, pondo em sobrecarga a máquina paranoica de identificação. E dizemos que esta classe ascende de modo selvagem no sentido antagônico a civilizado em sua acepção moderna: se o moderno nos diz, à moda de Kant, que devemos agir, apenas e tão somente, reproduzindo condutas que possam ser universalizáveis na convivência, no Brasil, isto se cristalizou no seguinte mandamento: aja sabendo qual o seu lugar.
Se mesmo os universais, enquanto abstrações ideais, ganham sempre um modo prático, é precisamente este o que a materialidade das relações sociais lhe deu por aqui: saber onde fica a Senzala e a Casa Grande e ter em mente, de forma clara, a qual deses dois mundos (afinal, são apenas dimensões do mesmo), você pertence. A classe sem nome ascende, pois, pela suspensão dessa lei universal, demonstrando que o rei está nu, que a lei gira no vazio — já que uma vez criação humana, ela pode ser suspensa pelo desejo, pela vontade de potência: ela faz tumulto, indo para espaços que não são seus por direito [mas passam a ser de fato]; se ela orkutizou o Orkut, agora, ela orkutiza a vida, os aeroportos e o próprio Facebook.
O fato dessa classe ter tanto nomes e, no fim das contas, não ter nenhum alude ao ponto-chave desta conversa: a importância do nome como forma de controle e domínio, uma vez que só pode ser submetido a uma ordem aquilo que, antes de mais nada, tem um nome próprio que permita a boca que ordena circunscrever, previamente, sua capacidade de agir — e, acrescentamos, só não sucumbe à máquina paranoica de identificação aquilo que detém uma potência imensa e é capaz de a efetuar; e por imenso entendemos, à moda de Spinoza, não aquilo que é muito grande [sentido metafórico], mas aquilo que escapa à regra das leis da métrica [sentido literal]; o imenso é uma exceção à medida, é aquilo que não é sintetizável pela máquina de medir (que é a mesma de identificar, afinal), o que, neste presente debate, se expressa como uma exceção à lei universal da identificação, declarada pela virtuosidade do devir de uma classe. Trata-se de uma exceção, no campo social, como é o movimento Anonymous na Internet.
O esforço científico, objetivo e [supostamente] desinteressado no que toca à atribuição de um nome à essa classe se refere à necessidade de dar estatuto que permita, à maquina paranoica do poder, reduzir sua capacidade de ação real a uma capacidade de ação devida — e se a classe sem nome diz hoje que “bem, realmente não devemos, mas podemos”, espera-se que, assim, ela faça o inverso no porvir “até podemos, mas não devemos”, restando castrada e obediente como antes. O processo em questão é vendido ideologicamente como boa ciência, sob a chancela sempre conveniente da hermenêutica — não se atribuiria nada, não haveria criação de rótulos, mas apenas estaríamos a descrever a realidade tal como ela é, estaríamos desvelando-a. Trata-se, com efeito, de mais uma ilusão do transcendente.
Não que não possamos, nem deixemos, de nos referir a um nome quando precisemos enunciar um processo — mesmo quando consideramos que se trata de uma classe sem nome, estamos a fazê-lo de certa forma –, mas é preciso trazer isso para o plano da imanência: se o moderno é uma junção dos pensamentos helênico, romano e hebraico na forma da teologia-política, é verdade que há um hebraísmo importantíssimo nessa equação: Deus não tem, nem pode ter, nome, mas é ele quem atribui todos os nomes, iniciando uma escala hierárquica de nomeações; do mesmo modo que é sempre o pai que nomeia os filhos, portanto, o Pai Primeiro não poderia ter nome algum (não por um critério lógico, mas por tradição); eis aí o mitologema definitivo do exercício do poder no ocidente moderno, isto é, a vedação de nomear o Deus-Pai que, ao mesmo tempo é quem nomeia a todos.
O Estado, máquina teológico-política definitiva, dá ordens, e, no limite, existe uma palavra definitiva vinda dele que não é passível de controle, pois há uma ordem primeira [inquestionável] que sustenta o vazio de uma decisão; a máquina teológico-política é ordenante mas também inordenável — portanto, e antes de mais nada, nominante e inominável. É o inominável do nominante o vínculo secreto e perverso entre a norma hipotética fundamental de Kelsen e a decisão final de Schmitt — e é ele contra quem precisamos nos voltar; a classe sem nome o é uma vez selvagem e recusa nomes, mas se o tiver (nem que seja anônima), este não é o problema, a questão é que aquilo que tem necessidade de nomeá-la precisa vir à tona.
Quem dá um giro copernicano nesse sentido foi, novamente, o judeu Spinoza ao postular o anátema Deus ou Natureza: ele atribuiu um nome ao inominável e assim afirmou a imanência. Não há mais mistério, há problema. Uma vez tendo nome por uma heresia que vem novamente tirar o monopólio do fogo do Sagrado — e das variadas vestes que ele pode assumir — não há uma suprema irresponsabilidade e, por isso, Spinoza é adversário tanto do esclarecimento quanto do obscurantismo ao mesmo tempo — o velho polidor de lentes sabia que não é só o exagero de sombras que nos cega, mas também a demasia de luzes. Por isso, sob a ótica da filosofia derivada dessa iconoclastia, não precisamos cair em um vazio de anonimatos, em um sentido niilista; ao contrário, o anonimato é ele mesmo meio resistente, uma força da natureza enquanto derivação de uma potência imensa.
A tarefa que precisamos levar a cabo, contudo, é maior e positiva, pois implica em nomear o próprio mecanismo de nomear e, assim, descontrolarmos o próprio controle — como no direito à insolvência negriano pelo qual causaríamos a própria obrigação de desobrigar; nada de desligar o dispositivo, mas de constituir uma alternativa a ele, enunciando o processo de exploração da forma como outro judeu, Karl Marx fez, ao ousar dizer a palavra proibida: Capitalismo. Nem por isso, precisamos ter ansiedade de dizer um nome, construir um conceito estanque, um nome, não é esse, ao meu pensar, o nosso papel porque, pelos motivos expostos, não se trataria de uma tarefa libertadora, positiva, mas de uma forma tirânica, dispositiva. Enquanto o paranoico exige os nossos nomes, respondamos: meu nome é multidão, mas tu tens nome também.É claro que não será o nosso esforço, voluntário ou não, que fará a classe sem nome assumir algum rótulo. É sua potência imensa que decreta sua não sujeição ao regime do nome, é o imenso que determina sua capacidade única de produzir diferença: como a multidão, o tumulto ou a legião, se faz parte delas sendo eu e todo mundo ao mesmo tempo; nesses casos, o poder é capaz de recortar o evento, mas sua força de individuar seus fatores capitula à potência daqueles em produzir diferença enquanto partícipes dele — e, ao nosso, ver, ele individua vetando a diferença ou reduzindo-a à regra do semelhante pelo mecanismo da autorização; quando ocorre esse escape dessa lei, quando sua eficácia é frustrada, como no caso em questão, é a diferença em si mesma se afirmando.
Portanto, a classe sem nome possui também um paralelismo histórico com os sans culottes: a ausência de culotes daqueles revolucionários franceses era a metonímia para sua ausência de estatuto social, a monstruosidade de não pertencerem exatamente a nada tanto no Velho Regime quanto no (ainda nascente) Novo Regime — moderno e burguês –, o que os tornava potência revolucionária par excellence; e ambos são “sem” alguma coisa enquanto ausentes, mas ausente como diria Drummond em alguns de seus mais belos versos — que, aliás, servem de epitáfio ao mestre Guattari –, não há falta na ausência, a ausência é um estar em mim. A intensidade de não ter nome, de não ter aquilo que é essencial ao poder, é, no entanto, algo mais profundo. É sem no sentido de estar em mim ou, aqui, de estar em si, livre de assujeitamentos, que estamos tratando.
Para além da ontologia — ou melhor, de uma filosofia primeira — é preciso pensar pela política, que a precede histórica e logicamente: poderíamos dissertar à moda dos estatísticos, baseados em proposições molares — ou molarizantes — para demonstrar que o nível de emprego aumentou, o salário mínimo e a renda média do trabalhador idem — assim como a proporção da renda do trabalho na renda nacional –, que o Índice de Gini caiu acentuadamente — em um momento histórico no qual a tendência é precisamente inversa — assim como cresceu o acesso aos ganhos não-laborais por parte dos mais pobres, graças a programas como o Bolsa Família e os Pontos de Cultura. Mas nossa direção é outra. Todas essas mudanças poderiam, até em caráter mais radical, ter sido perfeitamente operadas dentro de uma rigidez e uma imobilidade simbólica: com cada um no seu lugar, marchando para a frente, mas é fato que nos anos Lula isso se deu dentro de um discurso que autorizava o pobre a desejar — é isso que está em jogo aqui, trata-se de uma preocupação com as colateralidades moleculares do processo. O discurso da Ordem e do Progresso e, depois, da esperança — “do Brasil, o País do Futuro” — caiu por terra pelo menos naquele instante, uma vez que poderíamos experimentar isto aqui-agora (embora ainda poluída pelo negativo de um certo esperançantismo, que reemergiu em Dilma).
É justamente por algo ter acontecido (e ainda, de certa forma, acontecer) que criticamos o governo Dilma, pois se Lula era muita coisa — e dentre elas, Dilma também –, Dilma é ela própria e nada mais. Seu objetivo é permitir, por meio da modernização, a continuidade do processo: que o tumulto se torne missa civil, ordenada e pacífica, com a classe sem nome destinada a tornar-se “classe média”, consolidando o “país de classe média”. Análises que dizem que Dilma, ou o Governo, desejam que o índio vire pobre, quando o correto seria o pobre virar índio, mais do que desconsiderar a potência da pobreza e confundir virar com devir — como pontua muito bem Bruno Cava — é ignorar o que o governo Dilma planeja: traduzir, de alguma forma, o imenso em mensurável e atribuir-lhe um rótulo, gerando, assim, um estatuto social (bastante tradicional, aliás), instituir o respectivo dispositivo; isso vale para a classe sem nome e para os índios. O projeto modernista em voga não quer índios ou pobres, ele quer, porque precisa, traduzir-lhes em classe média o que implica no seu sujeitamento ao regime de normalidade normalizante social — e, nesse sentido, ele precisa instituir um regime que faça com que nos tornemos o que devemos ser segundo a Lei do progresso e do futuro.
Aliás, quando dizemos classe sem nome, não nos referimos imediatamente à pobreza, embora sejam dois processos que andem lado a lado. Do mesmo modo que os sans-culottes não eram o mesmo que os artesões e camponeses franceses do final do século 18º, embora houvesse uma (óbvia) relação evidente entre eles; a classe sem nome é o próprio o devir-excedente dos pobres — incluso aí os proletarizados e os que escapam isso — e é ela quem tem afirmado no plano político — eleitoral ou extra-eleitoral –, na cultura e em outras instâncias o clamor por uma alternativa ao Brasil tradicional e à regra da classe média — seja do sujeito de classe média existente agora ou ao proje(c)to de nova classe média mirado por Dilma (e, também, de uma maneira ou outra, também pelos seus adversários, sejam liberais ou socialistas) . A classe sem nome, portanto, é um monstro como aqueles que se perfilam no claro-escuro do entretempo entre o velho mundo que morre e o novo que tarda a nascer — para citar aqui Gramsci lembrado por Bruno Cava. Enquanto monstro, essa classe é ambivalente, mas tal ambivalência se desfaz no fato de que, no fundo, ela, como qualquer monstro, apenas deseja ser amada, embora suas feições assustadoras não ajudem muito na empreitada: e o que vemos, hoje, no Brasil senão uma perseguição fantástica com tochas e arados contra essa classe sem nome, esse monstro feito dos retalhos possíveis — e como o PT, ele mesmo, se comporta como um Dr. Frankenstein extemporâneo (mas igualmente neurotizado), em desespero por ter autorizado essa criatura a desejar, quando poderia ter lhe dado uma vida meramente vegetativa, se era o caso de fazê-la viva.
Parte da esquerda brasileira, sobretudo aquela que flerta com variadas formas da ontologia negativa, está preocupada — a exemplo do filósofo uspiano Vladmir Safatle — em denunciar o monstro criado pelo Lulismo; afinal, aquilo que o Lulismo fez desejar contrariou as regras postas, as determinações eternas, o estatuto do controle do desejo tal como compreendido, mas também as regras que a esquerda brasileira estipulou para fazer a revolução; sua existência desejante– e mais do que isso, seu devir-desejante — contraria o estatuto da dialética Casa Grande/Senzala. Se seu próprio criador, a julgar pelos eventos recentes não sabe exatamente o que fazer com ele, imaginemos os outros, os sábios, os técnicos do desejo, os burocratas encastelados, os arautos da velha ordem e aqueles que sonham em caiar o Leviatã de Vermelho (ou quem sabe de Verde, para ser mais usual). Mas esse monstro existe e resiste e está exposto a quem estiver disposto a ir até ele, ama-lo — do mesmo modo que é capaz de confrontar muito bem, se provocado. O problema não está no fato de que o monstro não resista, ao contrário, é a própria intelectualidade de esquerda que prefere desistir, que são desistentes em contraste com a resistência própria ao monstro. Mas não há vácuo na política. Se muitos candidatos evangélicos estão bem cotados nas pesquisas eleitorais para as eleições municipais deste ano, a exemplo da boa votação que eles já tiveram para a Câmara dos Deputados Federais em 2010, é porque, antes de serem evangélicos, eles vão ao monstro, mesmo que seja para seduzi-lo.
Não à toa, o esquerdismo brasileiro atual, mesmo com os defeitos do PT, não consegue se impor, seja fora das urnas ou, especialmente, dentro delas. Há uma dificuldade de compreensão, por parte desses setores, de que é preciso se agenciar com esses pobres, com esses pobres que devêm-excedente, que suplantam hierarquias; não basta ser meramente simpática a eles, mas sim criar algum tipo de vínculo empático — que lhe permita se colocar na posição daqueles pelos quais essa esquerda, suposta ou realmente, advoga; é uma tarefa que demanda, antes de mais nada, saber que a posição dos pobres não é a dela, esquerda bem nutrida e educada, certamente muito mais confortável. Se falar em nome dos outros é uma das piores indignidades possíveis, como nos ensinou Michel Foucault, isso só é possível se, previamente, o monstro tiver um nome. Aí, voltamos ao ponto anterior e fundamental: é preciso embarcar no devir social anônimo dessa classe, nessa excedência e nesse estado de exceção à regra social brasileira — coisa que a (extrema)esquerda brasileira, sempre a espera da catástrofe, não fará, pois aí, imagina ela, esses pobres estarão famintos demais para serem “enganados” e seguirão, enfim, o messias da revolução. Como se a solução para a Casa Grande/Senzala fosse um furacão [fabuloso, transcendente] que destruísse ambas as edificações, deixando todos nós desprotegidos.
Tampouco deseja a direita brasileira excluir quem quer que seja do processo. O regime capitalista cognitivo não admite mais exclusões absolutas, não há lado de fora, uma vez que estamos sob a regra da subsunção real e, para completar, a nossa direita sempre foi vanguarda na retaguarda; por exemplo, ninguém nunca se esforçou tanto em colocar os pobres e os negros nas universidades públicas brasileiras quanto os nossos conservadores, mas sempre em uma condição de inferioridade: é claro, antes disso, é preciso construir uma repartição das funções dentro da Universidade, o estudante estuda, o professor professa e o funcionário funciona [como uma pecinha de uma engrenagem] — isto não mudou com Lula ou com Dilma, mas aqueles cujo destino era uma designação de trabalhar como funcionário mudou. Não é que a Casa Grande/Senzala tenha desaparecido, mas as coisas saíram do lugar, ainda mais agora com as cotas de 50% na educação superior federal. Mas a direita, além de criar essa repartição garantia a rigidez em que iria fazer o quê, o que implica desde as cotas [de facto] para as nossas elites estudarem na Universidade Estatal até o destino de pobres e negros serem apenas funcionários.
Essa direita, é claro, hoje toma vestes modernistas — o que não é raro na nossa História, basta ver o Positivismo — a exemplo do modernismo no qual se investiu a própria esquerda petista. Mas a nova direita brasileira — não a velha direita que vivia à base do clientelismo, do coronelismo e do antipetismo franco, mas sim aquela que vive de gerentes, do softpower e da fagocitose “por dentro” do petismo — está perfeitamente pronta a capturar esse monstro e usa-lo a seu favor, como uma mula de carga. Até porque a direita é bem resolvida em sua paranoia — ironicamente, como bem observa Giuseppe Cocco no seu MundoBraz, o futuro [ou o futurismo] do Brasil mira o passado [glorioso?] da Europa (do mundo maior e grandioso do primeiro mundo), continente cujo presente, entretanto, se parece mais conosco do que gostaríamos;enquanto miramos neles, eles miram em nós, parecendo-se cada vez mais com o Brasil, em um movimento no qual os dois fantasmas estão prestes a se abraçar no tornar-se Mundo do Brasil e no tornar-se Brasil do Mundo; o que difere, por óbvio, do devir-Brasil do Mundo e do devir-Mundo do Brasil; não é à toa que nos parecemos, morbidamente, com a França de 1965, tão bem descrita por Guattari e outros na elaboração de As Nove Teses da Oposição de Esquerda: estamos repartidos entre uma direita arcaica, uma grande geleia modernizante e uma esquerda catastrofista.
Pior ainda, é que a negatividade desse tornar-se entrecruzado entre Brasil e Mundo emerge na própria questão da economia da dívida, que se afirma no Brasil contemporâneo: o sistema financeiro brasileiro foi tornado mundial nos anos 90, com a abertura aos bancos estrangeiros, movimento que é acompanhado da dívida pública antes externa (mundial) ter sido tornado interna (brasileira). Devemos agora para os bancos brasileiros tornados, em grande medida, mundiais ou abertos a esse capital no próprio âmbito interno do sistema financeiro. E é da economia da dívida, com a capilarização e expansão do mercado creditício que o projeto modernizante visa a construção de sua missa civil, sempre com os olhos no futuro: Para aliviar as pressões inflacionárias — a própria reação no campo econômico dos proprietários de meios de produção pressionados pelos ganhos salariais –, pode-se prescindir do crescimento dos salários pela abertura a torneira do crédito, gerar um novo mercado capitalista — desta vez, financeiro de microcircuitos — e ainda gerar controle social ímpar: eu tenho dinheiro pagar porque, do contrário, não me emprestariam, mas não tenho o tempo nos termos que eu preciso; devo, tenho de pagar, trabalho como eles querem que eu trabalhe.
O homem endividado do novo Brasil, a exemplo do futuro que miramos — isto é, a vida nos países ricos — tem o crédito como suplemento para ganhos salariais insuficientes e, não raro, pode se endividar não porque tem bens e um trabalho que garantam, ao contrário, ele é antes endividado para que procure emprego para pagar o que deve. O regime da dívida, aquele mesmo que tornou, nos EUA, o cowboy de cabelos loiros e esvoaçantes que mirava o Oeste em sua fuga em Homer Simpson — o perfeito homem sedentarizado — se anuncia no horizonte; não tanto porque Dilma seja exatamente uma Thatcher, uma paranoica disposta a salvar o capital britânico de sindicatos incômodos — embora incapazes de fazer uma revolução –, seu objetivo é salvar o trabalho apenas como tal — um trabalhismo, o que implica em salvar, pela outra ponta, o capital, do mesmo modo que o trabalho não acaba com Thatcher, embora tenha mudado consideravelmente.
A dívida é, aqui-agora, o mecanismo mais perigoso de captura para o permanente escape da classe sem nome porque desfaz, precisamente, o aqui-agora remetendo a classe sem nome para o futuro . O imperativo do saber o seu lugar, pode voltar em outra forma, de forma não mais estamental e sim financeiro, a máquina de identificação, essencial ao Capitalismo e ao Estado poderia, assim, voltar a emergir promovendo, desta vez, a necessária destruição criativa para o manutenção do capitalismo. A potência transformadora que há em nosso meio é essa classe sem nome, devir-excedente do pobre, mas sua própria estrutura monstruosa faz com que tenhamos uma situação muito complexa, ainda mais com as limitações óbvia dos meios de organização clássicos da esquerda brasileira — que preferem perseguir com tochas e arados o que não entende, a entendê-lo. É, contudo, o amor — força cósmica e revolucionária — que reaparece novamente enquanto elemento central para a constituição dos agenciamentos e trocas que a virada que precisamos demanda: é o amor aquilo que pode produzir a aliança entre o monstro e o nômade, carnavalizando, assim, este tumulto, fazendo multidão.
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*um agradecimento especial ao meu amigo Bruno Cava e ao grande Giuseppe Cocco pelo convite e pela hospitalidade, a todo pessoal da Rede Universidade Nômade, aos amigos presentes no evento e a Isabella e sua família pelo companheirismo e inspiração.