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A Classe ao Redor entre o(s) CÉUs e o Inferno

 

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Por Giuseppe Cocco, UniNômade e professor titular da UFRJ

No meio da luta de foices no escuro entre “pibinho” e “pibão” , taxas de juros e de inflação, “o mal aceso de uma lamparina”: após passar despercebido por um ano, um longa metragem brasileiro passou a receber dezenas de prêmios até enfim aparecer entre os dez melhores filmes de 2012 no New York Times. O diretor, Kleber Mendonça Filho, diz que O Som ao Redor conseguiu esse sucesso apesar dos “grilhões que a indústria cultural impõe à produção independente”. Se trata de uma anedota emblemática das lutas sociais e políticas no Brasil dos próximos anos: além do nível do PIB, é também seu conteúdo que está em disputa; e o conteúdo do PIB depende da cultura, ou seja dos processos de valoração que a sociedade produz.

Em 2011 e 2012, o MinC voltou a ser entregue aos interesses elitistas do copyright e ao lobby da grande indústria cultural que ainda é vista como a única capaz de representar um Brasil que enfim se tornaria Maior e “sem miséria”. É justamente a miséria conservadora dessa restauração que fica escancarada diante do caso do longa pernambucano: a riqueza do produto cultural depende do reconhecimento das dimensões difusas, horizontais e democráticas da sua produção. Para além do sucesso de público, é também o conteúdo do filme que interessa: não assistimos a uma história, mas mergulhamos numa ambiência onde o acontecimento está sempre ao redor, numa cidade atravessada pelas grandes transformações sociais e urbanas da era Lula: o crescimento do PIB e a menor desigualdade mostram outro lado no urbanismo vulgar da proliferação de altos prédios feiosos para a velha e nova classe média. Tudo isso numa atmosfera violenta de ruas assombradas por muros, cercados e seguranças. O som que ouvimos é de dois tipos: por um lado, o ruído ensurdecedor de uma classe média ao mesmo tempo decadente e emergente; pelo outro, o murmúrio da multidão dos pobres (empregadas, porteiros, flanelinhas, e outros precários, inclusive uma professora chinesa de chinês) que formam a composição ambígua, velha e nova, do trabalho por vir: o dos serviços. Entre o ruído e o murmúrio, o que faz a diferença é a cultura, ou seja a produção (ou não) de outros valores.

Numa brilhante defesa do Vale-Cultura, na Folha, a nova Ministra da Cultura, Marta Suplicy, lembrou sua experiência dos CEU (Centro Educacional Unificado), um projeto que ela pretende desenvolver no nível nacional, com os CEU das Artes e Esportes. Essas novas infraestruturas respondem à “enorme fome pelo acesso à cultura”. Mas, de nada adianta pensar o acesso dos pobres sem mobilizar suas capacidades de produzir cultura. Para que os CEU não se atolem no inferno da uma cultura elitista e burocrática e encontrem seu paraíso, é preciso que o MinC potencialize e reconheça a produção de cultura que já existe nos territórios, como tinha sido feito por Célio Turino com os Pontos de Cultura.

Na década de 1960, Glauber Rocha procurava essa força produtiva na estética da pobreza, entre Deus e o diabo. Hoje precisamos apreender essa potência política da chamada “nova classe média” ou seja da classe ao redor: não a mediocridade social e estética dos pobres homologados pelos valores extenuados das cidades do medo, mas a produção de outros valores; não “um” Brasil maior homogeneizando ruidosamente os fragmentos, mas o murmúrio dos “muitos” brasis constituindo – com suas poéticas – aquilo que Gláuber dizia ser a “ynvenção polytyca da sociedade brazyleira”.

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