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Desutopia das ruas


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Os ventos da democracia sopram desde muito tempo. Eles parecem mais fortes desde junho de 2013, quando irrompeu um ciclo de insurgências no país todo. “Jornadas de junho” é um dos nomes dele. Um período curto do calendário, um tempo imenso se abrindo. Foi principalmente no Rio de Janeiro que o ciclo encontrou a sua expressão mais quente e contínua. Pelo centro da cidade (17J e 20J), a multidão explodiu a verdade sobre o poder: a potência da cidade está nos corpos da multidão.

A multidão jogou na cara do poder o desaparecimento do favelado Amarildo; a chacina dos pobres da Rocinha, do Vidigal, da Maré, do Jacarezinho e tantas, a chacina do dia a dia, normalizada; a regulação mafiosa do transporte urbano, da saúde pública, da educação; o genocídio dos índios, a vampirização do futebol e sua alegria, dentre outros muitos crimes contra o comum da cidade.

A indignação reuniu massa crítica e saiu do controle. Os indignados estavam repletos de dignidade, dispostos a não renunciá-la diante dos crimes do poder. Não a dignidade abstrata dos princípios universais, de um homem apartado do processo histórico, livre e igualitário apenas como ideal, mas a dignidade material das lutas. A dignidade que se conquista, apesar da dor, do sofrimento, da escassez forjada e da miséria imposta de cima. Aquela que tem a sua história, sua geografia de afetos, e que é sempre uma história menor, forjada nas lutas das minorias. É a luta material e concreta, com nomes, datas, sangue e alegria. Essa vibração tensionada em todas as minorias do mundo e seus territórios precários; do migrante nordestino que se torna operário, sindicalista e presidente do Brasil, até as jovens que escancaram os seios fazendo da libido (a Marcha das Vadias) um manifesto em meio a peregrinos católicos (a “Xota-M-Xota” no meio da Jornada Mundial da Juventude). Se a religião é momento simultaneamente de miséria e de protesto, como dizia Marx, é aí que essa marcha pôde resgatar a santidade dos corpos, enquanto veículos de transfiguração do sofrimento e da morte. Foi essa plenitude de dignidades, uma dignidade que se faz, e cujo direito só merece quem arrisca, que encorajou a reocupação da Aldeia Maracanã, a batalha da ALERJ e da Presidente Vargas, as duas ocupações diante da casa do Governador (Ocupa Cabral), as tantas assembleias, desafios e pequenas insurgências em lugares que sequer podemos imaginar, porque são tantos, tudo isso! – e tudo isso nunca será esquecido – que fez reduzir o preço da passagem. Os famosos vinte centavos.

A luta é por libertação, justiça e democracia, como já foi antes e será. A história, afinal, é sempre a história das lutas. História da potência. E isso os jovens inscrevem nas pequenas pedras atiradas contra a história do presente. Hoje, a democracia se faz lutando pela livre circulação, incluindo a melhoria das condições dos transportes públicos e o fim das tarifas abusivas. A complexidade desta jornada – que não se resume ao mês de junho, que não começou aqui no Brasil, não começou agora em 2013 e que não parece ter tempo para acabar – nos convida à paciência para perscrutar os pequenos movimentos subterrâneos, discernir as vozes entre os gritos, e compreender os pequenos sussurros. Como diz Michel Foucault[1], espreitando por baixo da história o que a rompe e agita. E vigiar por trás da política o que deve incondicionalmente limitá-la.

Nestes termos, as insurgências nas cidades brasileiras não carecem de pautas, como se tornou lugar comum acusar; e não se resumem a uma suposta violência dos confrontos com a polícia. As insurgências estão prenhes de pedidos, lutas e desejos. Trata-se mesmo de demarcar o limite do intolerável, berrar a indignação. Lutar por “melhores condições de trabalho”, o que implica, agora, no tempo da cidadania-produção, trabalho dos direitos, em distribuição das riquezas (imateriais e materiais, certamente) produzidas em comum. As lutas implicam agora em melhores condições dos serviços públicos, incluindo transporte, mas também moradia, lazer, conexões, etc. A greve nas fábricas ou nos serviços dá lugar à paralisação de toda a produção urbana. E se os jovens pretendem a paralisação do trânsito, a ocupação dos espaços políticos institucionais, a depredação dos símbolos mais evidentes da expropriação, é porque estas são as formas estratégicas de sabotar o complexo produtivo inteiro.

E quanto ao futuro das insurgências? A qual destino nos levam as jornadas? O que fazer depois do inverno? Desde os primeiros dias havia já havia certa apreensão quanto ao futuro, uma angústia quanto à possibilidade real e concreta de mudanças. Há também um indisfarçável pessimismo, resultado talvez de inúmeras desilusões com promessas não cumpridas e esperanças frustradas. Pessimismo que é sobretudo fruto do inevitável hábito de conceber o futuro a partir do medo ou como utopia. Indagar sobre o futuro é inevitável; mas deve ser inevitável também encontrar desde já as novas brechas para a produção constituinte. Devir-esquerda, devir-revolução. Revolução permanente. “Onde será nosso próximo encontro?”, parece a pergunta mais condizente com o ritmo deste tempo.

Apressar o futuro não para que algo aconteça logo, mas para investir o próprio desejo e assim constituir o tempo. E conjurar qualquer utopia. A definição de nosso futuro, ou melhor, de nosso investimento no futuro e no futuro do poder constituinte não é encontrada em seu êxito, mas pelo esforço efetivo de tentar sempre um novo êxito e, neste esforço, a produção de uma subjetividade, a subjetividade da criação. A marcha do poder constituinte, em vez de acumulação quantitativa, consiste num percurso e numa ação subjetiva. É a história daquilo que Spinoza chamaria de paixão constituinte da multitudo[2].

 

Fabrício Toledo é advogado, trabalha com refugiados e participa da Rede Universidade Nômade.

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[1] “É inútil Revoltar-se?, in FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos V. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

 

[2] Ibidem, pág. 422.

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