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Refugiados nossos: ciclovia mediterrânea

Por Tiago Leão Monteiro, advogado

Brasileia

A América Latina é considerada referência mundial no tratamento de refugiados. O Brasil, tradicionalmente e internacionalmente, é reconhecido por ser acolhedor do estrangeiro migrante forçado. Diversas colônias (ucranianos, sírios, congoleses, colombianos, palestinos, chineses etc) se espalham pelo território nacional e apoiam novos refugiados fugidos dos inúmeros conflitos que se perpetuam longe daqui.

O Brasil deve alcançar a marca de 15 mil refugiados até o final de 2015, o décuplo de cinco anos atrás. Entre 1998 e 2010 o CONARE, órgão do Ministério da Justiça responsável por decidir quem será declarado refugiado, deferiu 2.439 solicitações. Apenas em 2013 o órgão deferiu 648 solicitações e em 2014, até o mês de outubro, outras 1.952 solicitações.

Tal fato evidencia grande mudança no cenário que pode ser explicada por diversos fatores, desde a escalada bélica global, que deixa dezenas de milhões de refugiados, até a criação de rotas e esquemas clandestinos de deslocamento humano. Mas isso não vem ao caso aqui.

Os refugiados são seres humanos em situação caracterizada pela precariedade de seus meios de subsistência e por sua hipossuficiência (uns mais, outros menos) e, por isso, geralmente precisam de assistência. O fluxo de migrações forçadas no Brasil vem aumentando bastante, mas ainda é irrelevante do ponto de vista internacional. O sistema brasileiro é razoável e, é claro, pode melhorar muito.

Refugiado sofre no Brasil? Sofre! Alguns chegam sem saber onde estão (é sério, isso existe) e muitos perderam praticamente todos os seus pertences – e documentos. A maioria não tem dinheiro e não fala o idioma. Muitos estão tão traumatizados que, ainda com medo, recusam ajuda.

Referência no trabalho com refugiados, a Caritas Arquidiocesana do RJ, entidade que conheço bem, conta com profissionais respeitosos e competentes, e voluntários dedicados, que todos os dias ajudam os imigrantes a vencerem os muitos desafios. Mesmo assim, vencê-los é uma tarefa árdua.

Um caminho preferencial é apresentar o deslocado a outras pessoas na mesma condição, em regra da mesma nacionalidade. São muitas histórias de sofrimento, sobrevivência e vitória. Os refugiados se conectam e se ajudam mutuamente. Apenas querem recomeçar a vida, sabendo ser provável, em alguns casos, que nunca mais voltem para casa, e nunca mais vejam parentes próximos e amigos. Que tenham perdido seus lares para sempre. Mas eles superam as adversidades juntos.

Tudo isso dito para tratar de outra realidade. Uma mais próxima. Cada vez mais é comum o discurso de ódio contra os “nossos refugiados” brasileiros. Botecos e postagens do Facebook são os palcos mais frequentes, apesar de não exclusivos, de discussões arrepiantes.

Recentemente me deparei com uma discussão em um grupo virtual de ciclistas, onde uma moça reclamava da presença de “mendigos” em determinado local que ela costumava trafegar em sua bicicleta, muitas vezes na madrugada, que poderiam, em sua opinião, praticar assaltos. A prévia criminalização foi criticada por uns e apoiada por outros. Estes queriam mais polícia e aqueles também queriam polícia, mas acreditavam em uma abordagem diferente, mais social, mais ampla, começando por evitar discursos discriminatórios.

A rejeição ao diferente, ao desviante, é um fenômeno comum e muito estudado. A discussão acima começou quando uma ciclista, com boas intenções, buscava precaver colegas de um perigo assim entendido por ela, dando azo a um acalorado debate. Afinal, o interesse comum do grupo é lutar pelos direitos do ciclista e, para ela e outros, a presença de “mendigos” nas proximidades seria uma ameaça ao exercício dos seus direitos de ciclista e cidadã.

Quem sabe esse tipo pensamento individualista e imediatista não somente dê causa à reclamação, mas também ao problema. Se entendemos como um grande problema pedalar com receio da presença de pessoas desabrigadas perto das ciclovias, ou de haver no caminho crianças – estigmatizadas como pivete – lançadas às drogas e à criminalidade, imagine para estes, que agora trato (e também estigmatizo, admito) como “nossos refugiados”. Deve ser um baita problemão morar na rua sem comida e perspectiva. Só posso imaginar.

Receando a leviandade, arrisco dizer que similar pensamento individualista e imediatista dê causa à rejeição do refugiado estrangeiro na Europa. O que mais explicaria as desastrosas e recentes omissões da União Europeia? Talvez essa falta de empatia seja a mesma que deixou milhares de pessoas mortas afogadas no Mediterrâneo nos últimos meses.

O mundo é uma simbiose. Nos tabuleiros longínquos, as nações desenvolvidas jogam War com peças estrangeiras, disputando riquezas que não lhes pertencem. Fomentam governos que violentam e expulsam pessoas de suas casas na África e no Oriente Médio e dão causa às grandes migrações forçadas. Tudo em defesa de seus próprios interesses. Falta empatia.

Também falta empatia quando, quase imóveis, ignoramos as ocupações militares nas favelas, as desocupações violentas de imóveis abandonados, as repressões a quaisquer manifestações de oposição (ao menos aos grandes interesses em voga), os cortes orçamentários na educação, os incontáveis gastos com grandes eventos e as condições medievais do sistema prisional. E muito mais.

Nossos refugiados não contam com sua colônia brasileira, como os refugiados estrangeiros encontram apoio nas suas respectivas. Na verdade, imagino a temerem. Nosso Estado, como os que tanto maltrataram forçados migrantes, apenas tem a oferecer um milkshake de abandono com maus-tratos. E nós, como a União Europeia no Mediterrâneo, com imensa repulsa os afastamos. Afinal, queremos nossa ciclovia mediterrânea.

Tiago Leão Monteiro é advogado, mestrando na UFF, Pesquisador e Assistente de elegibilidade da Cáritas/RJ

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