Por Aryadne Bittencourt Waldely e Fabrício Toledo de Souza, advogados de refugiados pela Cáritas – Rio
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“Nosso desejo de fugir é mil vezes mais forte do que
a vontade que eles tem de nos impedir.
Por isso, nunca serão capazes de nos parar”.
C.K., um jovem refugiado congolês
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A morte de 800 pessoas no Mediterrâneo no último 19 de abril não impediu que mais pessoas se arriscassem. Apesar da tragédia, mais barcos lançaram-se na travessia. O risco não é pequeno: o número de mortos em 2015 já é trinta vezes superior que o do mesmo período no ano anterior. A Organização Internacional de Migração (OIM) calcula que, mantendo-se a tendência, até o final do ano podem ser 30 mil mortos. Um massacre.
A despeito dos riscos, eles continuam chegando: poucos dias depois do acidente com os 800 migrantes, cerca de três mil pessoas foram resgatadas com vida (em 2 de maio) no mesmo Mar Mediterrâneo. Temendo novas tragédias, embarcações europeias resgataram no primeiro fim de semana de maio cinco mil pessoas. Os refugiados e migrantes, como se pode ver, estão vivos!
O que as recentes notícias indicam que, apesar das mortes, riscos e toda a dor, as pessoas não vão deixar de fugir. Ainda que cessem definitivamente as operações de resgate no Mediterrâneo, ainda que prendam todos os contrabandistas ou “coiotes”, ainda que os impeçam de embarcar, ainda que os prendam em centros de detenção na Líbia. Não importa. Os migrantes e refugiados continuarão a fugir. Eles continuarão fugindo, porque estão vivos e querem continuar vivendo, aceitemos isso ou não.
A crise dos refugiados não é uma “crise” europeia. A crise está na Síria, na República Democrática do Congo, no Afeganistão, na República Central Africana, no Burundi. São mais de 50 milhões de deslocados forçados. Uma crise que significa o massacre milhões, das formas mais brutais. E há ainda a crise dos migrantes: haitianos, chineses, senegaleses, ganeses… A crise é a miséria para milhões de pessoas, é fome e falta de futuro. A maioria absoluta dos refugiados do mundo está fugindo de países pobres para outros países pobres ou emergentes. E o mesmo acontece com os migrantes.
Não deixa de ser verdade que há uma “crise” dos refugiados e migrantes na Europa[1]: eles compõem um grande contingente e a sua presença é notada nas ruas; a cor da pele, os dialetos e sotaques, as roupas, uma diferença se deslocando através dos tons de branco. A crise dos refugiados é também uma crise da identidade, da homogeneidade e da coesão que faz funcionar a máquina Estado. Sem este consenso, a identidade nacional e, portanto, a própria servidão entram em crise. Não é apenas por causa de benefícios sociais e emprego que os refugiados e migrantes se tornaram tema polêmico nos debates eleitorais.
Esta crise é, assim, a crise do próprio capital, que busca capitalizar-se com a regulação ou precarização da cidadania, como estratégia para recompor um consenso identitário baseado na nacionalidade e, desta maneira, recompor o vínculo súdito-Nação. Com isso, recompõe-se também o valor do trabalho, ou melhor, a medida da exploração, o quanto de riqueza e produção de riqueza pode ser sugada gratuita e violentamente de uma força-trabalho mantida na insegurança e na incerteza. É desta crise do capital que o Ministro do Interior italiano fala quando sugere que os solicitantes de refúgio trabalhem de graça.
Resta saber se, ao fechamento da Europa, existem opções. Serão a América Latina e o Brasil alternativas para os refugiados e migrantes? Durante a última Conferência das Américas, em abril deste ano, o Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados, o português Antonio Guterres elogiou a América Latina por sua generosidade no tratamento dos refugiados e mencionou o Plano de Ação elaborado durante o encontro Cartagena + 30, ocorrido no final de 2014, no Brasil. Há nas palavras de Guterres, contudo, um tom mais de apelo (quanto ao futuro), do que propriamente um reconhecimento.
A despeito de todas as promessas e compromissos assumidos, o retrocesso na região é perceptível. O caso mais dramático é o Equador, que, depois de décadas suportando quase sozinho a massa de colombianos que se deslocou para aquele país[2], recuou drasticamente e decidiu fechar fronteiras a refugiados e migrantes.
O Brasil, por sua vez, com o crescimento econômico, chega ao futuro tantas vezes ambicionado ao mesmo tempo que assim é visto por refugiados e migrantes. O Brasil também virou o futuro deles [3]. Mas de que futuro se trata? O mesmo futuro nebuloso que se entreva no Norte, onde o futuro se torna aos poucos um pesadelo? O Brasil desenvolvido se parece cada vez mais com os pesadelos de nosso passado. Haverá somente um futuro possível? Um único futuro sonhado? Haverá outros amanhãs possíveis? Um Brasil onde os pobres e minorias sejam desejados em sua potência e por sua potência?
É possível que tenhamos o mesmo destino dos países desenvolvidos do hemisfério norte. Ou, quiçá, o destino de alguns de nossos vizinhos sul-americanos, que recuaram em suas políticas de abertura e democracia, fechando as portas a migrantes e refugiados. E justamente no momento em que comemoramos enormes conquistas neste tema, o medo se torna maior e mais dramático.
É preciso, contudo, perfurar o pessimismo automático e determinista e propor ainda mais avanços e garantias em favor das pessoas deslocadas. Produzir discursos propositivos, implementar políticas que garantam e ampliem direitos, divulgar os problemas e soluções, sensibilizar as pessoas… Enfim, é preciso investir forças e criar alternativas.
Apostar na força dos migrantes, dos refugiados e na força das minorias que atravessam o mundo, elas que desbloqueiam os fluxos da vida. Na fuga, os migrantes e refugiados carregam uma grande carga de dor e negatividade: o terror e a miséria são a realidade trágica que determinaram a morte de suas famílias, as cicatrizes que marcam sua carne, a perda de direitos, etc. A fuga, porém, sempre será movimento de liberdade, a luta por libertação e luta por cidadania e direitos. A fuga é, neste sentido, não apenas a solução para a crise, mas a luta contra a crise. A fuga não se faz apenas pelo desejo de futuro, mas pelo desejo de produzir muito futuro: muitos amanhãs são possíveis.
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Notas
[1] Há expectativas de que a Alemanha receba, até o final deste ano, 400 mil solicitantes de refúgio.
[2] Oficialmente, são 55 mil refugiados reconhecidos, dentre cerca de 600 mil que chegaram.
[3] Em 2015, o número de pessoas buscando proteção deve variar entre 10 a 15 mil, sem falar nos haitianos, considerados “migrantes econômicos”, cujo número deve chegar a 30 mil. No período entre 2010 a 2014, o número de solicitações aumentou cerca de 1.500%, enquanto que o de refugiados subiu em 1.240%. Ainda assim, os números absolutos ainda são relativamente pequenos: os refugiados reconhecidos não chegam a 8 mil e o número de solicitações deve ficar em torno de 10 mil até o final deste ano.