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Feminismos em marcha


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Neste ano de 2013, descobrimos que 4.993 mulheres foram estupradas só no estado do Rio de Janeiro[1]. A pesquisa, feita apenas com base nos registros policiais das delegacias do Estado, revelou mais de treze estupros reportados por dia, um aumento de 23,8% em comparação a 2011. Descobrimos também que, em um universo de 8 mil mulheres entrevistadas, 99,6% já haviam sido assediadas (verbal e/ou fisicamente) por homens em lugares públicos – na rua, no transporte público, no trabalho – e, desse total, 81% deixaram de fazer alguma coisa, como pegar certo caminho ou ir a certo lugar à noite, por medo de assédio, e 85% já foram tocadas ou agarradas contra a vontade.[2]

Mas 2013 não vem sendo marcado só pelas descobertas dos golpes que o patriarcado desfere contra todas (e todos) nós. As investidas de bancadas parlamentares conservadoras contra os direitos das mulheres, gays e lésbicas no Brasil têm mobilizado milhares em torno de atos que tomaram as ruas e as redes sociais para demandar autonomia, liberdade sexual, a descriminalização do aborto e para relembrar a promessa constitucional de laicidade do Estado[3].

Em julho, a Marcha das Vadias convocou a sua parada anual de corpos insubmissos, questionadores das violências patrocinadas pelo Estado e sociedade patriarcais contra tudo o que não é “macho”, provocando a ira e a insônia dos guardiões das genitálias adultas alheias[4].

No seio do levante multitudinário que toma as ruas de cidades brasileiras desde as jornadas de junho, a vocalização de agressões sexuais sofridas por manifestantes durante a ocupação da Câmara Municipal de Belo Horizonte intensificou o debate acerca do machismo na esquerda[5].

No final de agosto, a Marcha Mundial de Mulheres reuniu em São Paulo milhares guiadas pela solidariedade na luta contra a pobreza e a violência que atingem o gênero feminino de forma particularmente cruel[6].

Quase à mesma época, durante um seminário sobre subjetividades e transfeminismo na UFRN, um coletivo formado por criaturas resistentes e desordeiras ocupou um banheiro masculino da instituição, atraindo atenção para o paradigma da normalidade de sexo e de gênero, que domestica os nossos corpos e mentes. A partir da ocupação, foi publicado um manifesto político transfeminista queer, levando o debate acerca dos direitos, desejos e necessidades de todas e todos nós, — normatizados, insurgentes, transviados, delinqüentes, feministas, vadias, — para um novo nível poético-político[7].

O ano ainda não acabou. Essas são apenas algumas amostras de uma luta polissêmica que se constrói todos os dias, em múltiplas frentes, pelo feminismo,  que gesta nessas batalhas múltiplos feminismos. Que lutam contra o sistema e o moedor de carne capitalista neoliberal; rechaçam a exigência de inteligibilidade social e cultural a partir de binarismos sexuais; evidenciam a patrulha midiática dos corpos femininos, vigiados, padronizados, depilados, higienizados; revelam as ideologias de inferiorização do feminino a rastejar debaixo de discursos sutis; denunciam a divisão sexual do trabalho nos espaços público e privado e as muitas violências teleguiadas; implodem o dualismo moralista que só permite à mulher existência e pertencimento enquanto “pecadora” ou “santa”, “puta” ou “virgem”.

Feminismos, no plural, com bandeiras que se cruzam, se costuram e se instigam, permitindo abordagens a partir dos pontos de vista de mulheres negras, indígenas, brancas, pobres, prostitutas, transgênero, cisgênero, lésbicas, hetero, centrais e periféricas, e viabilizando a construção e fortalecimento de discursos e sociabilidades alternativas. Alternativas a quê? Ao que está posto e é imposto. Às instituições definidas a partir da experiência masculina, cuja fisiologia define boa parte dos esportes, cujas biografias definem carreiras de sucesso, cujo serviço militar define cidadania, cuja presença define família[8], cujos desejos, fetiches e representações objetificantes do feminino definem desde pornografia até pautas publicitárias e jornalísticas. E por aí vai.

O feminismo, em seus múltiplos eixos, tem no seu caráter contra-hegemônico a capilaridade de que precisa para tornar-se terreno de interseção com outras lutas irmãs: pela moradia, pelos direitos indígenas às terras ancestrais, pela segurança alimentar, antimanicomial, contra o racismo, a homofobia, a transfobia. Porque o compromisso não é só com pela implosão do androcentrismo, do etnocentrismo, do eurocentrismo, mas com todo prefixo que se pretenda “centro” e não perspectiva.

Nessa empreitada, a gente insurgente sabe que a hegemonia faz de tudo para se manter dentro dos muros da sua cidadela, emitindo de um abrigo seguro as normas que devemos seguir. Sabe também que a perpetuação dessa dominação dá trabalho, requer uma correlação de forças que exige a criação, manutenção e repetição de práticas discursivas infindáveis, trabalhando incessantemente para nos convencer da necessidade de conformidade e submissão, com táticas que variam do bombardeio midiático à violência policial.

Evocando a reptilíngua punitiva que tenta a todo custo capturar e apreender os muitos movimentos, somos vândalos, vadias, arruaceiros, baderneiros, “minorias radicais” em ebulição. Mas, se o levante popular brasileiro tem nos mostrado alguma coisa, se os despossuídos, violentados, marginalizados, perseguidos nos mostram alguma coisa na bravura diária de sua existência radical – e nos mostram muito! –, é que recebemos com coragem os rótulos oficiais-midiáticos e as artimanhas estatais de criminalização da resistência popular: eles não aderem à nossa pele, insistem em bater e voltar, ressignificados, encharcados no empoderamento da multidão.

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[1] Fonte: http://www.isp.rj.gov.br/Conteudo.asp?ident=300  (Consultado em 4 de setembro de 2013).

[2] A pesquisa foi elaborada pela jornalista brasileira Karen Hueck e divulgada pelo think tank feminista Olga. Fonte: http://thinkolga.com/2013/09/09/chega-de-fiu-fiu-resultado-da-pesquisa/ (Consultado em 9 de setembro de 2013).

[3] Sobre os atos contra o estatuto do nascituro, ver: http://www.brasildefato.com.br/node/13243  (Consultado em 13 de setembro de 2013).

[4] Fonte: http://marchadasvadiasrio.blogspot.com.br/  (Consultado em 13 de setembro de 2013).

[7] O incrível manifesto das Afetadxs pode ser lido aqui: http://afetadxs.blogspot.com.br/2013/08/medode-glitter-escritoem-15082013-as.html (Consultado em 20 de agosto de 2013).

[8] MACKINNON, Catharine. Feminism Unmodified: Discourses on Life and Law. Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1987. p. 36

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