Terceiro da série, organizada pela UniNômade, que analisa a conjuntura das grandes cidades depois das últimas eleições, o texto de Rogelio descreve as etapas das lutas sociais no estado desde o arco longo de movimentos ligados à “esquerda da igreja” e a teologia da libertação, até o movimento socioambiental, enfrentando os diversos representantes do capital em cada tempo: da ditadura cívico-militar a governos que promovem grandes negócios concentracionários e espoliatórios em nome do desenvolvimento nacional.
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Por Rogelio Casado | militante antimanicomial, blogueiro do PICICA e mestre em Sociedade & Cultura pela Universidade Federal do Amazonas
Por volta de 1969, os movimentos sociais na Amazônia ganhariam impulso durante a ditadura militar, cabendo ao então chamado “setor progressista” da Igreja Católica o protagonismo para deter o histórico conservadorismo da instituição e o colaboracionismo dos primeiros anos do regime. Uma geração de membros do clero, inspirada pela teologia da libertação, uniu homens e mulheres do campo, da cidade e da floresta na luta política em favor dos pobres.
Para uma igreja habituada em dois séculos de história, na aliança com a classe dominante que pilhava a sociedade e praticava toda sorte de violências contra pobres e minorias, não tardou a resposta dos setores reacionários pela manutenção dos fundamentos de sua doutrina. Dez anos depois, numa América Latina dominada por ditaduras – exceto quatro países –, foi iniciado o processo de desconstrução dessa vigorosa corrente, reabrindo espaço para articulações das tendências conservadoras.
A despeito da punição de 140 teólogos, entre eles Leonardo Boff, submetido ao “silêncio obsequioso”, até hoje a experiência e o legado deixado pelas comunidades eclesiais de base estão presentes em todas as latitudes do território nacional. Na Amazônia, o vigor dessa cultura é notório em Belém e no Acre. O arco de alianças com outras forças progressistas logrou êxito no embate eleitoral, com ocupação dos poderes executivos e legislativos.
No Amazonas, entretanto, romper com o conservadorismo institucional e as alianças políticas da oligarquia regional não foram tarefas fáceis. O enfrentamento do populismo enraizado na cultura política revelou líderes entre professores, alunos e trabalhadores do jovem distrito industrial, instalado mediante o artifício da instituição de uma Zona Franca, que alterou dramaticamente o perfil demográfico da cidade. Mas é recente a ocupação do executivo nos municípios amazonenses. Mesmo a bancada dos partidos de esquerda tem números tímidos, considerando que lá se vão quase 35 anos de democratização do país.
Em Manaus, um mesmo grupo político comanda o Executivo municipal e estadual há mais de 30 anos. Essa oligarquia mantém o controle político ajustando-se às conjunturas, estabelecendo alianças ora à direita, ora à esquerda. Atualmente, partidos de esquerda compõem o quadro da administração pública, ungidas pela política de alianças do governo federal. Desse modo garantem a governabilidade, ao passo que obtém tímida ocupação nas casas legislativas. Suas pautas têm caráter conservador se considerarmos a gravidade da insustentabilidade ambiental que se desenha no horizonte com a expansão da região metropolitana, que envolve seis municípios com longa extensão territorial e recursos hídricos. À falta de políticas públicas mais consistentes para o interior do Estado gera desigualdade no crescimento, de modo que a continua mobilização das populações migrantes impõem novos desafios à cidade, para as quais as políticas públicas de moradia, transporte, saúde, segurança e emprego, entre outras, continuam deficitárias.
Os remanescentes desse movimento, nascidos no enfrentamento com o regime militar, em sua maior parte oriundos dos movimentos de base da Igreja Católica, e que tiveram forte atuação nas ocupações que explodiram como resultado da migração provocada pela implantação da Zona Franca de Manaus, salvo os que não assumiram responsabilidades governamentais, já não mantém as mesmas relações com a luta pela reforma urbana, negligenciando a função social da cidade.
Desse modo, uma primeira crise se fez sentir na relação entre movimento social e a nova representação política dos últimos anos. No processo de superação da crise de identidade, o ajuste (inconcluso) veio acompanhado por crescente desinteresse pela participação do cidadão na vida política da cidade. Costuma-se imputar ao desgaste ético da representação política nos dias de hoje o principal fator gerador da apatia. Tão grave quanto isso é a incapacidade das nossas instituições reconhecerem os territórios onde atuam e as necessidades manifestas e não manifestas das suas populações. Neste cenário, o conceito de “sociedade civil” vem perdendo consistência diante da forte segregação espacial e social que tomou conta da cidade. As instituições de representação não conseguem acompanhar a emergência de novos pontos de vista. O edifício político que mantém o elo entre a “sociedade civil” e as instituições da representação ainda acredita que a melhor forma de anular vozes dissidentes é tentar cooptar suas lideranças de modo a controlar qualquer tentativa de radicalização da renovação urbana. Esses indivíduos costumam renunciar ao compartilhamento dos espaços coletivos caem na armadilha de doutrinas formuladas pelos estrategistas de administrações públicas de viés neo-liberal.
A rigor ainda são poucos os novos atores no processo de reforma num Estado que tem crescentes parcelas do seu orçamento destinadas a obras que endividam o contribuinte. Entretanto, mesmo diante da desresponsabilização institucional em que o papel do cidadão é esvaziado e sofre forte pressão para abrir mão de seus saberes, é possível identificar a pulsação existente tanto nos setores mais tradicionais das lutas sociais – apáticas nos primeiros anos do governo Lula –, como em setores distantes da política partidária, em particular a juventude, que passaram a exercer o protagonismo de uma cidadania insurgente. Alguns deles têm caráter rebelde e contestatório como os integrantes da Marcha da Liberdade, que levou às ruas uma pequena multidão de jovens, bem como tarimbados militantes das velhas causas sociais, depois que a Polícia Militar reprimiu em vários Estados da federação os organizadores da Marcha da Maconha – movimento em prol da liberação da planta. A maior parte da cobertura da imprensa apoiou-se no viés sensacionalista, ajudando subliminarmente a criminalizar a manifestação.
Um exemplo mais promissor de avanço da participação cidadã, para além das identificações políticas partidárias habituais, disposta a abandonar os vícios da cultura política tradicional, tomou corpo como movimento socioambiental. Atravessou o período eleitoral, sem com ele se envolver, mas cobrou dos parlamentares aos administradores públicos o compromisso com práticas de desenvolvimento horizontal, recusando o papel de agentes passivos de ações para o qual a sociedade não foi ouvida.
Este foi o recado enviado aos postulantes dos cargos eletivos do ano de 2012: o mundo construído pela “representação” é um mal-entendido, que não colabora para a transformação cultural e política desejada pela sociedade atual. Os interesses da sociedade não podem mais ser reféns do capital predatório e seus agentes, que reproduzem desigualdades inaceitáveis. Uma parte do Estado aspira por mudanças que tornem o mundo mais justo social, econômica e culturalmente.