Por Bruno Cava, em A terra treme; leituras do Brasil de 2013 a 2016. São Paulo: AnnaBlume, 2016. p. 11-74.
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Neste ensaio longo, escrito em novembro de 2016, publicado em “A terra treme; leituras do Brasil de 2013 e 2016” (venda aqui), recomponho uma cartografia de forças que se desdobraram no intervalo de três anos entre a pacificação das jornadas de junho de 2013 e o impeachment de Dilma, em agosto de 2016. Em vez de uma linha contínua do tempo ou de categorias normativas como progresso ou retrocesso, o esforço é processar a coexistência de diferentes temporalidades que se desentrelaçaram, saindo pela tangente da guerra de narrativas entre coxinhas e petralhas. Ao apresentar o método, faço referência ao Marx do “18 de brumário de Luís Bonaparte”, que escova a contrapelo a história da restauração do levante do maudit Juin de 1848, o desmoronamento do Partido da Ordem e a ascensão do sobrinho de Napoleão em dezembro de 1851. Meu propósito, antes de qualquer coisa, é colocar Deleuze (em “Diferença e repetição”) para fazer a barba de Marx e substituí-la pelo bigode de Nietzsche, pintado como Salvador Dalí pintou o da Mona Lisa, à moda surrealista.
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Comédia, tragédia e drama na repetição histórica
No 18 de Brumário [2], Marx usa a figura de Luís Bonaparte como fio condutor para encadear os fatos que levam das jornadas de junho de 1848 ao golpe de estado de dezembro de 1851, que encerrou o período da Segunda República Francesa. Com o apoio da massa camponesa do interior da França e do lumpemproletariado parisiense, o sobrinho de Napoleão conquistou também a lealdade do exército para desferir um autogolpe. Ao final de seu próprio mandato como presidente, declarou-se imperador e restabeleceu a monarquia invocando uma linha direta com o tio, morto em 1821 no exílio na ilha de Santa Helena. No dia do golpe, o novo Bonaparte dissolveu a Assembleia Nacional, mandou prender a oposição de todas as tendências, e a seguir restabeleceu o sufrágio universal para atender às suas bases populares difusas pela cidade e pelo campo. Os fogos e as barricadas de três anos atrás não se repetiram, o proletariado não acorreu às ruas para proteger a república golpeada. Principal atingida pela mudança de regime, a burguesia de matizes modernizadores e republicanos imediatamente passou a falar em retrocesso histórico, ao mesmo tempo em que se ressentia que as forças populares não atendiam ao seu chamado para pegar em armas e defender a Constituição. No golpe do 18 de brumário, os proletários insurrectos de 1848 não se sentiram nem um pouco compelidos em responder à convocação, pelo que foram chamados de ordinários e estúpidos pelos dirigentes destituídos. Em consequência, o golpe palaciano se desenrolou quase sem resistência, fazendo desabar as belas vigas que sustentavam as instituições republicanas, que ruía como um castelo de cartas.
A ascensão de Luís Bonaparte relatada no 18 de Brumário serve de ocasião para Marx discorrer sobre a dinâmica do poder, a luta de classe e o que move a história. O livro foi publicado em fascículos num jornal norte-americano, enquanto os acontecimentos ainda estavam quentes. Ele abrange um período de três anos, entre o fim do levante popular de 1848 e o desfecho do golpe de estado. A narrativa é tensionada pelo enigma formulado nas páginas iniciais: como uma figura tão inexpressiva, tanto desprezada pelos contemporâneos pela falta de qualidades, pôde ser erigida à condição de herói da história? Marx vai explicar como a chave de inteligibilidade tanto para o golpe quanto para o seu caráter farsesco se encontra na luta de classe. No caso, na supressão dela. Para Marx, a insurreição de 1848, primeira revolução proletária, portava o sentido da história, a capacidade de inovar no presente um porvir em aberto. Ao ser reprimida, ela, no entanto, sai do palco dos acontecimentos, porém não é destruída completamente. Como verdadeira força motriz da história, a luta de classe segue causando efeitos no presente dos desdobramentos, ainda que não se apresente à luz do dia, com sujeitos políticos identificáveis. O proletariado suprimido segue produzindo efeitos na forma de sua supressão, como uma franja noturna que tensiona o teatro de personagens lançados à cena. Portanto, por trás da história imediata, em que as elites políticas se digladiavam em escaramuças, conspirações, golpes e contragolpes, a revolução de 1848 persistia em sua latência subterrânea, sombras que recortam na luz projetada ao palco os contornos e as naturezas das figuras.
O desenvolvimento do livro reconstrói a história da ascensão e queda do Partido da Ordem, que se forma como uma coalizão ecumênica de burgueses, aristocratas, industriais, financistas, imprensa, reunidos pelo medo diante da possibilidade dos proletários tomarem o poder em 1848. Uma vez destruída por completo a insurreição, o inicialmente monolítico bloco da ordem se decompõe sucessivamente em facções concorrentes, os democratas, os republicanos radicais, os conservadores, que desabam uns após os outros numa implosão em ritmo constante, como uma dança das cadeiras em que a cada rodada decresce o número de concorrentes. Uma a uma elas são empurradas e debilmente tombam sem encontrar terreno firme para se apoiar. O saldo final do esfacelamento do Partido da Ordem se resolve na caminhada triunfante até o centro da trama de Luís Bonaparte. Segundo Marx, o golpista toma o poder amparado por uma nova composição de forças baseada no “lumpemproletariado” da cidade e nas massas inorgânicas do campo fragmentado em pequenos lotes, um arranjo socialmente desestruturado a que o ditador confere um sentido conservador. Está-se no antípoda histórico dos momentos altos da Revolução Francesa e do levante de 1848. Para Marx, o golpe que pôs fim à república não foi nenhum anacronismo, não havia nele nada de absurdo do ponto de vista do sentido histórico, e ele não pode ser explicado simplesmente como a vitória do retrocesso contra o progresso, como queriam os derrotados. O leitor não vai encontrar nenhuma complacência na letra marxiana. O gran finale de dezembro de 1851 foi o resultado consequente, esperado e adequado para a comédia ideológica que se seguiu depois da repressão de junho.
De partida, o escrito magistral de Marx, que inventou a análise materialista da conjuntura, recusa o ponto de vista da burguesia modernizadora. Os progressistas cultivados na tradição das Luzes se consideravam o sujeito portador de valores universais, encarregado de impelir a sociedade para o mundo novo simbolizado pela tríade liberdade, igualdade, fraternidade. Os burgueses se erigiam eles próprios à condição de propulsão da história universal, a sua força de caráter civilizatório. Por isso, essa mesma burguesia identificou no golpe uma tragédia que atingia não apenas a sua classe, mas a própria evolução histórica em sua marcha rumo ao universal. A burguesia golpeada se inscrevia na narrativa do 18 de Brumário como heroína injustiçada da história. Marx ironiza esse ponto de vista descolado do teatro de forças reais, que na cena final chegou ao ponto de culpar os pobres da cidade por seus próprios erros. Mas “ordinária e estúpida”, nessa história, era ninguém menos do que a própria burguesia. As linhas mais afiadas do texto desmascaram o ridículo da retórica inflamada e das hipérboles farsescas do grupo político perdedor, que bradavam por uma “luta implacável”, “resistência sem trégua”, gritos de “vai ter luta!” etc, invectivas que se chocaram inutilmente contra um inimigo nada acanhado diante de meros feitiços.
A Revolução Francesa, Marx recorda, tivera como dínamo virtuoso os levantes populares cuja força combinada ao longo dos anos destroçou o Antigo Regime. Certamente, não foi a iluminação das mentes mais avançadas da burguesia a derrotar a Bastilha e a baioneta dos antigos senhores. Já na revolução de 1848, o curso dos acontecimentos teve uma lógica diferente. A insurreição proletária foi vencida e suprimida. Os burgueses não se vincularam às energias populares que se chocavam contra as instituições opressoras. Ao contrário, eles se aliaram com os monarquistas e grandes proprietários para dizimar a resistência nas barricadas. Toda a sequência de acontecimentos, com isso, muda de natureza, esvaziando a historicidade da força motriz que lhe poderia conferir um sentido transformador. A destruição das jornadas de junho instala no tempo um trauma constitutivo, travando as engrenagens da produção do novo, e cessando a transmissão de impulso vital aos movimentos internos ao teatro político que sucedeu à repressão. As facções internas ao Partido da Ordem vencedor passam a debater-se nesse teatro que resulta da supressão da força do proletariado, mas essa já é uma luta desfigurada, esvaziada do suplemento de potência que poderia fazer de seus personagens verdadeiros heróis. Os papéis exercidos por essas facções, até culminar em Luís Bonaparte, acabam ganhando um caráter opaco e sem viso, aquém do tempo histórico.
Pois então, Marx esquematiza: tragédia (1848) e depois farsa (1848-51). Depois das chacinas que abortaram a nova revolução, é necessário mudar o tom da história subsequente, rebaixada à ópera bufa por sua própria natureza íntima, quando nenhum dos personagens remanescentes é capaz de exprimir uma dignidade transformadora do real. As declarações hiperbólicas e as invectivas eloquentes passam a girar sobre o vazio de uma historicidade débil, e as próprias ideias se tornam postiças: republicanismo, universalidade, liberalismo. Depois de 1848, o teatro de forças onde estava em jogo o sentido da história é substituído por um teatro de sombras, onde o mesmo produz o mesmo. Marx não adotou à toa o registro paródico, nem a centralidade de Bonaparte – figura ela própria cômica, – para encadear os fatos na política francesa depois da repressão de junho. Para ser fiel ao método materialista, não poderia proceder de outra forma, pois a natureza da historicidade se tornou em si própria farsesca. A farsa é de sua realidade intrínseca. Daí que o único modo para fazer justiça à baixa altura da política facciosa interna ao Partido da Ordem é rebaixar os batentes da narrativa até o tom da comédia.
Logo na primeira passagem do 18 de Brumário, Marx elabora uma crítica ao conceito de repetição histórica de Hegel. Para o último, a história procede necessariamente por meio da repetição de blocos do passado. Quem vive o presente precisa repetir papéis antigos, de modo que os grandes personagens precisam ser encenados pelo menos duas vezes. Marx retoma essa tese de Hegel para emendar: “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa” [3]. De fato, a repetição é intrínseca à ação presente, que deve obrigatoriamente pesquisar formas, representações e conteúdos no passado, de modo a constituir o seu próprio tempo. Não há fora do tempo: os contemporâneos se veem obrigados a mover-se pelas circunstâncias assentadas pelas gerações anteriores, e a nelas debaterem-se para produzir algo de diferente. Para Marx, entretanto, a repetição pode assumir duas modalidades, definidas pelo gênero do drama que a anima. A repetição histórica pode ser cômico-farsesca ou trágica. No primeiro caso, o da farsa, ocorre quando os contemporâneos não conseguem se libertar das tradições que os comprimem, e se limitam a representar papéis antigos que lhes pesam a ponto de acorrentá-los ao solo do passado. Nesse caso, a representação dos papéis é esvaziada de suplemento criativo e as forças reduzidas às formas, numa repetição que não abre a historicidade. No segundo caso, o da tragédia, a ação é virtuosamente criativa, e os elementos do passado são repetidos só que desta vez despressurizam-se em relação às tradições e suas formas. Desvencilhando-se da tradição em que se movem, explodem a casca da história e produzem o novo, geralmente num processo conflituoso e violento, porque a ordem existente tende a reagir a essas tentativas que, bem sucedidas, destituirão o seu poder atual.
A famosa frase de abertura do 18 de brumário assinala a diferença estabelecida por Marx em sua análise da repetição histórica quando aplicada para dois ciclos revolucionários: a Revolução Francesa que se iniciou em 1789 e as Jornadas de Junho de 1848. Ambos os processos de transformações irromperam a partir de insurreições populares, ambos romperam com a trama da realidade histórica e introduziram no palco forças novas e cargas destituintes. Num e noutro caso, a burguesia não tardou em imiscuir-se nos acontecimentos tomando partido e assumindo papéis na representação das tendências. Para Marx, a relação estabelecida com a luta de classe – genuíno motor da história – é que vai determinar se essas intervenções da burguesia conseguirão assimilar parte do suplemento revolucionário para inaugurar um novo tempo, no qual elas próprias poderão figurar como heróis. Ou se, mal relacionada com a força de transformação histórica, as intervenções falharão em reunir potência, de modo que as pretensões grandiloquentes e os altissonantes valores invocados fiquem rebaixados à condição de tigres de papel, uma retórica inflamada, porém, verdadeiramente ridícula e farsesca.
A diferença que Marx estabelece entre a repetição trágica ou cômica depende do modo de teatralização das forças em jogo nas representações. No decorrer dos intensos embates, levantes e reviravoltas da Revolução Francesa, os seus personagens centrais vestiram os figurinos e adotaram as fraseologias dos anos de glória da República Romana [4]. A ânsia por se colocar à altura do momento os levou a mascarar-se com as vestes de um passado de glórias e entusiasmo. Nesse ciclo de 1789, a repetição atualizou papéis antigos dentro do esforço consistente em afirmar uma nova era, numa boa relação desenvolvida com as forças reais. Com isso, os protagonistas participaram do evento revolucionário, ao seguirem as linhas de atualização das lutas até poder ultrapassar a tradição dos mortos que haviam antes selecionado para repetir, mas que deveriam suplantar a fim de produzir o novo. Por meio de uma repetição potente, os revolucionários de 1789 incorporaram no presente vivido a força constituinte, para abrir o porvir. Como resultado, essa revolução inaugurou a modernidade na França, deslocando os problemas e reconfigurando as coordenadas de seu tempo histórico. Para Marx, este foi o caso exemplar da repetição trágica, quando a representação de papéis por heróis como Danton, Robespierre ou Napoleão esteve ao serviço de “desencadear e erigir a moderna sociedade burguesa” [5]. Não que a sociedade burguesa contivesse algo de heroico em seu próprio ventre, independente da luta de classe. Ainda assim, para Marx, os heróis da burguesia vitoriosa souberam, puderam e conseguiram expressar o poder constituinte de que o levante indicava a gravidez, para a seguir varrer o feudalismo e o Ancien Régime da França, introduzindo uma nova constituição material de sua sociedade. Tudo isso não aconteceu simplesmente em meio a discursos e debates parlamentares. A mutação histórica é trágica, também, porque embute uma solução violenta e sangrenta, onde o novo emerge graças a “muito heroísmo, além da abnegação, do terror, da guerra civil e de batalhas entre os povos”, amiúde consumindo os revolucionários no incêndio revolucionário que ajudaram a atear.
Já no segundo ciclo, iniciado depois do levante de 1848, tanto os vários partidos da burguesia quanto Luís Bonaparte e seus apoios buscaram eles próprios reencenar o teatro da Revolução Francesa, assumindo papéis originalmente ocupados por seus heróis: Napoleão, Danton, Marat, Robespierre. Aspiravam ao teatro trágico das grandes revoluções, porém, desta vez a repetição seria cômica. Ao suprimir a insurreição proletária pela força das armas, o Partido da Ordem expulsou do primeiro plano da cena a força motriz para a inovação histórica. Depois da restauração de junho, os embates internos ao Partido da Ordem não guardavam maiores propósitos, debatiam-se numa luta intestina pelo poder da República, mas que já não poderia, removida a luta, reabrir o porvir. Nessa situação, os personagens ficaram condenados a representar papéis abaixo da altura dos tempos, o seu barulho e as suas palavras de ordem portavam invariavelmente alguma carga de ridículo e de impostura. A apropriação das tradições passadas – a pompa com que se equiparavam a Robespierre ou Napoleão – estava servindo, assim, de mero disfarce que não enganava ninguém, segundo um teatro de figuras menores e ambições apequenadas. Resultou disso então a percepção geral de uma política reduzida às mascaradas, sem movimento real, e que era incapaz de reencantar a população francesa e reinflamar os espíritos para um novo ciclo revolucionário. No ciclo de 1848 a 1851, venceu o passado inerte enquanto compressão do cérebro dos vivos, para usar a imagem poética de Marx, entregando os personagens da trama às próprias autoilusões e impotências. Enquanto os personagens da Revolução Francesa ajudaram a fazer a história em meio ao turbilhão trágico da revolução, conduzindo à abolição da monarquia e a inauguração de um novo poder e novos direitos, aqueles do ciclo pós-1848 começaram o drama abolindo as forças da revolução, e fizeram a história do retorno da monarquia atrasada, da repetição do antigo regime, isto é, história nenhuma. O novo Bonaparte é uma figura cômica em relação ao tio – assim como cômico é todo o teatro de acontecimentos que se precipitou até o golpe.
Deleuze, em Diferença e repetição, extrai do 18 de brumário de Luís Bonaparte elementos para a construção de uma teoria da repetição histórica [6]. Ele inverte a ordem das repetições de Marx para, a seguir, adicionar um terceiro termo. Não, como em Marx, a tragédia e depois a comédia, a segunda como repetição fantasmática da primeira, mas sim, para Deleuze, a comédia e depois a tragédia. Pois, nesta reordenação conceitual das repetições, não há como atingir a repetição trágica sem antes assumir o passado como solo em que os personagens se movem. Somente entrando na história, em sua duração interna de velocidades e acelerações, lançando-se sobre a espessura, as pressões e ameaças do próprio tempo vivo, é que determinado personagem pode esforçar-se eficazmente para alcançar a potência de tudo o que ele pode, a potência trágica. Deleuze associa esta ao transformismo dionisíaco, em chave nietzschiana. A questão não circunda, portanto, ao redor de dois diferentes gêneros de representação, mas de um processo dinâmico de aumento ou redução da potência, entre comédia (grau mínimo, identidade com o passado) e tragédia (grau máximo, afirmação do novo, metamorfose). Não é caso, portanto, do personagem histórico selecionar entre representar um gênero ou outro, como se fosse uma decisão individual da vontade optar entre ser progressista ou servir ao retrocesso, como na mistificação que a burguesia faz de si própria. Está em jogo toda uma ética da repetição histórica que envolve a construção de potências na direção da transformação da historicidade. A esse duplo entre comédia e tragédia, Deleuze acrescenta ainda mais uma repetição, à qual as duas se vinculam e para o que existem, que é a repetição dramática. O esquema diádico de Marx (tragédia e farsa) se torna assim uma tríade (comédia, tragédia, drama). Cada uma das repetições assume a sua própria estrutura interna. A repetição dramática é atribuída à criação do novo, segundo uma repetição afirmativa e criativa, que agora Deleuze aproxima ao conceito de eterno retorno de Nietzsche. E este é o tempo do evento.
Também em Diferença e repetição, Deleuze se distancia da teoria hegeliana do teatro para desenvolver o método da dramatização, que pode ser utilizado para organizar uma conjuntura segundo o teatro de forças que nela age [7]. Como vários tempos estão implicados em função do tipo de repetição, numa coexistência do heterogêneo, a cena não pode ser organizada simplesmente numa sucessão de atos que vai do primeiro ao último, linearmente da premissa ao desfecho. Faz-se necessário, em vez disso, dispor os acontecimentos num plano em que eles diferem não só pela distância relativa uns dos outros, como também pelas diferentes alturas que seus personagens atingem em relação ao tempo do evento, ou seja, quanto à qualidade das forças, quanto ao seu posicionamento intensivo em termos do processo de repetição histórica. É por isso que a dramatização nunca se resolve numa análise da conjuntura de onde poderia ser definido um “o que fazer”, como um amanhã que decorre do ontem, ou como uma tendência de realização de possíveis que partisse de um reservatório inicial que cumprisse ao analista desentranhar das forças do presente. O resultado mais rigoroso da dramatização é um mapa organizado pelos elementos diferenciais entre as forças, suas diferenças de intensidades, a relação entre as suas variações. Noutras palavras, é tarefa para uma cartografia que lembra os mapas pictóricos do Renascimento, repletos de charadas, trechos enigmáticos e figuras barrocas que somente o percurso da viagem seria capaz de decifrar. Além disso, como as repetições cômicas e trágicas existem e servem, em última instância, para o tempo do evento (dramático), a dramatização procede pelo rastreamento das linhas de força em suas atualizações sobre o mapa, para tocar a potência do eterno retorno, – a sua “potência terrível”, as “forças puras, traçados dinâmicos no espaço que, sem intermediário, agem sobre o espírito, unindo-o diretamente à natureza e à história” [8].
O caráter trágico ou farsesco não deriva da escolha individual dramática, como se estivéssemos num mundo povoado por indivíduos virtuosos que gostariam de aliar-se à potência da história, e outros que prefeririam barrá-la. É a relação com o tempo do evento, pelo que as forças se subjetivam numa conjuntura, que vai vincular o posicionamento intensivo (maior ou menor altura) no processo da repetição. A cartografia pode, no máximo, contribuir para esse processo de instauração da força subjetiva. A análise materialista, em consequência, deve penetrar os cortinados e figurinos das tramas dadas pela ordem posta, para se cartografar forças, repetições, atualizações. A metamorfose do personagem somente acontece quando, embora tenha partido da tradição e de suas autoilusões (do passado), ele suplanta a velha linguagem a que se viu constrangido a falar e desde dentro cria outra que lhe é própria, – assim como aquele que aprende um novo idioma precisa esquecer a sua nativo enquanto fala, segundo outra metáfora de Marx [9]. Um esquecimento ativo para que o próprio passado seja transmutado num novo presente, a seu passo incomensurável em relação àquele, da mesma maneira como a repetição trágica é incompossível com a cômica.
O método da dramatização ajuda a evitar perder-se nas armadilhas de uma realidade paródica, numa repetição baixa que, uma vez institucionalizada como teatro político, só permitirá a atuação de personagens inaptos, paródicos, farsescos. Não é difícil atolar-se nessas condições baixas, porque elas se reproduzem infernalmente uma vez instaladas, do mesmo ao mesmo, como um ruído transbordante que vem junto com a naturalidade dos gestos, a comodidade dos lugares e a circularidade dos raciocínios. Fica-se acorrentado, nesses casos, à lembrança obsessiva da língua nativa (da terra natal, da mãe, do primeiro amor…), que não nos deixa em paz, e onde o passado se repete interminavelmente, como o fígado de Prometeu devorado pelo pássaro. Mas essa história soará farsesca uma vez vislumbrada, mesmo que num único lampejo de intuição, da altura das forças subjetivas que povoam a virtualidade de um tempo.
Em suma, as repetições trágicas e cômicas coabitam a mesma conjuntura como tendências práticas que se enredam, contrapõem e misturam em diferentes proporções, uma matéria feita de nuances para a dramatização e suas cartografias. Em Marx, voltando ao esquema diádico, essa seria a diferença entre linha ascendente (produção do novo) e linha descendente (paródia), no interior da complexa temporalidade que sucede a abertura revolucionária. O 18 de brumário, portanto, conta a história do predomínio das linhas descendentes derivadas da restauração das jornadas de junho pelo Partido da Ordem, até culminar no ponto máximo da farsa e mínimo da transformação, o golpe de estado perpetrado por Luís Bonaparte. Herói de uma comédia hegeliana em que todos são farsantes: golpeados e golpistas.
Uma dramatização a partir das jornadas de junho de 2013
Apoiado pelo método da dramatização, vai se analisar o que sucedeu no Brasil entre a restauração do levante de junho de 2013 e o impeachment de Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016. A queda do governo encabeçado pelo Partido dos Trabalhadores disparou análises de conjuntura catastróficas, que convergem na conclusão de que aconteceu no Brasil algum tipo de volta ao passado. O conceito de repetição vem sendo aplicado recorrentemente mediante a palavra “retrocesso”. Findo o período do PT à frente do governo federal, estar-se-ia voltando aos anos da noite neoliberal de 1990, à disfunção institucional e entropia produtiva dos anos 1980, ao regime de exceção dos anos de chumbo durante a ditadura militar, ou então, na direção de um horizonte ainda mais longínquo, à pasmaceira de atraso oligárquico e política dos coronéis da República Velha, que precedeu a etapa varguista da modernização.
O conceito de repetição comparece, ainda, quando o grupo político removido do Planalto recicla a imagem do golpe de estado de 1964 para descrever o processo de impeachment de 2016. Busca-se remeter a representação, assim, às tradições das esquerdas latino-americanas dissolvidas por golpes militares nos anos 60 e 70. Alternativamente, a inscrição do golpe numa linha contínua de conspirações das elites também é feita com referência aos mais recentes “golpes brandos”, nos casos do Paraguai (2012), contra o ex-presidente Fernando Lugo, ou de Honduras (2009), contra Manuel Zelaya. Assim como as facções da burguesia francesa golpeadas em dezembro de 1851, os petistas e seus aliados deblateram contra o retrocesso sacramentado pela posse de Michel Temer no lugar da presidenta eleita, em agosto de 2016. Em ambos os casos, os derrotados representam o próprio drama como tragédia histórica, pois, a seus olhos, exprimiriam uma força progressista e teriam sido ilegitimamente apeados do poder, sem que as massas “estúpidas e ordinárias” tivessem acorrido na hora H, para defender algo que seria, aliás, mais benéfico a elas próprias. A repetição também tem sido acionada na forma de um clamor pela recondução ao poder. Os grupos que foram destituídos reagrupam forças e expectativas ao redor do ex-presidente Lula para tentar um retorno ao governo federal nas próximas eleições de 2018. Em paralelo, parte da esquerda do PT anuncia que teria chegado a hora fatídica de uma “volta às origens”, de uma refundação segundo o “Espírito de Sion” do PT originário, voltando-se virtuosamente às bases populares, ao trabalho militante e aos movimentos sociais.
Na dramatização, como vimos, um dos pontos cruciais consiste em problematizar a estrutura linear do tempo cronológico, e desconfiar da seta que se moveria para frente ou para trás segundo uma única direção, separando as forças em progressistas (para frente), conservadoras (no mesmo lugar) e reacionárias (para trás). O vaivém entre progresso e retrocesso que define o sentido de uma conjuntura estaria, nesse raciocínio, determinado pela vontade política de que os personagens principais participam ou a que aderem, como uma espécie de escolha individual de gênero (do tipo “ser de esquerda” ou “ser de direita”). Os principais ideólogos dos governos progressistas, bem como boa parte das esquerdas, assumem essa lógica para escrever as narrativas históricas e estabelecer o seu próprio ponto de vista a respeito delas. Não causa surpresa, por isso, que o esgotamento e logo depois o total desmoronamento dos governos progressistas esteja sendo interpretado pelos intelectuais a eles filiados como um terrível retrocesso.
No método da dramatização, diversamente, as linhas do tempo se multiplicam e se enredam umas nas outras, num novelo pluritemporal em que passados, presentes e futuros coexistem e apontam para várias direções, onde a posição dos personagens não é dada pela escolha do gênero em que se pretenda representar esta ou aquela tradição, mas pela coordenada (sua distância em relação às demais forças) e intensidade (a sua altura em relação ao evento) das forças reais que movem a história. Dramatizar a conjuntura, para Deleuze, coloca a tarefa de reconstruir o teatro de forças a partir da coexistência de múltiplas temporalidades, do campo de interação entre linhas ascendentes e descendentes que se entrelaçam. Emaranham-se aí processos de longa duração e iminentes, o que torna oca toda formulação de urgência que não leve em conta essa espessura mais complexa.
No prefácio à segunda edição do 18 de brumário [10], escrito em 1869, Marx comentou duas outras obras de seu tempo, debruçadas sobre os acontecimentos que culminaram no golpe de Luís Bonaparte. A primeira delas, Napoleão o pequeno, pelo escritor Victor Hugo, Marx critica-lhe a redução da história do golpe à desqualificação sistemática de Luís Bonaparte, num retrato rasteiro e desconectado das linhas de força. Pontilhado de invectivas e sarcasmos, o texto de Hugo não alcança o conteúdo problemático da história, ao contornar o seu principal enigma: como é que uma figura tão desqualificada, tão pobre de qualidades, pôde ter sido erigida acima das demais facções à condição de herói? O golpe, desligado dessa problemática, fica reduzido a um “raio vindo do céu sem nuvens” [11].
A segunda obra, Golpe de estado, por Proudhon, para Marx se restringe a desdobrar uma sequência linear de fatos até o ponto final do coup, quando as tensões se resolvem em definitivo. Essa “história objetiva” perde de vista, por sua vez, a conjugação de deslocamentos e entrechoques de forças que seguiram a insurreição de 1848 e o seu subsequente esmagamento pelo Partido da Ordem. Resulta disso uma história do presente que ignora as forças subjetivas que o animam ou que deixaram de animá-lo, deixando a porte entreaberta por onde se contrabandeia um elogio a Bonaparte, já que, ao apagarmos as forças que determinaram o curso dos eventos, ele acaba figurando como o grande arquiteto do processo. Desse jeito, o personagem central é elevado a uma dignidade que não tem. Afinal, o ditador não obteve o poder pelo esforço de sua própria força, mas pela inanidade das outras, como consequência das decomposições sucessivas aceleradas pela supressão da luta de classe, três anos antes. Na avaliação de Marx, falta a Proudhon uma ferramenta de análise da conjuntura que lhe permitiria enxergar o registro paródico do encadeamento de fatos que se seguiram à restauração de junho, o que é essencial para não tomar um anão por um gigante.
Marx, diferente de Hugo ou Proudhon, quer explicar “como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que permitiram a um personagem medíocre e grotesco desempenhar o papel de herói” [12]. Evitando o erro dos “historiadores objetivos”, para Marx importa mapear as forças subjetivas que vitalizam a atualidade do teatro de representações, e de que maneira essa cartografia de forças precipita os acontecimentos segundo uma tendência trágica ou cômica, de acordo com o caso. Nesse sentido, a dramatização também pode ser classificada como um método da subjetivação da conjuntura, já que os personagens estão mais ou menos conectados a forças que extrapolam a objetividade imediata do que representam (não se resumem a gêneros: “ser progressista”, “ser reacionário” etc). Por meio da dramatização, se podem perseguir as linhas do teatro de forças e interiorizá-las na própria análise, enquanto ponto de vista parcial, buscando assim tomar parte da encenação. Esse método se revela também, consequentemente, uma ferramenta para a intervenção, para que a agitação histórica se infiltre num pensamento que se esforça para tomar pé da situação.
Ao romper com a explicação linear da história objetiva, Marx reconfigurou a estrutura do presente, colocando-o sob o signo da insurgência proletária, do conjunto de virtualidades que continua a assombrar a cena e seus personagens, como uma figura espectral e à espreita que mobiliza os acontecimentos e lhes confere graus de intensidade. Na dramatização, por conseguinte, não é suficiente romper com as explicações lineares e cronológicas, que se limitam a atrasar ou adiantar o ponteiro do relógio a partir de seu próprio posicionamento na narrativa. Além de multiplicar as linhas temporais em que se faz a pergunta sobre as horas, – e são muitas as horas, na simultaneidade presente do não simultâneo, – é preciso selecioná-las como linhas ascendentes ou descendentes, na medida em que toquem a repetição dramática, a “potência terrível” do evento. Evento, aqui, tem um significado conceitual preciso, relacionado com a terceira repetição do processo descrito por Deleuze – mas que pode ser acercado, também, mediante o conceito de emergência em Michel Foucault [13]. O evento se apresenta com a entrada em cena de novas forças, como no caso do levante de 1848 ou da força popular expressa na Revolução Francesa. O bom encontro com o evento é determinante para o caráter trágico ou cômico das repetições que o atualizam segundo diferentes linhas. As lutas políticas, golpes e contragolpes que buscam tocar-lhe a potência se realizam dentro das coordenadas e problemáticas rasgadas pelo evento, a que se vinculam, processualmente, as demais repetições – cômicas ou trágicas.
Ao transladar o método da dramatização para a nossa conjuntura, partimos das jornadas de junho de 2013 no Brasil como força desordenadora que reconfigurou as condições de contorno para a teatralização política. Quer dizer, se preparou o terreno em que os diversos personagens – debatendo-se em meio às suas tradições, bandeiras e autoilusões – passaram a agir, segundo movimentos ascendentes ou descendentes, alternâncias trágicas e cômicas. O levante popular junhista exprimiu a entrada em cena de uma força que, mesmo pacificada (a rigor, na forma de sua pacificação), passou a assombrar o presente histórico, dentro do que os atores políticos se esgrimiram. Junho mudou o caráter do drama como um todo. As jornadas de junho de 2013 não foram raios no céu azul. Elas catalisaram tendências, precipitaram linhas diversas e por vezes imprevistas de atualização, combinaram e recombinaram temporalidades de distintas escalas, e abriram brechas, – que nada mais são do que condições subjetivas para o fazer história, – para a criação efetiva do novo. Dramatizar essa densidade histórica em que estamos lançados, – para além da história dos historiadores ou da adjetivação jornalística (ainda que com a panache de um Victor Hugo), – é uma tarefa se quisermos compreender as forças subjetivas dentro do processo da repetição.
O evento não age diretamente sobre o encadeamento dos fatos, como uma sentença de partilha, para dar por encerrado um período e inaugurar outro, tal como nos intermináveis e enfadonhos vereditos de fim de ciclo que piolham nos períodos de crise. Pois não se deve confundir o evento com o intervalo quantificável de tempo entre dois ciclos. É o próprio evento que, retrospectivamente, vai permitir a cisão de um continuum em diferentes ciclos, cujos contornos e distinções se acentuam. Nesse sentido, o intervalo precede os pontos extremos. A metamorfose (segunda repetição) somente pode ser compreendida da altura do tempo do evento, para o que aquela existe e onde encontra a sua força. O contrário disso seria traçar uma dicotomia entre ciclo bom e ciclo ruim, entre progresso e retrocesso, um recorte normativo que invariavelmente vai se assentar sobre valores da ordem passada e, portanto, terminará condenado à repetição paródica. Para além disso, o evento interfere no novelo da coexistência de temporalidades, no conjunto de molas virtuais que relacionam e mobilizam os diversos tempos que se atualizam.
Em resumo, a diferença que aqui estamos nos delongando em clarificar consiste na diferença entre um encadeamento de fatos segundo a história linear e objetiva que a ordem presente faz de si para justificar a si, transformando a historicidade em valor e os fatos num contínuo de necessidades, e o desencadeamento de forças novas que irrompem de dentro desse presente, mediante repetições trágicas e linhas ascendentes, que põe em crise a historicidade e viabiliza a contingência como história (emergência). Este tempo dos tempos em que o evento opera é um hamletiano time out of joint. É quando a corrente dos nexos históricos de causa e efeito se estilhaça em mil elos que, então, se põem em variação contínua para reconfigurar o teatro como um todo, onde passamos a pisar, e para o que o método da dramatização serve de tateação orientadora. Tal força subjetiva e potencialmente subjetivante não emerge às claras, como um personagem bem desenhado dentro de uma trama linear, porque lhe faltam meios à disposição para isso. Ela é de direito trágica, habita os claros-escuros, em estado precário de desaparição, pelo fato que somente pode operar metamorfoseando-se enquanto se faz. Comparece na análise como força desarranjadora, anárquica, como sintoma da crise da historicidade em que nós próprios nos situamos, numa palavra: como um espectro, – para novamente recorrer a uma metáfora de Marx.
O levante de 2013 na metrópole brasileira foi um evento no sentido forte do termo. A insurreição proletária de 1848, segundo Marx, foi “o mais colossal acontecimento da história das guerras civis europeias”. Isso não significa que, por não terem atingido a potência trágica do levante do século 19, as jornadas de 2013 não tenham sido, à sua maneira, um evento. Assumir as barricadas de 1848 como termo inultrapassável de comparação quantitativa pode estar embutindo uma vontade normativa de julgar o presente por um fato passado, dando a medida do novo a partir do velho, apesar da mudança radical de coordenadas entre as duas repetições. Isto significaria elevar a insurreição de 1848 à categoria de julgamento, formulando ainda outra categoria normativa para se comparar com o que veio depois. É preciso ter olhos bem abertos, ao se deparar com comparações desse tipo, se aí não se infiltra insuspeitadamente uma vontade niilista, na acepção nietzschiana, que deprecia as forças vitais do presente para neutralizar a sua potência desorganizadora, enquanto guarda o passado bem nos baús da história objetiva (historicismo). Pois bem. As jornadas de junho de 2013– que no Rio de Janeiro se distenderam por um longo arco insurgente até outubro e o levante dos garis de fevereiro de 2014 – foram o “mais colossal acontecimento” da história das lutas no Brasil. Foi um processo de repetição completa que marcou a entrada no teatro de forças de uma nova configuração, enovelando as temporalidades históricas de outra maneira.
Claro que, dito isto, não demoram os ideólogos com seus sismógrafos descalibrados à mão, apressadíssimos em clamar questão de ordem e depreciar o levante de 2013, às vezes com o sarcasmo próprio do sacerdote judicante, noutras como a tia velha que se arroga no direito de distribuir conselhos sentenciosos ao filho do vizinho. Em ambos os casos, colocam-se a serviço do presente morto. Não tardará para que os mesmos que depreciaram junho de 2013 o tomem por nova categoria normativa, para desqualificar o próximo presente de que sejam inimigos, e assim sucessivamente. O que havia sido desqualificado depressa se torna categoria de desqualificação, de modo que o presente jamais deve ser suficiente diante dos ícones do passado. Marx dizia que o passado comprime o nosso cérebro, mas mais do que isso ele é comprimido contra os nossos crânios pelo historicismo que serve à vigência. Munido dessa coroa de cristo historiográfica, os mandarinatos passadistas no fundo manifestam o seu próprio sintoma: a paixão patológica pelo poder em que se estagnaram, para que se perpetue sempre igual, do mesmo ao mesmo. Para que nada aconteça. Acorrem ao passado para depreciar o presente cuja vigência desejam prolongar para além da aparição de forças novas, já que nesse presente ameaçado veem demarcada a sua própria zona de conveniência. Adiantam ou atrasam o relógio não porque sejam por si progressistas ou reacionários, como num gênero teatral, mas para acertar com o fuso horário do território onde trabalham confortavelmente como estátuas. Nesse lugar petrificado, só poderão mesmo produzir comédias ideológicas e narrativas farsantes, que é o que de fato continuam fazendo no Brasil.
A bem dizer, este ensaio não tem por condão demonstrar por que o levante de junho de 2013 foi um evento, tema já abordado noutros lugares [14]. Aqui, se trata de recapitular, por meio do método da dramatização, os traços gerais e as fases percorridas que se irradiaram da avalanche de 2013, como rios que afluem pelos relevos a partir de uma torrente a montante. Nesse propósito, é possível distinguir claramente três períodos principais: o período da pacificação, de 15 de outubro de 2013 a 26 de outubro de 2014, o período do ajuste desajustado, de 26 de outubro de 2014 a 2 de dezembro de 2015, e o período da farsa do impeachment, de 2 de dezembro de 2015 a 31 de agosto de 2016.
O primeiro período vai do último dia do arco carioca de protestos e ocupações do levante junhista, momento em que é deflagrada a fase mais aguda da repressão e os ativistas na rua são encarcerados à centena no presídio de Bangu, até a data do segundo turno da eleição de 2014, abrangendo o período da Copa do Mundo e a campanha eleitoral. O segundo período se inicia no dia seguinte à reeleição de Dilma e termina na abertura do julgamento de admissibilidade do processo de impeachment pela Câmara dos Deputados, cobrindo as passeatas verde-amarelas contra a corrupção, a instalação definitiva da crise econômica, e os primeiros desdobramentos ostensivos da operação Lava Jato, que arreganhava os dentes ao sistema político e seus operadores empresariais e financeiros. O terceiro período, por fim, cobre os nove meses do processo de impeachment, com destaque para a intensificação das culture wars entre coxinhas e petralhas, o avolumamento das manifestações de rua a favor e, em menor medida, contra o impeachment, até concluir no afastamento definitivo da presidenta pelo Senado.
O período da pacificação
Esse período teve como marca maior terminar com junho. O verbo terminar, aqui, assume dois sentidos articulados. O primeiro sentido de terminar com junho consiste em terminá-lo por meio de um conjunto coordenado de medidas repressivas e de contrainsurgência preventiva. Disso que o país é campeão, com o fito de pacificar o tumulto disseminado pelo país em 2013, especialmente, no Rio de Janeiro, onde as manifestações foram maiores e as ações mais diversificadas, intensas e persistentes. Os poderes constituídos tomaram a situação como questão de honra. Para a autoafirmação do poder coercitivo, não bastaria apenas reintroduzir o aumento das tarifas, revogar a moratória das remoções de favelas, suprimir os canais institucionais esboçados, desocupar as casas legislativas, conter a multiplicação inédita de greves, ou então silenciar os novíssimos movimentos de afirmação minoritária, como a campanha “Cadê o Amarildo?”, prefigurativa do movimento Black Lives Matter e dos protestos em Ferguson, nos Estados Unidos, ou a ocupação da Aldeia Maracanã, unindo na diversidade um conjunto de coletivos indigenistas e anarquistas. Mais do que isso, a pacificação deveria assumir um caráter preventivo para que junho nunca mais acontecesse, para destruir quaisquer condições remanescentes para o exercício de um contrapoder eficaz.
O segundo sentido do verbo terminar tinha outra conotação, embora associada à primeira. Significava levar a efeito uma parte do que o levante inseria na conjuntura, a fim de domesticá-lo por dentro, deixando passar certos fluxos em detrimentos de outros, com os quais a ordem poderia lidar melhor e, se fosse necessário, reamoldar-se. Era caso, então, de reprimir deixando passar, por meio da acentuação de linhas descendentes entre as muitas que se atualizavam a partir do esquema motor de junho. Nesta segunda acepção, tratava-se, sobretudo, de reinscrever os efeitos irradiados pelo evento na narrativa da ordem, achando para ele um lugar adequado dentro da configuração de vontades políticas existentes, apenas para negá-lo enquanto força desordenadora.
Os partidos e aparelhos do governo e as organizações de oposição participaram conscientemente das duas operações ao redor do imperativo de terminar junho, seja integrando diretamente o consenso repressivo e preventivo, seja normalizando o movimento “por dentro”. Quanto ao último aspecto, a normalização se deu, por um lado, com a substituição da antipolítica criadora por uma antipolítica ingênua, fundada nas verdades morais do justicialismo e do saneamento do estado, linhas descendentes que se organizaram a partir de 2014 nalgumas plataformas, como o Movimento Brasil Livre (MBL) e a rede “Vem pra rua”; por outro lado, com o esforço por magnetizar as indignações por meio de estruturas burocráticas dotadas de capital simbólico e atreladas explicitamente ao governo, como no caso do redimensionamento deliberado do MTST depois de junho, para proceder à pacificação pela esquerda.
Num estado que não tem pudor em batizar políticas públicas de “polícia pacificadora”, “garantia da lei e da ordem” e “choque de ordem”, a primeira operação mais diretamente repressiva não foi difícil. Bastou redirecionar as instituições já em funcionamento, cuja violência rotineira recebeu o reforço dos pacotes de exceção programados para as cidades-sede da Copa e das Olimpíadas. A partir de outubro de 2013, término do período mais quente do levante no Rio de Janeiro, a diretiva emanada desde o governo passou a ser “tolerância zero”. Aquele havia sido o mês em que manifestantes varridos das ruas começaram a ser encarcerados em presídios de segurança máxima sob a acusação de “organização criminosa”, enquanto eram expostos nas primeiras páginas de jornais de grande circulação como o hilota bêbado.
Ao repertório de brutalidades, somaram-se novos métodos e outros foram sofisticados, redes de vigilância foram incrementadas, técnicas policiais foram importadas de outros países, tais como o caldeirão de Hamburgo (ou kettling) e a “tropa de braço”, composta por agentes treinados em artes marciais. A eficiência da repressão incrementava: os protestos estavam sendo desbaratados já no momento da organização e concentração, e multiplicavam-se as escalas não letais da contenção, a fim de otimizar o desgaste pelos “efeitos colaterais” decorrentes da ação policial. A isso se somou uma nova fase de monitoramento digital, quando órgãos públicos de diferentes procedências rotinizaram o vasculhamento das redes sociais, grampos de perfis de coletivos e ativistas, e o desarme de eventos virtuais antes que pudessem ganhar volume. No front jurídico, primeiro se aprovou uma legislação que, originalmente voltada ao desmonte de milícias e máfias, logo teve a aplicação desfigurada pelas autoridades para golpear organizações políticas e grupos militantes. A nova lei foi sancionada por Dilma em agosto de 2013, sintomaticamente logo após os calores do mês de junho. O governo federal capitaneou várias das ações preventivas e repressivas, colocou à disposição dos poderes locais as suas redes de logística e informação, instalou centros de monitoramento e contrainsurgência, tudo para que a agitação não pudesse perdurar em anos de Copa e Olimpíadas. A federalização antijunho fez do Ministério da Justiça chefiado por Eduardo Cardozo, do PT, um autêntico Ministério da Polícia, pedra angular para a frente ampla do que se tornou, na prática, o Partido da Ordem brasileiro. Alguns intelectuais governistas cumpriram com o seu múnus na produção desse consenso repressivo que unificou a esquerda e a direita político-partidárias contra a multidão.
Em 2014, esse conjunto articulado de medidas foi intensificado, beneficiando-se de estudos providos por consultorias e movimentados simpósios com a nata da segurança pública nos vários níveis da administração. As autoridades do Judiciário, Executivo e Legislativo se orquestraram em encontros formais e informais, em gabinetes de crise e longos cafés da manhã e coquetéis de fim de expediente, sob a coordenação do poder federal, com holofotes voltados ao Rio e a São Paulo. No começo do ano da Copa, o governo infiltrou um agente da Força Nacional entre midiativistas no Rio, que relatou as movimentações da cena militante no período que precedeu e durante o megaevento. Aconteceu também uma escalada de pressões psicológicas, quando os diversos inquéritos em andamento começaram a disparar mandados de busca e apreensão, e intimações para depor, além de ameaças veladamente apresentadas como “recados”, por vezes acompanhados de uma mui amiga oferta de proteção, prática que, olhando de agora, parece inspirada nos filmes de máfia. Não havia lógica evidente na seleção dos alvos, talvez em consequência de uma mistura de desorganização proverbial dos aparatos e aleatoriedade proposital da repressão. Os grampos se generalizaram, atingindo escritórios de direitos humanos, partidos políticos da oposição de esquerda e alguns sindicatos que, à época, haviam se deixado atravessar pela força de junho.
O impacto sobre as nuvens movimentistas foi devastador. As ondas de choque da repressão se propagaram até revolver o solo afetivo que nutria os contrapoderes. O medo não só voltou para a margem de sempre, como o ambiente de manifestação se tornou sobrecarregado de paranoias. As práticas organizativas e os debates internos se saturaram de receios, hesitações, círculos viciosos, além de erigir à verdadeira obsessão a questão dos informantes e infiltrados. O que inicialmente acontecia numa dinâmica expansiva e contagiante, agora parecia fadado a fechar-se sobre si mesmo, com seus participantes desconfiando da própria sombra. Vários se deixaram paralisar pela atmosfera induzida de medo: medo de sair à rua, de juntar-se às ações, de panfletar nas ruas, de opinar nas redes sociais, de pertencer a qualquer coisa que lembrasse o universo de protesto. Muitos outros que haviam aderido logo no começo simplesmente perderam o interesse e foram fazer outras coisas. Num assédio diário, os principais meios de comunicação, reforçados pelas mídias governistas e seu sarcasmo de vencedor, concentraram todos os fogos na figura de uma minoria vândala e fascista, monstruosidade moral em nome do que qualquer manifestante poderia ser pacificado.
A essa altura, estava claro como a onda junhista, aquela sensação de que tudo era possível e que estávamos vencendo, havia quebrado e retraía violentamente por toda a praia. Alguns grupelhos, porém, leram a conjuntura à maneira leninista, embora o momento não fosse leninista, o que os arrastou para um vanguardismo às raias do sectário. O efeito foi fomentar mais cizânia e aprofundar as divisões internas e, enfim, a autofagia. Ao mesmo tempo, outros grupos, mais ligados a um recém-ampliado campo de autônomos, cujo padrão ouro era o Movimento do Passe Livre (MPL) de São Paulo, havia feito a leitura que o levante de junho no Brasil tinha sido realmente deflagrado por uma ação consciente, premeditada e estratégica deles próprios. Teriam calculado com êxito, em ambição premonitória, até mesmo o dia em que o aumento das tarifas seria revogado pela prefeitura municipal. Essa narrativa inscreve as jornadas de junho numa série intermitente de mobilizações contra o aumento das passagens de ônibus e pela tarifa zero, que remontam às revoltas do Busu (Salvador) e da Catraca (Florianópolis), em meados da década passada. Não resta dúvida que o estopim para os primeiros fogos no começo de junho de 2013 se deu quando o gesto profanatório dos manifestantes de primeira hora, em São Paulo, furou o cortinado jornalístico e inflamou a metrópole. Mas nem tanto ao céu. O vento já estava semeado de pólvora no Brasil e no mundo, com sismos localizados e manifestações dispersas em vários lugares, cada vez mais audíveis, que principiavam a entrar em ressonância, com destaque para a primavera gaúcha em abril [15] e a série de ocupas no Rio, em Belo Horizonte e na própria cidade de São Paulo, desde 2011. Um diagnóstico que se ouvia frequentemente de grupos que orbitam o campo autônomo e o MPL foi que haviam planejado controlar a produção da fagulha, mas não o incêndio que sabiam lhe seguiria. Era previsível o alastramento imprevisível do tumulto.
O MPL anunciou a saída das ruas em São Paulo no dia da queda do preço da passagem, quando os desafios apenas se descortinavam. Mais tarde, uma das conclusões dessa constelação foi que deveriam dar o próximo passo organizativo e federar o movimento – ou organizações aparentadas – pelas capitais de todas as regiões, além de construir por meio de trabalho de base e panfletagem uma capilaridade pelas periferias e bairros pobres, nos lugares onde estaria o sujeito revolucionário. Em parte, tal pretensão soa tão ambiciosa quanto querer abraçar as ondas do mar, dadas as dimensões continentais do país e a imensidão das periferias. Em parte, soa francamente limitada e até fantasmática, ecoando a velha ética cepecista do começo dos anos 60 de que era hora de “ir à favela” ou “subir o morro”. Como se, no mundo de hoje, houvesse um grande vazio a ser ocupado, num território já intensamente atravessado por uma malha de espaços produtivos, redes de exploração, protagonismos locais e dialéticas de legalidade/ilegalidade. Na metrópole contemporânea, a periferia, mais que espaço-lugar habitado por sujeitos, é um espaço-fluxo que está virtualmente em todo lugar (e em nenhum), numa subjetividade que se territorializa sem fixidez. O que não sugere um flat horizon, sob o crepúsculo branco do pós-modernismo, pois é certo que mesmo no capitalismo hoje a metrópole segue estratificada até a medula. A diferença para o passado é que os estriamentos e desníveis dados pela geografia social não excluem a conjunção de fluxos e redes que conectam centro e periferia, avenidas e quebradas, os dinamismos urbanos e as populações. Não mudou a violência do poder e do racismo, mas mudou a lógica desse poder. Nesse sentido, o evento de junho de 2013 já estava além dessa leitura cepecista pós-junho, cuja repetição da UNE de 1962 e da pedagogia do oprimido não condiz com o teatro de forças. Convergindo nos pontos nevrálgicos da metrópole, periferizando o centro, o protesto pôde ocorrer sem as mediações do poder territorial, sem as mediações partidárias e sindicais da esquerda homologada, sem ser imediatamente submetida ao poder de vida e morte da polícia, como nas favelas. De outra forma, tudo isso seria imponderável.
Num cenário já bastante comprometido, em 6 de janeiro de 2014, o funcionário de uma emissora de TV, Santiago de Andrade, foi atingido por um rojão disparado por manifestantes contra uma barreira policial. A cena acidental captada ao vivo e em cores foi repassada por semanas a fio em todas as emissoras, esticando ainda mais a narrativa das minorias perigosas. Dias depois, o cinegrafista morreu no hospital. O cenário que já era de refluxo se tornou, do dia para noite, de esfacelamento, o ponto final da era dos black blocs, que durou cerca de sete meses. Não haveria mais como o levante seguir por essa linha de atualização, que não era a única. Restaram apenas alguns poucos e pequenos grupos que, em cegueira voluntarista, sacrificaram-se sem resultados durante a Copa do Mundo. Os caldeirões de Hamburgo, a profusão de grampos e arapongas e a operação Firewall foram o buraco negro que engolfou os últimos focos resistentes que ainda se reportavam em linha direta com as noites junhistas. A repressão derradeira veio em meados de 2014 com a montagem de um inquérito-mãe no Rio de Janeiro, de caráter permanente e sigiloso, que contém o cadastro de milhares de militantes, advogados populares, intelectuais, jornalistas e midiativistas. Daí por diante, o inquérito maior era desmembrado sempre que fosse necessário descer a espada de Dâmocles sobre o pescoço de um grupo em particular.
Quanto à segunda operação, de controle “por dentro”, ela também se realizou por meio do esforço de reencadear junho de 2013 em sequências temporais lineares. Narrativas neutralizadoras foram reproduzidas nas várias mídias, a fim de soterrar os rastros do evento pelo ruído e restabelecer a ordem do dia. Nesse grande esforço por suprimir o real, nasceu a “guerra de narrativas”, que se beneficiou do ambiente superconectado das redes sociais. Essa disputa essencialmente simbólica opôs exércitos de bots, militantes de partido, movimentos de direita e esquerda, bem como uma extensa ramificação de seguidores em várias camadas, dos mais incondicionais aos mais críticos. Foi o tempo em que a luta política entre facções passou a nos ser apresentada em gráficos de mapeamento do Twitter ou Facebook, segundo metodologias duvidosas e facilmente manipuláveis pelos lados dessa mesma guerra de memes.
À esquerda de governo, a narrativa confeccionada pelo estado-maior governista e suas linhas auxiliares denunciou o ovo da serpente que estaria sendo chocado nas manifestações e nas redes, cujos signos se evidenciariam na volta dos caras pintadas de verde e amarelo, no antipetismo e numa gritaria genérica e direcionada contra os corruptos. Tudo isso, toda essa sociedade mobilizada atrás de formas e narrativas, não passaria da extravasão irracional de ódios e ressentimentos de classe, conveniente para a manipulação pelos verdadeiros donos do poder: as elites globais e nacionais, interessadas em tirar o PT do poder. Os fascistas estariam borbulhando das profundezas racistas e classistas da história do país, a revolta do conservadorismo de fundo. O governo, em consequência, era injustamente contestado por suas próprias virtudes, por ter presidido o processo político que levou às conquistas sociais e de acesso dos pobres que tanto incomodam as elites brancas brasileiras. Tudo somado nesse ramerrão didático, o fio condutor dessas narrativas governistas é estendido entre o levante de junho e o impeachment em 2016.
Identificar a origem dos males em junho de 2013 se assemelha, em vários pontos, àquela construção de enredo que Marx criticou no livro Golpe de estado, de Proudhon. Ao historicizar o evento fincando o espantalho de um hipnótico levante fascista, que teria escancarado os portões do inferno, essa campanha governista e esquerdista acaba, na verdade, superestimando os personagens da trama, que de outra forma não passam de caricaturas de uma paródia. Exemplos disso estão na mão que a esquerda dá à capitalização midiática de figuras que se apresentam como extremistas, como do ultranacionalista reacionário Jair Bolsonaro, cuja brand bem sucedida classifica os filhos entre os primeiros lugares de qualquer eleição parlamentar. No começo de 2014, o governo também investiu na organização de missas vermelhas encabeçadas pelo MTST e CUT, convocando suas fileiras disciplinares para assim causar o máximo contraste com o que seria o outro lado: ricos, fascistas e ressentidos vestindo a camiseta da CBF. A ação tinha público-alvo, montada pelos dirigentes-cenógrafos para mexer com os instintos da esquerda plantada na universidade e na produção cultural, mas com bem menor êxito com os das populações mais pobres da periferia que, esperançosamente, o MTST deveria dirigir para a luta de classe pela força do exemplo. Desde 2013, o movimento liderado por Guilherme Boulos alavancou o próprio posicionamento nos cadastros de programas oficiais, intermediando o acesso de seus membros aos benefícios e direitos propiciados pelas políticas do governo em troca de pontos de participação política, isto é, disciplina e comparecimento aos eventos. A manobra estratégica coreografada entre PT e MTST uniu o útil ao agradável, para servir de primeira linha de ocupação das ruas contra a insurgência coxinha e promover um movimento de rua homologado dentro do slogan da “guinada à esquerda”. Essas foram, contudo, marchas anódinas, ordenadas segundo uma hierarquia de fábrica, guiadas por uma direção rígida, cujo estofo se compõe de um número regular entre cinco e dez mil manifestantes, dependendo do fôlego dos organizadores. Numa hora decisiva, às vésperas da Copa, essa tentativa à esquerda de repetição de junho foi rápida em negociar com o governo a saída das ruas, o que desmobilizou parte da energia esperada para os protestos durante o megaevento de 2014, período privilegiado em vista da cobertura midiática internacional. Nos anos seguintes, o MTST mergulhou de cabeça na defesa do governo, salpicando o apoio explícito com críticas líricas, e cuidando para que a carga selvagem de junho não comprometesse o comando rígido que deveria ser mantido sobre símbolos, discursos, percursos e filiações.
À direita, por sua vez, a leitura predominante foi que junho de 2013 teria sido uma manifestação em defesa da sociedade contra a apropriação do estado por uma camarilha de parasitas e oportunistas. Tratava-se, então, de levar a cabo o impulso de junho, com o fito de sanear o estado e restituí-lo à lídima representação dos eleitores e contribuintes. Aqui se desenvolveu outra operação típica do Partido da Ordem, ao reduzir o evento à reforma de um estado essencialmente positivo e servidor do interesse geral, tachando todo o resto de contaminação ideológica e aparelhamento partidário. Essa operação consiste em opor à sociedade que vai às ruas com boas intenções, uma minoria criminosa e anárquica, um inimigo interno. Mesmo quando essa “minoria” exprima tensões e expressões que perpassem todo o substrato social, como aconteceu nas noites de fogos e barricadas de 2013. No 18 de brumário, Marx escreve como “a sociedade é salva sempre que o círculo dos seus dominadores se estreita, sempre que um interesse mais exclusivo é imposto a um mais amplo” [16]. O interesse mais exclusivo, no nosso caso, havia sido transmutar a antipolítica em sua carga desarranjadora da história, – um grande não detrás do que muitos sim se tornam possíveis, – em antipolítica ingênua, dirigida unicamente para melhorar o estado e limpar o poder daqueles que, contingentemente, teriam se apropriado dos aparatos. A estratégia discursiva, portanto, consistiu em sucessivamente enquadrar o desejo proteiforme de mudança numa vontade política que pudesse alinhar-se aos anseios da oposição partidária e extrapartidária. À moda do romance Il Gattopardo, o caso era que algo mudasse para que as coisas permanecessem iguais. O contraste obsessivo com os vândalos, anarquistas e black blocs (que em vez de fascistas, aqui, eram tachados de esquerdistas) tinha por objetivo delinear uma linha clara para separar o joio do trigo. Uma vez deduzida de seu conteúdo de luta, a indignação era então reconduzida ao cívico, cujos signos são bem mais fáceis de manejar. Essa foi, sem dúvida, uma operação que teve a sua eficácia com determinado público-alvo, mas esteve longe de capturar a matéria disseminada de indignação e desejo pairando desde as jornadas de junho. A bem dizer, à direita a relação estabelecida com as redes de junho foi mais generosa e, também por isso, mais frutífera nas captações de fluxo, embora durante todo esse processo ela não cessou de tentar terminar com a carga transformadora. O fio condutor, neste caso também, vai de junho de 2013 ao impeachment, embora com o sinal trocado se comparado com a contenção à esquerda. O evento deveria ser terminado, mas por outra via.
Independente da quadratura redutora que tenha sido adotada, depois de junho os poderes institucionais e as forças políticas convergiram reunindo a quase totalidade do espectro ideológico e partidário do Brasil, as autoridades, as opiniões públicas, os meios de comunicação, os produtores de discurso. O gesto comum das diferentes linhas de ação foi historicizar o evento, cada qual a seu modo de maneira a atribuir-lhe prolongamentos autorizados e agendas homologadas. Nesse processo, se estigmatizava o antipolítico, a anarquia, o descontrole, a novidade, todos os elementos que chacoalhavam os esquemas preexistentes. Como na França do século 19, o que não se previa era que, suprimindo o antagonismo de junho, o teatro político adentraria numa fase impotente em que as representações passariam a se debater autofagicamente, tal como na decomposição do Partido da Ordem. Reinvindicações de “saída da crise” passariam a soar vazias, dado que não havia mais força a impelir uma intervenção eficaz na conjuntura.
Esse tremendo esforço discursivo, financiado por verba grossa pelos partidos políticos, abasteceu a “guerra de narrativas”, opondo como numa comédia os estereótipos de coxinhas e petralhas, um duplo des-dramatizador. O “confronto” entre coxinhas e petralhas foi o duplo farsante, mais uma repetição cômica das jornadas de junho de 2013. Orientadas para o calendário eleitoral e animadas pelo instinto gregário e centrípeto de seus exércitos, as guerras de narrativa absorveram as energias que poderiam ter atualizado outra linha de fuga a partir do evento. Isto, contudo, não aconteceu. Estridentes nas redes sociais, se mantiveram ao longo do período numa altura bastante rebaixada, em relação à potência antagonista de junho. O teatro de sombras entre coxinhas e petralhas sublimava a antipolítica numa guerra cultural. Não chegou perto da altura de antagonismos de junho, que tinham posto em xeque da narrativa teleológica do progressismo à redenção urbana ambicionada pelos megaeventos, passando pelos abalos transmitidos aos consensos políticos e modernizadores.
Apesar dos muitos fronts de pacificação, as jornadas persistiram segundo a sua duração interna não linear, ainda capaz de contagiar por meio de saltos de espaços e em tempos não contíguos, reaparecendo diferente. Um exemplo de repetição descontínua se deu no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2014. O que era para ser mais um episódio sazonal de reivindicação para a reposição de salário perante os patrões, saiu do controle do sindicato para se transformar numa greve a gatto selvaggio de grande proporção. Os garis cariocas abandonaram a mesa de negociações para realizar uma greve de novo tipo, com mobilização por celulares e redes sociais, e envolvimento transversal da metrópole que ainda sentia a agitação do ano anterior. Com adesão majoritária dos trabalhadores, os grevistas conseguiram emplacar uma paralisação ampla bem no feriado de Carnaval. Cheio de turistas nacionais e internacionais em clima de festa, o Rio dos cartões postais teve de conviver com pilhas intermináveis de lixo, uma montanha com centenas de toneladas largadas pelas ruas. A proliferação de pragas, mau cheiro e dejetos humanos levou a cidade à beira da calamidade. O governo municipal ficou sem saída. Os garis ganharam a queda de braço contra os dispositivos securitários, a prefeitura, a empresa de lixo e o próprio sindicato da limpeza urbana. Resultou dessa mobilização não só um aumento significativo do salário (37%) e uma extensa pauta de direitos, como também a formação de um terreno de autovalorização, a partir do que poderiam seguir lutando. A relação favorável de forças depois dessa vitória durou cerca de um ano. No Carnaval de 2015, o Partido da Ordem já havia se preparado para uma nova eventualidade. Tinha mapeado os principais articuladores do movimento, antecipado contratos temporários para suprir qualquer paralisação e concertado forças de segurança para desarticular a movimentação grevista. Num momento em que as ruas junhistas estavam pacificadas, os novos grevistas acabaram repetindo o mesmo formato e a ação direta desta vez não durou muito e naufragou, sem adesão para atingir massa crítica. Seguiram-se demissões às centenas, ameaças pessoais e inquéritos policiais orientados contra figuras mais conhecidas, além do acionamento de um programa de mecanização da coleta do lixo e terceirização da atividade como um todo, numa virada estrutural do trabalho de limpeza.
Entre outubro de 2013 e a Copa das Tropas, a ordem foi recomposta. Mal havia dado tempo para uma autocompreensão da enormidade que tinha acontecido durante as jornadas. Mal havíamos esboçado as primícias da discussão, sobre o que se poderiam imaginar os próximos passos do assalto ao céu, quando de repente o céu se abateu de uma só vez sobre as nossas cabeças. Os operadores convencionais do poder punitivo, as autoridades mobilizadas e os políticos, da esfera municipal à federal, do Judiciário ao Executivo, não perderam um só minuto para reunir-se, reagrupar-se, ponderar uma estratégia comum e coordenar a rajada de ações repressivas. Lançaram-se todos à iniciativa. Era imperativo, do ponto de vista da ordem, assegurar a paz total para os megaeventos que apresentariam o Brasil antecipado na publicidade. Como resposta às perseguições e prisões, mais de cem coletivos no Rio de Janeiro se coligaram no Comitê contra o Estado de Exceção, mas a essa altura já havia sido desferido o golpe de misericórdia contra os combalidos grupos que ainda restavam.
Os aparelhos institucionais e partidários em seu conjunto, com escassas exceções junto à oposição de esquerda, formaram o Partido da Ordem, – uma repetição distante, porém pressentível, da união selada entre legitimistas e orleanistas, republicanos e democratas, para reagir à insurreição proletária de 1848. Não que houvesse um Partido do Levante a ser contraposto, dado o nível de desagregação em que se encontrava tudo aquilo que ainda tinha conseguido preservar a fisionomia do levante de 2013. Foi uma contrainsurgência [17], sobretudo, preventiva: que não se repetisse, que jamais fosse novamente sequer cogitado. Quando da realização da “Copa das Copas”, o levante no ano imediatamente anterior já nos parecia uma quimera distante, esmagada pela máquina de moer gente que o governo comandou e ajudou a aperfeiçoar. Quase três anos mais tarde e as redes governistas passariam a disseminar o discurso do golpe de estado contra o Bonaparte da vez, mas as únicas tropas e tanques que havíamos visto nos últimos tempos foram as que o próprio governo golpeado colocou nas favelas a ser pacificadas, nas cercanias dos megaeventos, nos leilões dos campos de petróleo, nas grandes obras das empresas campeãs nacionais, para garantir a lei e a ordem, para exercer a violência legítima contra os irresignados, os “criminosos”, os indígenas, contra os manifestantes, para fazer reinar a paz… Hoje o manifestante compraz-se de gritar “Fora Temer” como se performasse um grande gesto subversivo, mas a mensagem essencial que o novo governo adotou por mote, “Ordem e Progresso”, na verdade nascera durante a violência repressiva de junho. Em 2014, o golpe já tinha acontecido.
Até este ponto, nos restringimos a relatar a história objetiva da pacificação de junho. O caso dos garis nos indicou, a propósito, que as jornadas não se esgotaram na sequência de fatos diretamente decorrentes do levante, numa relação simples de causas e efeitos que se espalham pela linha do tempo. Outra variação do tema, deslocada de continuidades lineares, foram as ocupas de escolas que se espalharam pelos estados de Goiás, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro, a partir de 2015. Segundo Pablo Ortellado, em prefácio a Escolas de luta, a série de escolas ocupadas foi “a primeira flor de junho, o primeiro desdobramento dos protestos de junho de 2013” [18]. Isto por si só já seria suficiente para alertar-nos sobre o risco de converter um evento constituinte numa espécie de mito de origem, a partir do que se poderia falar em “geração de junho”. Por vezes, a cristalização de uma origem embute a formação da representação dessa origem, o que termina por repetir o evento de maneira impotente. Como em Deleuze, o evento diferencia-se em si mesmo, atualiza-se em cascatas de repetições que não se prendem à cronologia e cujos mecanismos de identificação se libertam dos signos iniciais. Vale aqui, levemente deslocado, o célebre alerta deleuziano de “não confundir o futuro da revolução com o devir revolucionário”.
Isso é válido, inclusive, para as operações de restauração, que não sossegam simplesmente interrompendo a história objetiva, precisando também intervir no tempo das forças para sublimar as subjetividades. É nesse sentido que o período eleitoral de 2014 foi a coroação do período de pacificação. Foi o antijunho por excelência, ao desmobilizar a carga de subjetividade que, à margem das continuidades diretas (já seccionadas), seguiam pulsando por debaixo da conjuntura. Nas jornadas de 2013, a luta decorria do enfrentamento com as instâncias de governo e controle da metrópole: o sistema de transporte, a mobilidade urbana, a crise da moradia, a dominação das máfias capitalistas nos negócios da cidade, a violência estatal, o racismo institucional, o estado de exceção cotidiano. Em outubro de 2014, a polarização emanou de cima para baixo, em função da verticalização eleitoral. A casta política entrincheirada no Partido da Ordem havia sobrevivido aparentemente incólume ao terremoto das jornadas, como o gato que, lançado ao ar, dá várias cambalhotas até cair de pé. Os principais articuladores dos governos estavam refugiados em bunkers de coordenação militante e marketing político-eleitoral, distantes da efervescência que não tinham como compreender. A partir dessa torre de marfim cravada numa vasta cadeia alimentar de assessores, cabos eleitorais, dirigentes, intermediários, laranjas, consultorias, bots digitais e jovens apparatchiks, eles passaram a emitir diretivas na velocidade dos tweets, SMS e likes do Facebook, mobilizando o seu exército a soldo bilionário.
No segundo semestre de 2014, os indicadores socioeconômicos sinalizavam não só para a estagnação da curva de crescimento econômico e desenvolvimento social, como também para a sua iminente inflexão, pela primeira vez em mais de uma década. Foi aí que o bunker governista decidiu surfar na “guerra das narrativas”, levando-a um novo patamar de intensidade e investimento real. Durante a década de 1990, o PT se notabilizou por levantar o estandarte da ética da política, no que se diferenciava dos partidos fisiológicos e biônicos. No começo dos 2000, com o primeiro governo Lula, o PT assumiu o carro-chefe da remediação da fome e da miséria, reorganizando as políticas sociais para, ato contínuo, massificá-las numa escala inédita. Em meados dessa mesma década, já embalado pela inclinação ascendente da economia, deslocou para o centro de sua identidade política a questão da formação de uma “nova classe média”. Com o PT e Lula, cem milhões de brasileiros teriam sido tirados da pobreza e levados à classe média. Reatava assim com a esperança que marcou o século anterior: o Brasil teria reunido condições para realizar a travessia tantas vezes prometida, da situação de país fraco de miseráveis para um país forte de classe média. Nesse período, além da comunicação oficial, livros com grife acadêmica demonstravam pomposamente o lado brilhante da nova composição social, ao passo que ideólogos de carteirinha davam piruetas dialéticas para justificar os pactos e arranjos do lulismo como o “limite máximo da correlação de forças”, o projeto possível para uma esquerda pragmática. Durante os dois mandatos de Lula, o governo e o PT não buscaram tingir a sua identidade de vermelho, à moda das esquerdas bolivarianas da Venezuela, Equador ou Bolívia sob a legenda do socialismo do século 21. Pelo contrário, a imagem passada era de moderação, realismo político, composição do diverso.
Depois de junho, paradoxalmente, o governo foi submetido a um red washing. Há uma lógica nessa reorientação. Se a antiga ética na política não enganaria ninguém em tempos de megaescândalos, e se o discurso da nova classe média poderia ser recepcionado pela maioria como afronta, pois já se sentiam no bolso os efeitos recessivos, então era a hora de apelar para outra coisa. O bunker decidiu, então, jogar as fichas na “guinada à esquerda” e em “barrar a direita”, na linha que vinha de junho de contrapor-se simbolicamente à insurgência coxinha. Porque funcionava com as esquerdas. Então Dilma venceria a reeleição mais “à esquerda” do que seus adversários, mais à esquerda do que Aécio e Marina, mais à esquerda do que a própria força social que se mobilizava contra ela.
Era difícil imaginar como o PT seria capaz de arrastar a esquerda para o buraco negro da deslegitimação popular, já que o clima de fim de feira imperava. O drama foi que, justamente no ponto de esgotamento do projeto de governo, e depois de fazer-lhe oposição consistente durante pelo menos uma década, uma parte significativa da esquerda não governista aderiu em bloco ao PT. Isto, novamente, só pode ser explicado pelo espectro de junho. O sentimento reativo às mobilizações de massa que não só passavam por fora dos aparelhos e engrenagens burocráticas da esquerda, como também negavam os seus símbolos e identidades, isso foi demais para os militantes, dirigentes, quadros e intelectuais. Entre a restauração de junho e a eleição de 2014, uma variação tropical da síndrome de Weimar contaminou as redes das esquerdas brasileiras que seguiram o PT como uma manada de lemingues ao precipício.
Justiça seja feita, o núcleo decisório do PT soube conectar-se espertamente com os instintos de uma esquerda que vinha aterrorizada desde a manifestação emblemática de 20 de junho de 2013. No Rio, nessa data, aconteceu o maior dos protestos, mais de um milhão de pessoas de muitos bairros da cidade enfrentaram uma força policial que mais parecia um exército cinematográfico. Os manifestantes pararam a principal artéria da cidade, subiram faixas e cartazes, gritaram “Fora Cabral” e “Não vai ter Copa”, levantaram barricadas na avenida, queimaram ônibus, viraram carros, saquearam lojas, reduziram agências bancárias a pó, e profanaram de peito aberto o símbolo máximo do poder punitivo – o blindado do Caveirão. Esse foi o triste dia que o estado reprimiu uma manifestação de um milhão de pessoas, num espetáculo que se ramificou em muitos focos madrugada adentro. Foi nesse dia 20, também, que sucedeu o famoso episódio das bandeiras. Ao perceber a massificação do levante pelo Brasil, militâncias partidárias e movimentos sociais tradicionais resolveram aderir às manifestações, organizando-se no formato tradicional do bloco vermelho com seus símbolos. Quando se juntaram à colunata barroca que caminhava na direção da Prefeitura, foram surpreendidos pelo repúdio de muitos presentes. Os manifestantes ali enxergavam signos do aparelhamento partidário e da verticalização corrupta que atribuíam à casta representativa, contra o que protestavam em primeiro lugar. Não obtendo resultado com as vaias, ante a insistência dos movimentos em portar seus símbolos, alguns manifestantes ficaram mais agressivos. A exigência para que as bandeiras fossem abaixadas, e o espancamento de alguns militantes que resistiram com elas, provocaram o escândalo nas redes sociais e em seguida uma reação furiosa e instintiva, que concatenou esquerdistas pelo país contra o que seria um levante contaminado por fascistas.
A esquerda brasileira visivelmente estava desacostumada com o deserto do real. Na primeira ocasião em que tiveram para relacionar-se com um levante em sua terrível potência, em toda sua impureza e polivalência, se espantaram em não encontrar a zona de conforto de suas mobilizações com 200 ou 300 cupinchas, dessas que vão do ponto A ao ponto B com pauta fechada e dentro de um calendário, e onde todos tendem a se conhecer, consumir as mesmas referências e frequentar os mesmos círculos. No episódio das bandeiras, estava inaugurada a “guerra dos panos”, que iria deslocar os antagonismos para a questão secundária das cores e identidades, até fluir nas culture wars entre vermelhos e amarelos de 2015-2016. A metrópole flertava com uma situação insurrecional e alguns militantes da esquerda tradicional reivindicavam abstratamente nas redes o direito de levantar uma bandeira… O raciocínio, baseado em premissas completamente erradas, era que se os fascistas saem do armário, também saímos nós, os pures et dures. Os únicos despolitizados nesse caso foram a própria esquerda. Daí, como saldo emocional, se estabelece definitivamente a sensação de insegurança de se estar cercado por um caldo hostil permeado por pessoas desconhecidas, despolitizadas e perigosas, uma sensação de medo que iria fornecer a cola para a “guerra das narrativas e dos panos”, base do reagrupamento desastroso das esquerdas ao PT e ao governo, justamente quando mais precisavam criar algo novo e sair do impasse.
A repetição dos símbolos vermelhos contribuiu para o fortalecimento de seu próprio duplo paródico, a paródia da paródia: o manifestante antibolivariano que via no PT um projeto comunista, o que também ganhou escala depois de junho. O palco estava montado: de um lado, os orgulhosamente vermelhos, do outro, o grito que a bandeira jamais será dessa cor. Eis a grande guerra, o oco do oco para disputar com o oco do oco, a falsa mediação contra a medição falsa, a farsa cômica contra a comédia bufa, pois não havia, entre petralhas e coxinhas, nem comunistas nem fascistas propriamente ditos. Mas foi o suficiente para saturar as redes sociais num motor infinito de memes. Tudo isso deixa também um sabor de repetição de uma atmosfera anglo-saxã, relacionada à febre de political advocacy nas redes sociais e a aparição barulhenta dos movimentos identitários setentistas e seu estilo de talking bitterly.
Chegada a eleição de 2014, toda essa guerra de signos que substituiu o levante de junho entra em sua fase eleitoral. Basicamente, a campanha de Dilma se concentrava em declarar que não havia crise séria à vista, em vez de assumir-lhe a iminência, como Aécio Neves e Marina Silva haviam feito. Além disso, Dilma assegurava que, mesmo que houvesse crise, não adotaria as medidas de contenção de gastos públicos e sociais que os adversários, uma vez eleitos, certamente farão. “Nem que a vaca tussa!”, era o bordão dilmista. Insistia-se que, por trás das narrativas e coloridos, a diferença real entre as candidaturas estaria no econômico: as questões centrais giraram ao redor de: autonomia do BC, taxa de juros, subsídio à indústria. A campanha chegou a veicular um comercial contra Marina em que a comida desaparecia dos pratos da família brasileira, enquanto na sala vizinha um grupo de banqueiros se refestelava num banquete. Era a tal “desconstrução” dos adversários. Traumatizada desde junho de 2013, mesmo uma oposição de esquerda mais antigovernista deixou a sensibilidade ser arrastada pelo vagalhão de apelos simbólicos, chantagens emotivas e mentiras ostensivas. O momento, diziam, era delicado.
O resultado, como se sabe, foi a reeleição de Dilma, que derrotou Aécio pela menor margem da história das eleições diretas a presidente, apenas 3% do total de votos válidos. As urnas aparentemente homologavam a “guerra das narrativas”, e os marqueteiros do PT abriram champanhe dentro do bunker que resistira ao terremoto de junho – e dele se vingava. No dia da vitória, bandeiras vermelhas, camisetas da CUT, bonés do MST e estrelinhas do PT se disseminaram numa grande festa. Dilma mentiu duas vezes e venceu.
O período do ajuste desajustado
Imediatamente após a eleição, Dilma reconheceu a existência de uma séria crise e anunciou que realizaria o ajuste fiscal, com cortes de gastos públicos e sociais. Um intelectual ligado ao PT se limitou a dizer que ela “mudou de estratégia”. Mas o pacote de maldades para a política econômica já vinha sendo cozinhado pelo Ministro da Fazenda cessante, o petista Guido Mantega, que presidiu a pasta entre 2006 e 2014. O governo tinha clareza para si que a primeira tarefa uma vez passada e eleição seria remediar o rombo nas contas públicas. E o homem certo para a tarefa deveria ser “do mercado”, para atrair a confiança dos investidores e evitar um desabamento dos ratings duramente conquistados pela economia do país durante o período Lula. Depois de ter recusado o convite feito ao presidente do Bradesco, Dilma nomeou para o lugar de Mantega o economista Joaquim Levy, um ortodoxo formado na Escola de Chicago. Aos apoiadores da esquerda restava digerir o fato que a guinada à esquerda, fora da bolha das narrativas, não havia sido sequer cogitada. De guinada não sobraria nada, nem mesmo o mais sutil aceno. Com isso, as bandeiras vermelhas, os gritos de guerra socialistas e toda a armação discursiva eleitoral se revelavam o que de fato sempre haviam sido: uma comédia ideológica, uma repetição impotente para um presente de onde não se conseguia sair. Aquém dos panos vermelhos, o programa econômico adotado seguia rigorosamente os delineamentos da oposição que, imediatamente antes, tinham sido demonizados. Era como se Dilma entrasse naquele comercial eleitoral famoso, para então convidar os mercadores refestelados a comandar a economia em seu governo, depois que terminassem a sobremesa.
O impacto no solo afetivo foi rebaixar, uma vez mais, o horizonte de expectativas. Se até aquele momento, a maquinaria de propaganda tinha sido bem sucedida em encaçapar as esquerdas, agora teria que administrar a decepção. A já difícil gestão das expectativas se converteu, em pouco tempo, numa impossível gestão das frustrações. A carga de expectativas depositada no PT foi rebatida de vez para baixo da linha do horizonte. A último trincheira passou a ser o horizonte negativo, no jogo perde-perde em prol do menos pior. O “limite máximo da correlação de forças”, dali por diante, era o ponto em que as esquerdas cercadas conseguiriam edificar diques contra o avanço conservador, a grande vaga fascista, a cavalgada do kathecon – todos os rebentos de serpente lançados no teatro político pela chocadeira de junho.
Com as urnas ainda quentes, a oposição de esquerda e os movimentos sociais do campo do PT voltaram às ruas para denunciar o “ajuste fiscal do Levy”. Era a solução de compromisso para opor-se ao governo ma non troppo, prolongando a batalha simbólica do período eleitoral. A figura do ministro Levy deveria ser imolada sozinha, como se não estivesse trabalhando para Dilma e o ajuste fiscal não fosse uma decisão tomada pelo seu núcleo duro. Contudo, tal estratégia de crítica meia boca, devido ao “momento delicado”, só poderia ter sido mesmo duplamente mal sucedida. O efeito sobre o governo foi dificultar uma ação estratégica que já havia sido tomada, provocando dissensões internas no PT numa hora sumamente crítica, ao passo que sobre parte da população o protesto não teve nenhum sucesso em incorporar novas forças. A mensagem era confusa, contraditória e hesitante.
Essa linha crítica focada no que seria uma virada neoliberal de Dilma empurrava para segundo plano as verdadeiras causas da crise, atendo-se aos sintomas mais recentes do que era um processo de maior duração. Critica-se o remédio, mas não se diagnostica a doença. A crítica centrada no “ajuste do Levy” dissimulava os fatos geradores da própria crise, como se estivéssemos ainda nos anos 1990 em meio a uma espiral recessiva precipitada pelas medidas de austeridade. Só que o Brasil, no mundo real, vivera 13 anos do governo do PT cuja tônica foi, exatamente, buscar a construção de um novo modelo de desenvolvimento. Essa incapacidade orgulhosa de metabolizar os impasses para renovar-se foi apenas mais um erro numa série desde junho de 2013, quando esses grupos se aferraram à ideia que, do ponto de vista estratégico, estariam do lado certo da história, ou seja, contra aquele levante. Pois agora o protesto e a crítica deveriam avançar tão somente até a marca do “ajuste do Levy”, e que ninguém se aventurasse para além da piscina das crianças. A retração dos movimentos tradicionais e redes petistas, mais uma vez, contribuiu para a ocupação do espaço por novas plataformas e movimentos antipetistas e antiesquerdistas, igualmente organizados para enquadrar o evento de junho, só que noutra narrativa.
Em 15 de março de 2015, quando milhões acorreram às ruas e se depararam com grupos organizados do MBL, Vem Pra Rua e Revoltados Online, que não existiam nas ruas dois anos antes, já estava claro onde que a corda iria romper. Para os críticos líricos do “ajuste do Levy”, faltou explicar por que Dilma mentiu durante o período eleitoral para, no dia seguinte, contrariar o cerne das promessas. Era como se as urgências forjadas pelo horizonte negativo impedissem esses grupos de dar um passo atrás e fazer a saudável reavaliação. O debate começou a afogar-se num riacho pouco fundo. Dado que as dimensões do político e do econômico não formam esferas autônomas, mas momentos interdependentes, – temporalidades distintas num campo de interações e sobreposições em que operam as concreções das forças e suas linhas de atualização, – não basta pontuar distinções programáticas, julgar a coerência das vontades políticas, ou relatar simplesmente o comportamento estrutural do neoliberalismo. Não basta produzir mil textos em moto contínuo nas redes baseados nessas três tarefas rasas. Os reducionismos implicados nas urgências da “guerra de narrativas” alargaram o campo de cegueira num momento crucial. Os apoiadores do governo pareciam enjaulados num presente eterno, e terrivelmente desgastante, pois nele eram chamados em bloco pelos bunkers para matar um leão por dia.
A intensificação da ortodoxia econômica no segundo mandato de Dilma se mostrou indigesta porque contrariou uma das premissas básicas do voto crítico. Compartilhava-se a percepção que a pauta econômica era a base do governo, a infraestrutura da política, onde se divisariam os modelos de gestão do estado para além da guerra cultural. As deblaterações recíprocas de sempre – estado ou mercado, Keynes ou Friedman – mostraram que a discussão econômica já tinha sido engolfada pelos memes, ainda que estes tivessem crescido para quatro parágrafos e fossem assinados por professores doutores. Boa parte da esquerda brasileira enxergava no par crescimento econômico com inclusão social, isto é, no desenvolvimentismo redistributivista, a marca distintiva dos governos Lula e Dilma – em relação às direitas liberais e neoliberais. Tal vetor central na infraestrutura era o que justificava, à esquerda, a composição pragmática com outros setores empresariais e oligárquicos que, apesar de tudo, compartilhavam do caráter nacionalista e desenvolvimentista. No campo econômico, quando criticado à esquerda, o governo sempre era criticado por não ser desenvolvimentista o suficiente e nunca por sê-lo demais.
Na realidade, desde a vitória em 2003, o bloco governista nutria a perspectiva de superar o neoliberalismo, típico da década de 1990 em todo o subcontinente, por meio de um novo modelo que alguns intérpretes mais insiders começaram a chamar de “pós-neoliberal”. Os governos Lula e Dilma podiam então receber a alcunha de progressistas, repetindo assim uma egrégia tradição teórico-política do século 20 que amiúde afiança a ideia da revolução brasileira. A literatura de formação nacional, de Caio Prado Júnior a Darcy Ribeiro, passando por Celso Furtado, elaborou de vários ângulos e sob diferentes métodos, os lineamentos para uma revolução democrático-progressista no Brasil. Por meio desse processo de longa duração, seria possível superar defeitos estruturais que nós herdamos de quatro séculos de colonização ibérica e império escravocrata: os impasses do inorgânico, os gargalos do subdesenvolvimento, a lacuna dos valores nacionais, os arcaísmos oligárquicos, o racismo e o latifúndio. Ao longo dos governos Lula e Dilma, essa tradição recrudesceu. Estaria em curso para os saudosos da formação um aggiornamento do longo ciclo desenvolvimentista de 1930 a 1980. Todo esse longo ciclo, – do modelo de substituição das importações à modernização pesada da ditadura, – que fora abortado com a reestruturação global do capitalismo depois dos choques do petróleo e da virada pós-fordista, e cujo abandono fez a economia do Brasil patinar durante a década perdida e os dois mandatos de Fernando Henrique (1995-2002) na presidência. Até a reinauguração do governo progressista, com Lula em 2003, que reuniu condições para preparar um novo ciclo de “pensar o país” e orientar o sentido de sua formação, pondo fim ao hiato do neoliberalismo.
O movimento desenvolvimentista, enquanto força política, se manteve em banho-maria no primeiro mandato de Lula (2003-06), restringindo-se mais às formulações acadêmicas do que à elaboração de estratégias de governo. No segundo mandato (2007-10), diferentemente, a tendência floresceu num renascimento teórico e político, alinhado com transformações globais e com a estabilização do PT no poder, passado o vendaval do Mensalão.
Dois fatores favoreceram o impulso desenvolvimentista nesse momento. Primeiramente, a consolidação de um cinturão de empresários e banqueiros agregados ao núcleo duro lulista, parceiros confiáveis para colocar as engrenagens para rodar, num enlace produtivo que deu corpo à política dos campeões nacionais. Estes são grandes empreiteiras, grandes frigoríficos, cadeia do agronegócio, empresas de telefonia, de aviação ou aeronáutica, fornecedores da indústria do petróleo, em resumo, um time selecionado de tubarões sediados em território nacional a ser contemplado pelo governo com uma gama de subsídios diretos e indiretos, facilitações normativas e isenções fiscais. Esse concatenamento entre estado e mercado era a ponta de lança da política industrial e comercial do governo, para que os campeões nacionais pudessem oligopolizar o mercado nacional e melhor competir no internacional, – inclusive saindo para caçar peixes menores na América Latina e na África. Com isso, esses grandes empresários ganharam acesso livre aos gabinetes e contratos do governo, coordenavam-se em coesa unidade e inclusive participavam de decisões estratégicas de planejamento dos investimentos. Haviam se tornado o destino preferencial para as concessões públicas, as parcerias público-privadas, e os investimentos de longo prazo a baixos juros dos bancos públicos, especialmente do BNDES (que se envolveu, em alguns casos, em participações acionárias para novas aquisições). Os critérios de aprovação dos repasses eram, para dizer o mínimo, significativamente afrouxados, e o governo intervinha quando necessário para azeitar a emissão das licenças e autorizações. Em compensação, os superparceiros revertiam parte da receita em investimentos massivos das campanhas eleitorais e partidárias. Na medida em que o PIB ganhava velocidade, cresciam também as cifras implicadas nessas operações de dupla mão.
O esquema funcionou quase como um relógio enquanto a flauta doce das commodities estava tocando no mercado mundial. O boom dos preços das commodities ao longo dos anos 2000 lastreou os excedentes necessários, para evitar concorrências fratricidas e prover os negócios de margens generosas, dando a entender que o esquema era ganha-ganha. O erário público suportava o principal do risco do negócio e, na pior das hipóteses, absorvia a maior parte das perdas. O empresariado parceiro impulsionava a taxa de lucro sobre os esforços do governo em promover o desenvolvimento. Enquanto isso, economistas heterodoxos e neokeynesianos simpatizavam com o afluxo bilionário de investimentos lançado na economia, com críticas pontuais. Afinal, os pacotes de subsídios, isenções e investimentos aqueciam a demanda e, uma vez o dinheiro entrando em circulação, nutria de vitalidade os circuitos de renda, consumo e crédito no andar de baixo. O princípio era manter a demanda efetiva em alta para perseguir o pleno emprego, nem que para isso, como Keynes dizia, se tenham de construir pirâmides [20] – ou a hidrelétrica de Belo Monte.
A crise do capitalismo global de 2008-09 deu o empurrão que faltava para o movimento desenvolvimentista emplacar como princípio estratégico no governo. Consolidaram-se os arranjos políticos, econômicos e teóricos para um neodesenvolvimentismo, em que o prefixo neo pontua a particularidade das condições a partir do que se reclama mais essa repetição da história do progressismo: crescimento e inclusão social, mas com política monetária ortodoxa, prioridade industrial voltada a bens de consumo duráveis, ao agrobusiness e à exportação de commodities, e política fiscal renitentemente regressiva. O movimento desenvolvimentista brasileiro no século 21 não foi um todo unitário, se subdividindo em tendências, a respeito de qual estilo de desenvolvimento seria adotado, qual o grau de participação do empresariado, quais variáveis macroeconômicas seriam mais sensíveis etc. Dessas discussões, espessou o debate ao redor do que fazer, para avançar o que teria dado certo nos anos Lula, e levar a incipiente experiência progressista ao que seria o estágio de consolidação, por assim dizer, a “fase 2” do lulismo.
Como resposta à crise, o governo adotou políticas anticíclicas: manteve bem abertas as torneiras do gasto público, continuou promovendo grandes empreendimentos e facilitou o crédito em várias escalas. Efetivava-se, assim, um misto de ensinamentos keynesianos e receitas ortodoxas para enfrentar o desaquecimento global e inibir as baixas no investimento e na propensão de consumo, sem perder a taxa de inflação de vista. Foi uma resposta coordenada, em que políticos, empresários e banqueiros articularam ações para blindar a economia do país. Em 22 de dezembro de 2008, Lula convocou a cadeia nacional de comunicações para pedir que os brasileiros continuassem consumindo, que não era hora de assumir uma postura conservadora diante da perspectiva da crise. Consumir era dever cívico da nação. Para evitar a contaminação pelo pessimismo da economia global, brincou que a crise passaria pelo Brasil como uma “marolinha” que esbarra num grande navio.
Uma das referências geopolíticas do Brasil, especialmente em termos de resposta à instabilidade financeira, a China divulgou em novembro de 2008 um pacote de incentivos de US$ 586 bilhões para os anos seguintes, em megaprojetos de infraestrutura, modernização e programas sociais, com o fito de manter em alta o nível da demanda e do emprego. A crise no hemisfério norte incentivou, em junho de 2009, o surgimento dos BRICS, projeto para um novo bloco político e monetário formado por Brasil, Rússia, Índia e China. O posicionamento dos BRICS reinjetou ânimo em teóricos da economia-mundo sobre um novo embate de grandes proporções se descortinando entre o modelo americano e o chinês, muito embora a China se mantivesse intimamente integrada aos fluxos financeiros e às cadeias globais de valor, junto com os EUA. Em relação ao Brasil, no final da década passada, a China se consolidou não somente como uma parceira comercial de primeira grandeza, que importava volumes mastodônticos de commodities (soja, minério de ferro, petróleo, milho, proteína etc) e exportava bens de consumo e automóveis, mas também investidora direta para grandes projetos de infraestrutura, energia e transporte, destacando-se o complexo estratégico hidromineral do Arco Norte [21].
Para além dos grandes negócios, a projeção global da China serviu também de exemplo de uma matriz político-econômica que rimava planificação e mercado, industrialização pesada e dinamismo do mercado interno, inserção no horizonte da globalização interdependente e afirmação de uma posição geopolítica com grau de autonomia. Não poderia deixar de agradar aos desenvolvimentistas de esquerda a ideia de transição esposada pelo Partido Comunista Chinês, isto é, a combinação pragmática do funcionamento capitalista com elementos de transição socialista que operam desde dentro. Esse paradigma de transição se construiu como engenharia político-econômica não nos anos turbulentos da Revolução Cultural, mas na síntese pós-maoísta efetivada pelas reformas de Deng Xiaoping, no final da década de 1970. No Brasil, segundo o raciocínio desenvolvimentista, que sempre guardou pelo menos uma relação de analogia formal com a transição socialista, se poderia pensar numa “fase 2” do lulismo em que esses elementos fossem coordenados pelo PT, segundo um projeto de transição de longo prazo para suprir de estrutura rija a matéria sincrética e pastosa das políticas do período lulista. Essa concepção se moldava tanto a partir de elementos de hegemonia que deveriam ser construídos internamente para respaldar o “projeto de país”, quanto de oportunidades externas abertas pelos BRICS enquanto possível afirmação de um bloco geopolítico com a China e a Rússia. Em pouco tempo, teóricos da esquerda global já estavam celebrando a visão de uma “nova Guerra Fria”…
Juntando-se a repetição da tradição desenvolvimentista, o bom desempenho das políticas anticíclicas de 2008-09, a manutenção do controle inflacionário, a admiração pela trajetória mandarim, a nostalgia do capitalismo de estado naufragado em 1991, e a percepção de que se haviam reunido as condições históricas para dar o próximo passo, todos esses fatores juntos alimentaram a esperança de que o governo progressista produziria uma nova síntese. A era Dilma que se iniciava liberaria o grito encalacrado no peito das esquerdas progressistas: habemus projeto. E era preciso criar um nome à altura da inovação. Coube a Guido Mantega anunciar a Nova Matriz Econômica, ainda nos anos Lula, que ganhou ares de política oficial a partir de 2011. A NME alargou ainda mais o horizonte de expectativas do progresso num momento em que o capitalismo global precipitava curvas recessivas e se escandia um novo ciclo global de tumultos, a partir do contágio das revoluções árabes de 2010-11. Segundo o otimismo dos slogans, o Brasil estaria na contramão desse cataclismo, fazendo do limão a limonada.
As boas notícias do ano de 2010 cimentaram o triângulo entre campeões nacionais, regulação financeira e a vontade política de matiz desenvolvimentista. Naquele ano, último do segundo mandato de Lula, o índice do PIB cravou o maior crescimento desde 1974: 7,5%. Passada a marola dos subprimes, os investimentos jorravam dos bancos públicos e privados, o crédito vertia fartamente às várias camadas de empreendedores e às famílias, a renda do trabalho subia, grandes canteiros de obra se espalhavam pela cidade e no campo, e o consumo batia recorde. Apesar de algumas oscilações, que sugeriam cautela em médio prazo, o preço das commodities se conservou em valores confortáveis para os países exportadores, provendo músculo para os emergentes da América Latina direcionarem seus projetos de desenvolvimento.
Para coroar a boa fase, o Brasil estava prestes a sediar uma sequência de megaeventos globais: os Jogos Mundiais Militares em 2011, a Conferência da Rio + 20 e Cúpula dos Povos em 2012, a Jornada da Juventude do Papa e a Copa das Confederações em 2013, a Copa do Mundo de 2014 e, last but not least, os Jogos Olímpicos de 2016. O Brasil virou moda no exterior, erigido à brand descolada de um novo mundo, e referência sólida de crescimento conjugado com inclusão para as economias emergentes. Tudo isso sob a liderança do presidente-operário e do PT, dando o caminho das pedras para as esquerdas herbívoras ou carnívoras das Américas: a via da lulização [22]. Aclamado no exterior em fóruns e conferências, Lula gozou do pico de popularidade em dezembro de 2010, seu último mês a frente do governo, atingindo a marca de 87% de aprovação nas sondagens. O annus mirabilis de 2010 atualizou a mitologia do país de encontro marcado com seu futuro, terra barroca da realização de milagres e do povo criativo que não desiste, cuja maldição do atraso cabia a suas elites retrógradas. Os mais otimistas viam, sob o timão de Lula e do PT, se concluiria, afinal, o sentido de formação antevisto por seus intérpretes mais dadivosos.
Haviam descoberto uma fórmula mágica que, se corretamente desabrochada, imaginava-se pudesse levá-lo a um longo reinado, – quiçá à semelhança do PRI no México. Dilma, chamada de mãe do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), acelerou o programa desenvolvimentista, lançou o lema “País rico é país sem pobreza” e batizou um dos programas de modernização de “Brasil Maior”. O clímax dessa onda de otimismo se deu em 2012, com o pacote de medidas do governo que ficou conhecido como Plano Dilma. Foi um conjunto de R$ 500 bilhões em desonerações fiscais para grandes empresas ao longo dos anos seguintes, a introdução de novas regras para as concessões públicas, abertura de crédito subsidiado, redução da taxa de juros e direcionamento das tarifas. Em adição, a presidenta encampou pessoalmente o que ficou conhecido como “batalha do spread”, quando o governo ordenou que os bancos públicos derrubassem os juros bancários para forçar os privados a fazer o mesmo. Em pouco tempo, o país passava da condição de campeão em taxas de juro para um dos menores índices reais do mundo. Embora o cabo de guerra tensionado pelo governo, momentaneamente, tenha se inclinado em favor da baixa dos juros, o desfecho não perdurou, tendo sido revertido até o final daquele ano. A disputa do terreno da moeda travada pelo governo não estava respaldada por forças políticas ou mobilizações sociais que pudessem exercer a pressão necessária para cristalizar essa medida. Dilma certamente errava ao dobrar a aposta na política desenvolvimentista, mas errava também na forma da execução do erro, ao pressupor uma autonomia da vontade política que não existe, pois está condicionada à força das lutas. O voluntarismo dilmista foi entendido como um sinal amarelo por empresários e banqueiros que começavam a ficar descontentes com os resultados da nova gestão. O destempero do modo de gestão dilmista conseguia desagradar inclusive a fração de grandes empresários que eram os maiores beneficiados pelas suas próprias escolhas estratégicas.
O pacote desenvolvimentista do Plano Dilma, o primeiro esboço na direção da Nova Matriz Econômica, foi interpretado por André Singer como coragem e curva à esquerda aplicada na política econômica [23], num artigo feito sob medida para reconfortar as tropas governistas. Para Singer, o projeto político implícito no ensaio desenvolvimentista apostaria na hipótese de uma contradição de interesses entre duas coalizões no interior do ciclo do capital. De um lado, uma coalizão produtivista formada pelo baronato industrial que compartilha de valores nacionalistas, que o governo buscaria atrair; do outro lado, o consórcio rentista, fundado no capital fictício e nos artifícios especulativos, de visão cosmopolita adequada à nova fase da globalização neoliberal, e que levantaria o maior óbice ao projeto dilmista. O autor recicla uma velha fórmula presente no estruturalismo cepalino e que contrapunha uma burguesia nacional industrial (os patrões bons), com quem os progressistas deveriam travejar uma aliança tática, e uma burguesia internacional financeira (parasitária), cujos interesses seriam incompatíveis com um projeto substantivo de país.
Esse esquema é tão primário que não precisamos sequer recorrer ao ensaio clássico de Francisco de Oliveira, que desmontou o dualismo do ponto de vista estrutural [24], ou Fernando Henrique Cardoso, que pesquisou sociologicamente, ainda nos anos 1960, como o empresariado nacional prefere mil vezes associar-se ao capital globalizado na condição de sócio menor, a encampar a pauta “desordeira” de mobilizações sociais e reformas de base, que lhe põe em risco o valor segurança [25]. Ou poderíamos sugerir a Singer uma assistência atenta ao filme Terra em transe, de Glauber Rocha, em que se reencena magistralmente a alegoria da derrota de 1964 [26]. Mas nada disso, para ser sincero, é preciso e o cientista pode continuar poupando-se de cumprir o dever de casa em seus artigos conjunturais, porque toda essa discussão teve as coordenadas deslocadas pela mudança estrutural do capitalismo, de seu regime de acumulação e sua dinâmica de valorização, nos anos 1970 e 80, dissolvendo hoje qualquer pertinência estratégica ou tática em contrapor interesses entre uma suposta classe produtivista dos bons patrões e uma rentista dos especuladores, isto é, entre a “economia real” e a “fictícia”, – no momento em que as finanças são elas próprias a medida da desmedida para o funcionamento da economia política tout court [27], uma unidade simbiótica. As finanças são produtivas e são reais (assim como o consumo). O “populismo do concreto” embutido em análises antifinanças, aliás, lembra a velha esquerda nacionalista e neossoberanista europeia, mas também os neoconservadores do Tea Party norte-americano, sua paixão pelos velhos valores e seu ódio antissemita contra os yuppies de Wall Street.
Nem mesmo os governos Lula e Dilma, por sinal, contemplaram orientar-se no plano estratégico por essa suposta contradição entre interesses interna ao ciclo de realização do valor, como mostram suas composições político-governamentais. Tanto os campeões nacionais do século 21 foram, desde a gênese, um conglomerado transnacional de capitais, com determinado grau de internalização dos centros decisórios; quanto o próprio governo progressista não cessou de transitar entre os diversos territórios produtivos interpenetrados da cadeia do valor, a fim de agenciá-los em conjunto numa vontade política comum. Esse, diga-se de passagem, é o a-b-c de uma política econômica dentro das coordenadas do capitalismo financeirizado e da globalização interdependente. Basta trazer à mente a figura do ex-ministro petista Antonio Palocci, um dos mais eficientes operadores “transdisciplinares” da legenda.
No fundo, o sabor de novidade da NME não condizia com a sua real condição no começo da presente década: isto é, um prolongamento mal-ajambrado das políticas anticíclicas de 2008-09, num momento em que o arranjo neodesenvolvimentista transpirava sinais de saturação. Dilma ignorou todos esses sinais, ao passo que economistas heterodoxos descartavam as críticas porque estariam contaminadas de ideologia e dogmatismo, segundo o fla-flu de escolas de pensamento. O ninho piolhento de teorias da conspiração das mídias progressistas denunciou um complô anti-imperialista do Neoliberalismo, com maiúscula, que estaria sabotando a pretensão descolonizadora do Sul Global, entre outras frases de efeito desse quilate. Estaria em curso uma deliberada e sorrateira “guerra econômica”, deflagrada pelos países ricos de sempre contra a afirmação geopolítica dos emergentes e a novidade dos BRICS. Esses espasmos retóricos, mais tarde, foram assimilados pelo presidente da Venezuela em seus discursos oficiais.
Nem toda a esquerda desenvolvimentista, porém, confundiu voluntarismo com coragem antineoliberal ou aderiu à indigência teórica dos falcões da mídia governista. Também apareceram críticas ao governo que, em vez de aquecer a economia por meio de investimento social e da ampliação dos serviços públicos, ele se metia a ajustar a regulação econômico-financeira para privilegiar um setor específico do empresariado, exatamente aquele que lhe era parceiro político-eleitoral e estava coberto pela política dos campeões. A “fase 2” do lulismo, portanto, era o próprio ajuste fiscal, aplicado não em 2015, mas em 2011. Dilma forçava a barra para alterar por conta própria a calibragem do capital não para aprofundar o percurso democrático do desenvolvimentismo, mas para subsidiar a lucratividade de grandes players. Todo o desgaste pelo que o governo passou em 2012 não resultou numa mudança de correlação de forças em favor da renda do trabalho, dos serviços públicos e do emprego, mas no subsídio do lucro, no fato que o empresariado embolsou os repasses ao não investir como havia sido planejado. Em vez de incorporar novos sujeitos que pressionavam por melhores salários e qualidade de vida, o governo Dilma tentou incorporar o baronato ligado à política dos campeões nacionais que, por sua vez, decidiu começar a desincorporar-se. Esfacelava-se a marca pessoal de Dilma como tecnocrata eficiente, instalada na presidência por Lula e sua corte de empresários e banqueiros para gerir o seu legado sem alimentar grandes pretensões políticas. Seu estilo de gestão, ao contrário, começava a passar a imagem de incompetência e intempestividade.
Nas formulações originais da era dourada do desenvolvimentismo, no segundo pós-guerra, era indispensável a ligação virtuosa entre desenvolvimento e democracia, entre cidadania e modernização. Destoando das teorias modernizadoras anglo-saxãs, como a dos estágios de Rostow, no desenvolvimentismo latino-americano o caso era sobrepujar os entraves estruturais impostos pela dinâmica do comércio internacional aos países periféricos e, ao mesmo tempo, aproveitar as brechas da 2ª Revolução Industrial tardia. A resultante desse jogo de forças deveria afirmar uma via autônoma de inserção no mundo produtivo ocidental, sem cair na tentação de reproduzir a trajetória das economias centrais, que haviam se desenvolvido noutro cenário interno e externo. Tratava-se, então, de forjar uma vontade política nacional a fim de reunir forças para a elaboração e a subsequente execução de um projeto integral de país, articulado em suas várias dimensões: política industrial, tributária, monetária, comercial, inclusão social. Somente munindo-se dessa larga prancheta para compassar um projeto de longa duração, se poderia acertar o rumo e conjugar decolagem modernizadora a percurso democratizante. Os sedimentos virtuosos dessa trajetória de desenvolvimento cristalizariam novas instituições, para estabilizar os avanços conquistados e conferir duração ao novo patamar nacional. Para os desenvolvimentistas clássicos, a industrialização na periferia estava condicionada não só ao progresso técnico e ao catch up tecnológico, como também à superação do flagelo do subdesenvolvimento, à tonificação do mercado interno e à proletarização das massas inorgânicas. Essa escola de pensamento se aglutinou nos anos 50 em centros de pesquisa como a CEPAL e o ISEB e se agregou aos governos populistas do período, como uma força política relevante. Seu momento institucional mais alto se deu na formulação do Plano de Metas durante o mandato de João Goulart (1961-64), quando o economista desenvolvimentista Celso Furtado ocupava a pasta do Planejamento. A ressurgência keynesiana brotada da crise de 2008-09 repercutiu no Brasil coma ressurgência da escola desenvolvimentista, contrariando o diagnóstico que a última fase da 3ª Revolução Industrial e a nova governance da globalização pós-Guerra Fria eram os últimos pregos no caixão das teorias de desenvolvimento nacional.
Otimista com os bons resultados do governo Lula até 2010, desenvolvimentistas brasileiros convergiram na avaliação que, afinal, a geleia geral do lulismo poderia ganhar uma ossatura de projeto de país. A “fase 2” deveria ser a do emprego formal, da disciplina produtiva, da formação de uma classe trabalhadora forte e estruturada. A chegada de Dilma à presidência, economista de perfil técnico e planificador, teria sido o emblema para essa nova etapa da formação nacional. Os desenvolvimentistas se animaram com a oportunidade histórica de repetir a tradição furtadiana. Dado um direcionamento estratégico correto, seria possível provocar mais uma floração do welfare, cujo modelo já longínquo são os tempos do fordismo-keynesianismo dos Trinta Gloriosos na Europa e suas esquerdas social-democratas e intelectualizadas. Intitulando-se “social-desenvolvimentismo”, nome fantasia que seduziu até analistas mais penetrantes, essa última flor do Lácio apostou que a Nova Matriz Econômica deveria ser recalibrada para desabrochar a sua vocação social, condição para um desenvolvimento genuíno num país na periferia do capitalismo.
Mas faltou combinar com os russos. O neodesenvolvimentismo: 1) não repetia elementos de democratização como nas formulações cepalinas; 2) não havia metabolizado as crises geradas pelo próprio desenvolvimentismo brasileiro na ditadura e no período populista, independente do golpe de 1964; 3) não vinha acompanhado de uma mobilização social capilarizada que lhe propiciasse contínua e reajustadora vitalidade democrática; e 4) tampouco se alinhava num framing social-democrata de reformas de base, como na época de Jango e Furtado. Não bastasse isso, independente dos modelos normativos defendidos de cátedra, a Nova Matriz Econômica fracassou em seus próprios termos, primeiro na estratégia equivocada diante da conjuntura mundial e nacional, segundo na gestão desastrada dos investimentos, critérios e avaliações, que afugentou os parceiros pressupostos, comprometeu as alianças conjunturais e acelerou a falência objetiva do modelo. A única coisa que se repetiu no neodesenvolvimentismo brasileiro do século 21, com efeito, foi uma avaliação que Francisco de Oliveira já havia feito para o desenvolvimentismo clássico, em 1972 [28].
O “estranho dualismo” que lhe servia de motor, entre periferia e centro, entre subdesenvolvimento e desenvolvimento, acabava infernalmente reaparecendo na medida em que se sobrepunha uma temporalidade na outra. A crise político-econômica do desenvolvimentismo histórico, segundo Oliveira, não se deu de um golpe só, como certo proselitismo prefere narrar. Na verdade, essa matriz janguista já estava minada por atritos agudos e impasses explosivos antes de 1964, se pulverizando por forças endógenas. Na prática, o desenvolvimentista caía numa maldição prometeica: o arcaico acabava sendo incessantemente reelaborado no moderno, o privado no público, as violências e os racismos nas novas liberdades e mercados, cada elemento de atraso decalcando-se novamente nas camadas que a vontade progressista tentava sobrepor ao real. Ontem como hoje. As políticas dos campeões nacionais e os arranjos do neodesenvolvimentismo que deveriam avançar o país ao futuro terminavam reintroduzindo no mais moderno aquilo que deveria ser superado, reeditando noutros termos a política dos coronéis, o clientelismo, a exploração e a corrupção sistêmica.
O neodesenvolvimentismo modernizou a violência estrutural. As grandes obras e empreendimentos do Brasil Maior multiplicaram a violência contra minorias, concentraram riqueza em novos players, e devastaram o meio ambiente. O reposicionamento geopolítico do país, que o habilitaria à dignidade do Conselho de Segurança da ONU, projetou-o numa nova espécie de subimperialismo em países mais pobres na América Latina e na África, onde as empresas brasileiras predam os mercados locais e exploram os trabalhadores. A construção diplomática dos BRICS, que nutria o saudosismo veteromarxista de um bloco alternativo ao capitalismo hegemônico, no final serviu apenas para conferir verniz vermelho à importação de uma gerência do capitalismo ainda pior, à sombra de Putin e da China com sua ultra-acelerada urbanização, lembrando o filme distópico Blade Runner. O sonho de grandeza do Brasil Maior reintroduzia o pesadelo das obras inacabadas, das máfias das licitações, das pesquisas interrompidas e da emergência climática. O Brasil rico e sem pobreza se exprimia no projeto da pacificação militar, onde erradicar a pobreza por vezes ganhava um sinistro sentido literal. A beleza monumental da abertura das Olimpíadas, com o voo do 14-Bis e o desfile de Gisele Bundchen, fez par com o terror antropocênico do desastre de Mariana. A redenção urbana que os megaeventos iriam trazer, associada aos subsídios à indústria automotiva, na verdade arrastou a realidade das cidades para a mais insuportável saturação de espaço e tempo, esmagando cotidianamente a maioria da população nos “gargalos” do transporte, da moradia e da qualidade de vida em geral.
Essas eram as verdades do “projeto de país” – e não meros excessos que alguns ajustes poderiam sanar. O “ajuste do Levy” não passava de um grão de areia quando comparado com a enormidade de sobrecargas, explorações e degradações no subterrâneo cada vez mais tectônico do Brasil Maior, que já estavam acontecendo e diante do que os moradores da cidade e do campo não deixavam de compreender em sua concretude violenta. A violência do desenvolvimento trazia dentro de si a violência do arcaico, do oligárquico, do confinamento urbano, e de uma miséria de novo tipo. E tudo isso, como se descobriu depois pelas investigações da Lava Jato, amalgamado com o esquemão – operando desde o núcleo do projeto de país – para financiar continuamente as campanhas eleitorais, os partidos e os bunkers das “guerras de narrativa”. Não, as jornadas de junho não foram um raio no céu azul.
O desastre do progressismo não pode ser atribuído à sabotagem das oposições ou das elites nacionais e internacionais. Tampouco à hipótese da “guerra econômica”, no interior da narrativa que comicamente faz uma repetição de uma “nova guerra fria”, um subproduto light do complotismo. Como se, alguns anos antes, o governo do Brasil não tivesse brilhado como a estrela de Davi para os demais países emergentes, reluzido nas capas de jornais do establishment global, o PT mimado como o “maior partido de esquerda do mundo” e Lula, the man. Pelo contrário, o capitalismo globalizado colocou-se em movimento, pela força involuntária de sua compulsão estrutural, para compor-se com governos da China e do Brasil, pois cumpria a tarefa de subsumir a potência produtiva dos pobres – colossais jazidas humanas subutilizadas – no maquinário de acumulação do capital. Não houve coação irresistível para que o governo desse o passo seguinte e projetasse a engenharia política e econômica que deveria conduzir à “fase 2”. O governo progressista presidiu o processo, assumiu o ano de 2010 como efeito de demonstração, formulou e levou a cabo uma vontade política sobre a legitimidade colhida ao longo dos anos Lula (2003-10), com os êxitos das políticas sociais, a ampliação dos circuitos de renda, crédito e consumo na base da formação da “nova classe média”, e o pico de reconhecimento nacional e confiança internacional. Poderia ter feito outras coisas, mas não fez. Nunca foi refém da circunstância. Decidiu consciente e deliberadamente pelo caminho que trilhou em direção ao futuro que imaginou.
Mas como ninguém morre de contradição, foi preciso que o levante de junho desfizesse as autoilusões do Brasil Maior e decretasse o fim do futuro. As contradições se transformaram em antagonismos reais, e suas contrapressões romperam com a linha do tempo pressuposta na modernização das cidades e do país. Naquele ano, cerca de duas mil greves contestaram a escalada de lucros das grandes corporações. Greves selvagens nos canteiros de obras das megabarragens e dos estádios para a Copa puseram o esquema das empreiteiras em estado de alerta. Rolezinhos nos shoppings inventaram a “greve do consumo”. Indígenas Mundukuru ocuparam o canteiro de Belo Monte e uma investida protagonizada por várias tribos ocupou o Congresso Nacional, manchando-o de urucum (no ano anterior, haviam ocupado a sede do BNDES, durante a Conferência da Rio + 20). Comprimida por pressões descomunais, a metrópole explodiu, dando a medida do desencontro entre futuro e presente, entre um horizonte de expectativas “padrão FIFA”, e um espaço de experiência saturado de serviços públicos em estado crítico, da imobilidade urbana, supervalorização imobiliária, de violência territorial e uma montanha de cansaço. A multidão largou o peso do progresso dos ombros.
Como escreveu Paulo Arantes [29], se o futuro e o horizonte são intoleráveis, suspende-se o futuro, tarefa para uma “esquerda sem futuro” que experimente na arte de habitar ambientes rarefeitos, – desertos que avançam no coração da metrópole, – como nas jornadas de junho. Claro que, medido pela trena viciada da esquerda progressista, a ação junhista acaba sendo sempre desclassificada pelo fôlego curto, por ter anulado o suplemento utópico do progresso, por ter encurtado o horizonte de expectativa a ponto dela mesma não ter tido futuro. O detalhe é que não era pra ter mesmo.
Depois de junho, voltamos pra onde? Que horas são? Afirmar que, ao progresso, se seguiu o retrocesso, novamente na lógica do dualismo estrutural, seria contornar a complexidade dessa temporalidade em que coexistem processos de durações variadas, que se entrecruzam e se relacionam numa duração interna multidirecional. A abolição do futuro nos coloca numa perspectiva capaz de livrar-se das ciladas da decolagem modernizadora, do catch up tecnológico, do emparelhamento, da dicotomia entre avançados e retardatários, do círculo vicioso que amplia e recombina no processo de desenvolvimento o padrão oligárquico e violento com o modernizante. Do ponto de vista do progressismo, o levante foi duplamente profanatório. Não questionou apenas o progressismo realmente existente, como o próprio progresso do progressismo. Questionou o paradigma da transição, a estrutura de um tempo desenvolvimentista que guarda analogia formal com a estrutura da transição socialista. Proximidade pelo menos analógica que é reforçada, enormemente, quando se toma por referência a marcha chinesa entre 1978 e os dias atuais, ponto de encontro dos sonhos prometeicos do desenvolvimento desigual e do socialismo terceiromundista. Ao sabotar a própria ideia de transição, o cajado das jornadas de 2013 golpeou dois coelhos de uma vez só. Não deveria causar surpresa, portanto, que aquele evento tenha sido lançado na conta do neoliberalismo, arqui-inimigo comum de desenvolvimentistas e socialistas.
Quando Dilma anunciou o ajuste antipopular para a economia, em 2015, a leitura automática das esquerdas foi que ela havia se dobrado às pressões dos mercados, do neoliberalismo, da direita. Foi o anticlímax perfeito, pois contrariou frontalmente o esquema nuclear dos dualismos e transições que justificava a separação entre estratégia e tática, ou seja, entre fins e meios, na base da boa consciência governista. Na realidade, em 2015 Dilma era constrangida pelas circunstâncias a reconhecer o óbvio. Tinha ficado claro para seus próprios condutores, como a política econômica no primeiro mandato tinha dado em água. A bem dizer, nessa altura, a NME já era tratada como um filho feio que ninguém mais queria reconhecer como seu. Sem mobilização para além dos aparelhos da própria esquerda – e, recorde-se, comprometida até o osso com a casta entranhada no Partido da Ordem pós-2013, – Dilma realmente não dispunha de qualquer alternativa senão aplicar o programa econômico da oposição. Remédio amargo, mas o único que tinha à mão. Para cingir a comédia, nesse momento já não poderia mais realizá-lo. Havia minado as poucas condições políticas que restavam ao fazer uma campanha baseada numa dupla mentira que todos perceberam.
No final de 2015, na Argentina, Mauricio Macri derrotou a candidatura da situação apresentada pelo kirchnerismo e foi eleito no segundo turno à presidência. Porém, Macri foi eleito com a plataforma explícita de concretizar as reformas do estado e de austeridade, sob a justificativa de que era preciso lidar com o rombo deixado pelo período dos Kirchner. Embalado pelo discurso da mudança, Macri realizaria assim o ajuste para o qual tinha sido eleito, na atmosfera de renovação de quem começa um mandato novo, definindo-se pela ruptura com o que veio antes. Dilma, ao contrário, praticamente cambaleava para o segundo mandato, o quarto do partido. Sua popularidade dava um voo rasante, tendo sido considerada a responsável política pelos erros do governo. E não só pelos descontentes e pela oposição, mas cada vez mais também pelos próprios aliados.
Sem margem de manobra, o ajuste não funcionou. A paralisia foi quase total. As medidas tentadas pelo governo com o ministério Levy agravaram a situação, levando a um ajuste desajustado. Não só o crescimento não foi retomado, como pioraram os prognósticos para os anos seguintes, tanto na indústria quanto nos serviços. A economia do país perdeu o grau de investimento nas agências de rating, a taxa de desemprego e da inflação chegaram a dois dígitos, o consumo e a renda começaram a derreter como não se via desde a década de 1980. A queda da popularidade do governo e o desencanto com a política em geral atingiram os índices mais baixos, concluindo a curva para baixo deflagrada com as jornadas de junho de 2013. O segundo mandato acabava antes mesmo de começar, solapando-se as últimas bases sociais, econômicas e políticas que mantinham o governo de pé. A cada dia, chegava uma nova má notícia, e as reações esboçadas apenas pioravam o cenário. As expressões usadas para descrever a conjuntura começaram a soar catastróficas: “tempestade perfeita”, “tsunami”, “queda livre”.
Encerrada em seu circuito de imagens idealizadas, as esquerdas se mantiveram aliadas à Dilma e ao PT durante a agonia, postulando uma direita onipresente. A realidade, contudo,era mais complexa. No saco de gatos da tal direita, havia tendências diversas, grupos que eram contra direitos das minorias e o estado laico mas apoiavam direitos sociais e programas de renda, outros que pregavam uma modernização neoliberal contra o papel social do estado mas tinham uma visão libertária sobre aborto, LGBT e liberdades, outros com uma pauta liberal e social ao mesmo tempo, críticos do estado indutor, havia também diversas movimentações e humores políticos dentro do “campo evangélico”, suas várias igrejas , e todo um jogo de interesses contraditórios entre a “nova classe média”, envolvendo neo-empreendedores, pequenos comerciantes, subempreiteiros e redes locais de serviços, toda uma subjetividade que exprimia suas pretensões de maneira antipolítica, porque não se via representada nas vontades articuladas pelo sistema político. E mesmo no interior deste sistema político, multiplicavam-se as divisões e subdivisões, no interior do PMDB, de partidos médios como o PSD, o PSB, o PR, e do dito “baixo clero” da galáxia de pequenos partidos. Que tudo isso tenha se mobilizado contra Dilma e o PT na forma do Partido da Ordem, institucionalmente coeso em todos os níveis da República em nome da estabilização econômica e política, dá a medida de como, depois de 2013, a estratégia da venezuelização adotada pelas esquerdas em defesa do governo fracassou.
Em 2015, descrentes definitivamente na “guinada à esquerda”, dobrou-se a aposta na luta simbólica, na culture war de alta voltagem entre coxinhas e petralhas. O horizonte estava agora integralmente rebatido para o nível negativo: a luta era para barrar a onda conservadora cuja rebentação acontecera nas jornadas de junho. O efeito dessa Stalingrado memética foi a derrota de fato do governo. Os protestos de verde amarelo não apenas superaram quantitativamente em muitas vezes as marchas mobilizadas pela estrutura petista com o reforço das esquerdas, como a justa indignação de boa parte da população, aguçada pela recessão econômica, se canalizou por conta própria para o movimento anticorrupção. As muitas tendências de um descontentamento distribuído pela sociedade não se aproximaram das forças governistas e, quando não engrossaram os protestos pelo impeachment, tampouco se mobilizaram para defendê-las, apesar dos apelos governistas que insistiam que os pobres e a classe média seriam os maiores atingidos.
O discurso aborrecido, o tom arrogante, a cosmética autorreferencial e de comprazimento circular das esquerdas, tudo isso atrapalhou ainda mais a tentativa delas de reaproximar-se da força das bases. “Barrar a direita” soava um slogan sem sentido para quem vivia as agruras de territórios conflagrados, sem acesso a bons serviços, e em metrópoles saturadas de violência e medo. Os panos, por sua vez, diziam muito pouco, nivelados na simbologia marqueteira ostentada em período eleitoral. A complacência das esquerdas governistas, sempre com a boca cheia de certezas e avaliações autolaudatórias, ajudou a empurrar os insatisfeitos e os indignados a realizarem a passagem – curta, é verdade, mas também encurtadora – da anticorrupção genérica ao antipetismo específico. Enquanto isso, novos movimentos de cunho liberalizante e francamente neoliberal, tais como o MBL, incharam com novos públicos e seguidores, e tomaram de vez a iniciativa, pressionando um Partido da Ordem já propenso a dar o aviso prévio contra os gerentes no controle do aparato de governo. A casta político-econômica certamente não estava disposta a ficar para morrer no Titanic com a orquestra tocando a Internacional.
O período da farsa do impeachment
A Lava Jato não foi expressão de Junho de 2013. Mas seguiu-lhe o terreno aberto. O levante rachou o granito dos consensos e, no ano seguinte, a operação policial sediada no estado do Paraná passou pela larga rachadura. Não fossem os antagonismos das jornadas a transmitir a crise à esfera política, dificilmente o Partido da Ordem não teria forças em 2015 para resistir aos primeiros vazamentos e logo se recompor, mantendo as investigações no nível do administrável. Talvez alguns personagens tivessem de ser sacrificados, mas certamente o palco não teria sido posto em chamas como permanece até hoje. Embora longe de repetir seu espectro, a operação Lava Jato continuou as jornadas de junho por outros meios. Em 2013, não queríamos expor as planilhas dos megaeventos e megaprojetos, da Copa, de Belo Monte, do mega-subsídio à indústria?
A Lava Jato expôs, arrombou as “Operações Estruturadas”, revelou os beneficiários e seus codinomes. Não lutávamos para abrir as caixas pretas das alianças do governo da cidade e do país, desmascarar os arranjos secretos do neodesenvolvimentismo? A Lava Jato desentranhou os detalhes das negociações, desenhou os fluxogramas ligando as obras de Belo Monte ou do Maracanã aos bunkers eleitorais e às contas na Suíça dos operadores. O sistema político não estava corrupto até a medula, as campanhas eleitorais não eram viciadas, as parcerias empresariais e financeiras, mafiosas? Tudo isso a Lava Jato escancarou, numa blitzkrieg judicialesca sobre os elos empresariais, financeiros e políticos do esquemão do Brasil Maior. As grandes passeatas amarelas do biênio 2015-16 não repetiram a carga destituinte das jornadas, porém se reuniram ao redor da linha de atualização anticorrupção que a Lava Jato prolongou. Isso jogou o poder do estado contra o próprio estado, numa reacomodação da Ordem. A granada lançada no meio da cena atingiu sobretudo políticos da coalizão governista, PT, PMDB e PP, mas também sobrou para a oposição, por exemplo, Aécio, ferido pelos estilhaços.
O drama é que a operação policial e judicial continuou Junho pelos métodos antidemocráticos típicos do Partido da Ordem, – e nunca pelos meios de Junho, da radicalização democrática. À farsa da defesa do estado, na versão mais à direita ou à esquerda da casta, em geral numa defesa corporativista e mistificada, a Lava Jato representa a farsa do saneamento do estado, de sua purificação moral. Por mais que a nova geração de juízes e procuradores de Curitiba não seja parte da casta no poder em Brasília, ela não deixa de integrar outra casta, aquela da aristocracia togada, como não deixa de representar outra força de restauração, um Partido da Nova Ordem. A Lava Jato repetiu Junho reduzindo-o a outra linha narrativa do tipo linear e evolutiva, que explode com o Mensalão em 2005-06, e depois procede em fogo lento até chegar na prisão de Dirceu e outros agentes políticos pelo STF, em 2012. Noutra repetição, a Lava Jato toca o passado da Operação Mãos Limpas (Mani Pulite), que começou a varrer o sistema político italiano nos anos 1990, mas que terminou bloqueada e desmontada. Vale lembrar que, no caso italiano, havia sido a domesticação da Mãos Limpas pela casta política – a operação foi efetivamente pacificada antes de ultimar os seus efeitos – que deu passagem ao surto berlusconiano, numa saída da crise de viés populista. No Brasil, contudo, o mais próximo da saída berlusconiana foi Lula apresentado-se como salvador da casta, quando se sentou no Royal Tulip de Brasília para negociar o voto “não” no julgamento do impeachment.
Pacificado o levante de junho em sua carga destituinte, passados dois anos, milhões de indignados voltaram a convergir na brecha alargada pela Lava Jato. Nessa convergência de tendências diversas, o personagem do juiz-vingador foi erigido a herói da cena, entendido como representante da única mudança possível nas coordenadas existentes. Se a “guerra das narrativas” e seu duelo de panos soavam ridículos para quem não estivesse diretamente engajado, e se a política como um todo já não era mais capaz de articular as esperanças num projeto positivo de mudança, foi quase por inércia que os milhões de descontentes, manifestando-se em ruas e redes e panelaços, combinaram as próprias insatisfações para formar o apoio uníssono a Moro. Não era mais o tempo de coxinhas nem petralhas: mas de togados.
A pacificação das jornadas de junho desintegrou com o terrível poder destituinte, que passou a rondar o teatro político como espectro. No seu lugar, a república progressista liderada pelo PT se agitou com barulho e fúria por três anos, protagonizando o lado vermelho da guerra dos panos, até ser desmanchada no ano do impeachment e amaldiçoada eleitoralmente por um bom tempo. Assumiu de maneira hegemônica, em 2016, a república parlamentarista cuja existência se fia na capacidade conciliadora e restauradora de Michel Temer, praticamente um premiê, com a responsabilidade de concretizar a agenda econômica de ajuste que Dilma fora incompetente sequer para dar a partida. E agora somos lançados em mais uma fase que se sobrepõe à última e que pode interrompê-la. Ela contrapõe facções qualitativamente distintas do Partido da Ordem. Opõe a república parlamentarista em que se encastelou a casta política e uma dissidência depositária das expectativas de renovação da maioria da sociedade mobilizada. Afirma-se, assim, a república policial-judicial de Curitiba, para assumir o controle, não se sabe ainda com que reajustes institucionais e qual grau de destituições do poder existente. A passeata de 13 de março de 2016 em favor da Lava Jato e pelo impeachment foi um mamute, maior do que todas as demais do ano anterior. Daquela data em diante, respaldada também pelos grandes meios de comunicação, a avalanche policial-judicial já tinha ganhado momentum o suficiente para romper qualquer dique interposto em seu caminho. O dominó interno do Partido da Ordem acelerou o desabamento das peças. Os políticos barraram a antipolítica apenas para serem varridos pela antipolítica, agora repolitizada pelos juízes. O Partido da Ordem decretou medidas de exceção contra Junho, agora o estado de exceção é decretado sobre ele. A república de Curitiba quer a Ordem, mas não o seu Partido atual.
Quem embalou mesmo os protestos amarelos ao som do hino nacional não foi o MBL, o Vem pra Rua, a Rede Globo ou forças ocultas do capitalismo global, mas Sérgio Moro. Os outros disputam os restos e tentam agregar-se ao vetor principal de mobilizações que os excedem e que não podem nutrir a pretensão de hegemonizar. Ninguém galvanizou as massas inorgânicas com falas melífluas em palanques políticos da oposição, na construção de um novo surto populista, como cansa de repetir a simplória história do ovo da serpente. Com o avanço da Lava Jato contra Lula, em 2016, a diversidade complexa das forças antigovernistas se transformou numa transversalidade, reunida ao redor da Lava Jato, mas sem aderir a qualquer projeto ideológico orgânico, sem massificar bandeiras e uniformes de uma facção, e sem concordar com quase nada que não seja a necessidade de “combater a corrupção” que se entranhou no coração da política. O Partido da Ordem apenas acompanhou o sentido desse vendaval, ao autorizar a solução do impeachment como uma tentativa desesperada de ganhar tempo diante da vingança que está vindo vestida de toga e camiseta da seleção brasileira. O Partido da Ordem entregou a cabeça de sua gerente incompetente numa bandeja, com a esperança de aplacar o descontentamento das maiorias que a Lava Jato fazia mirar nele próprio. E teve de entregar, adicionalmente e sem remorso, a de Eduardo Cunha, dias depois.
Quando as culture wars entre esquerdas e direitas encenavam a mais completa comédia, ainda que representada com insuperável seriedade, a Lava Jato não se baseava simplesmente numa narrativa. Era força real. Os coxinhas interpretavam o papel do anticomunista escandalizado e os mortadelas do palhaço sério, engolfados uns e outros numa atmosfera de pânico moral cuja soma é zero. Mas a Lava Jato gerava um pânico real, como reais eram os escândalos – a mais reles safadeza – que ela denunciava. De nada adiantavam ideias postiças ou complotismos de encomenda contra a sucessão aparentemente inesgotável de delações premiadas, grampos telefônicos, quebras de sigilo bancário, vazamentos à imprensa e prisões preventivas. Desde 2015, cada um dos personagens da casta política está em maior ou menor grau ameaçado pela paz do cárcere que a Lava Jato lhes anuncia, uma situação paranoica que favorece delações, traições e todo tipo de escaramuça para salvar a própria pele. Essa condição psicológica de animal acuado apenas favorece a dissolução do esquema como todo, que vai ruir como um dominó depois da queda das primeiras peças, mesmo que sejam as menores de uma longa fila. Rompeu-se, em definitivo, o contrato de autoimunidade que permitia aos mandatários deitar a cabeça tranquila nos travesseiros e contar uns com os outros para a salvaguarda corporativa de todos. O esfacelamento se acelerou em 2 de dezembro de 2015, com o fim do pacto de não agressão e conveniência entre Cunha e Dilma, que se engalfinharam até afundarem juntos no ano seguinte, quase na mesma data.
Em dezembro de 2015, Temer deu o passo decisivo para protagonizar o impeachment. O vice-presidente, eleito na mesma chapa que Dilma em 2010 e 2014, avançou para frente do palco, e ofereceu ao clube de políticos acuados uma alternativa de proteção e estabilidade. Daí por diante, o cerne político do Partido da Ordem rachou, primeiro com a cisão entre facção governista e antigovernista do PMDB e dos partidos médios, seguida nos próximos meses da migração inexorável do primeiro para o segundo campo, na expectativa de achar um lugar nos supostos botes salva-vidas e pelo menos reunir melhores condições para enfrentar o iminente naufrágio. Ao longo dos primeiros meses de 2016, Dilma e o PT perderam todos os seus apoios dentro do sistema político que havia defendido com unhas e dentes em 2013. Ficou apenas a oposição de esquerda tantas vezes relegada por Dilma à figurante da história.
Enquanto isso, Temer fez a sua parte. Buscou empresários, banqueiros e federações da indústria para propor um plano de ação, batizado de “Ponte para o Futuro”. O futuro, no caso, era deles próprios, dos políticos na berlinda. Tratava-se de uma versão mais encorpada da agenda do ajuste antipopular, com cortes de gastos, reforma na previdência e privatizações (“venda de ativos”), além da remodelação das regras de concessões, investimentos e relação com os bancos, especialmente o BNDES. Adicionalmente, Temer reuniu caciques do PMDB para rearticular as conexões entre o Executivo e o Legislativo, cercando-se de velhas raposas e abrindo um espaço amplo de diálogo com o máximo de forças políticas que se dispusessem a dialogar. Não empreendeu caça às bruxas dos antigos aliados, manteve uma relação estratégica com Lula, e ofereceu negociações para movimentos sociais e sindicatos.
A reação das esquerdas oscilou entre satirizar o novo presidente, despojado de carisma e com fala gongórica, cujo semblante e formalidade trazem à lembrança um mordomo de filme de terror, chamando-o de conspirador, traidor, golpista; e reafirmar com todas as letras que o impeachment era um golpe de estado. A origem desse golpe estaria em junho de 2013, novamente na narrativa defensiva do ovo da serpente que o governismo há três anos tenta emplacar sem sucesso. O presidente Temer, nesse sentido, seria um dos filhos de junho. No primeiro caso, as esquerdas reproduzem o erro de Victor Hugo, citado por Marx no prefácio ao 18 de Brumário, isto é, ao se concentrar em ressaltar o caráter farsesco do presidente, perdem de vista a sequência de circunstâncias e acontecimentos que permitiram que uma figura farsesca, não eleita para esse cargo, pudesse assumir a presidência.
No segundo caso, o erro de Proudhon, suprimindo convenientemente da análise de conjuntura as forças subjetivas que conferiam o caráter real dos personagens em cena, deixando de perceber como não foi junho de 2013 que eliminou as possibilidades de resistência ao golpe, ao contrário, foi a sua pacificação que sentou as condições para tal. Incapazes de realizar uma autocrítica de seu próprio papel desempenhado na farsa do impeachment, e cada vez mais isoladas das forças subjetivas, sempre e sempre mistificadas como maiorias silenciosas, as esquerdas preferiram recitar o catecismo do golpe de estado, com alguma penetração no meio universitário e cultural. Mas o impeachment de 2016 só foi golpe no sentido teatral do termo, um final perfeitamente adequado à farsa geral do teatro político pós-2013.
Solapado em todos os seus alicerces, o governo Dilma parecia um edifício condenado em estado terminal, preste a desabar pelo próprio peso. O “golpe” não passou do peteleco que precipitou a queda livre. Entre Dilma e Temer, houve apenas uma mudança de gerência. E não haveria gratidão pelos serviços prestados. O Partido da Ordem expulsou sem cerimônia os petistas, como senhores que aos pontapés enxotam lacaios de que não precisam mais: xô, fora. Em 1851, a elite política golpeada por Luís Bonaparte acusou os proletários, massacrados três anos antes, de não se levantarem para a batalha final. Imagine, não se levantavam para lutar por ela. Em 2016, os governistas resmungaram que a favela consentia, que a massa era despolitizada por não saber como o impeachment seria pior ainda. Os proletários mais uma vez deram de ombros e alguns até acharam merecido. Porque os únicos ordinários da história foram os próprios governistas, que agora posam de belas almas mal-compreendidas e punidas com a ingratidão popular no instante decisivo. Mas a repetição de 1851 para por aí. Naquele século, os golpeados foram presos, a Assembleia Nacional foi dissolvida, a cidade teve ocupação militar e o país foi submetido a um estado de sítio. Em 2016, os golpeados rapidamente se aliaram com os golpistas em 1.472 cidades para as eleições municipais de outubro. Fica difícil forjar narrativas grandiloquentes de capa e espada quando se opera a partir do calendário eleitoral, num desencantado realismo político. E logo seriam enxotados uma segunda vez pela votação popular que retirou do comando do PT cerca de 400 prefeituras, dois terços das que ocupava.
O impeachment foi farsa, encenada por duas elites políticas internas ao Partido da Ordem, sob o olhar de boa parte da população apenas vagamente interessada por mais uma contenda farsesca. O impeachment não aliviou, de forma alguma, as tensões, fiascos e contradições na raiz da crise política e econômica. Seus despojos têm posse precária pelos vencedores da batalha, que seguem fustigados por uma guerra onde carecem de garantias e defesas para se sentirem seguros. Nem restituiu à política uma positividade de desejo, pois ela continua desacreditada, objeto geral de desencanto e de indignação. A farsa de Temer representa um ideal de restauração para uns, a promessa claudicante de estabilidade econômica para outros, mas não empolga ninguém. O novo governo traz em seu colo a falência de todo um arranjo de governo, e não tem nada para pôr no lugar que possa inaugurar um novo ciclo. Mesmo o seu projeto de retomada político-econômica dá giros em falso pela falta de consensos amplos para dotá-lo da legitimidade necessária. Resta ficar testando declarações, tateando até onde é possível pisar sem pôr o frágil arranjo restaurador abaixo. A má notícia, portanto, é também a boa notícia. No momento em que a política deixa de ser um vetor de articulação das expectativas, com o suplemento utópico do progresso, o Partido da Ordem também se desarma dos instrumentos com que era capaz de rapidamente recompor-se e pacificar as ameaças. É como se, com a crise terminal do político, a Ordem se diluísse na normalidade da gestão policial-biopolítica [30], num presente comprimido sobre si mesmo, dispensando a existência de vontades políticas para determinar-lhe os rumos, não precisando mais de Partido.
O ambiente rarefeito é onde habitamos desde o evento de 2013. A onda quebrou rápido e refluiu mais rápido ainda com a pacificação, legando-nos um deserto que avança em todas as direções. As respostas que a esquerda progressista prescrevia como tábuas programáticas, a ser erguidas sobre as cabeças, estão erradas num nível mais profundo. Vencido o ciclo progressista, as perguntas mudaram, e com elas as coordenadas, os macetes, os lugares comuns fossilizados, as dicotomias automáticas entre desenvolvimentismo e neoliberalismo, estado e mercado, esquerda e direita, petralha e coxinha. Não adianta cruzar incólume pela experiência com os mesmos panos e narrativas que juntos e abraçados foram a pique. Aos que acreditam em luto, cumpre avisar que luto mesmo só acontece quando se sustenta a própria memória, para ativamente esquecer as perdas, frustrações e fracassos. Luto como tarefa prática. E não adianta fugir do deserto para meios gregários, para acomodar-se seja na crítica boticária de esquerda sentimental (e histérica), seja no papel da viúva portuguesa, sempre de luto carpindo, alucinando uma idade dourada para estender o varal da nostalgia.
Vivemos a longa ressaca de junho. Deveríamos ter conquistado um novo conteúdo além das fraseologias, mas as fraseologias suplantaram os conteúdos. Então é preciso se livrar das fraseologias, para voltar a tartamudear processos emergentes, para escutar o espectro que ronda. Marx via na crise uma oportunidade crucial em que as contradições existentes arrastavam o presente a soluções violentas, mas ainda assim, soluções. Era necessário então dramatizar as forças da conjuntura para estabelecer com maior clareza as suas tendências, os seus fragmentos de sujeito histórico impregnado dos futuros possíveis de que a sociedade estava prenhe. A crise então se mostrava um momento fundamental para os transformadores, porque determinava o ponto decisivo, na borda do possível, onde se deveria intervir para empurrar os antagonismos para a mudança efetiva, onde se podia fazer a história.
Mas agora, três anos depois de 2013, quase seis anos no último ciclo global de lutas adentro, é forçoso admitir que, do Brasil à Turquia, da Praça Tahrir à China, na Espanha ou na Grécia, ninguém parece enxergar um pedaço de subjetividade que seja portadora daquela novidade que Marx nos dizia abriria o caminho do futuro e iluminaria a ação virtuosa. Deleuze deixava claro que apenas a multiplicação desenfreada dos devires e linhas de fuga no capitalismo contemporâneo não significa que sejamos capazes de enxergá-los, de estarmos-lhes à altura e realizar a repetição dramática que conviria à criação efetiva. Entrementes, do lado do capitalismo, não emerge nenhuma regulação das dinâmicas descontroladas de seu regime de acumulação, nenhuma nova grande ideia para substituir a falimentar regulação pós-fordista, o que nos mete novamente à beira do abismo de uma guerra generalizada, da entropia social e da urgência climática.
Marx desbastou o conceito de repetição histórica porque sabia que, para preencher as tradições e autoilusões que nos comprimem ao passado, era preciso libertar-se dele para se acessar o futuro. “Não é do passado, mas unicamente do futuro, que a revolução social do século 19 pode colher a sua poesia.” [31] A revolução serve ao povo porque o impele na direção do futuro com a maior celeridade possível. Não é mais o caso. Eventos como o de junho de 2013 no Brasil não anunciam futuros revolucionários nem indicam sujeitos portadores do processo histórico, mas sim um tempo de indeterminação radical, imprevisível e sincrônico em suas virtualidades. Quem o enfrenta por meio das velhas imagens idealizantes parodia a história duas vezes, pois até a estrutura interna do tempo em que opera o processo do capital sofreu uma mutação irreversível [32]. Talvez a própria ideia de saída à crise seja uma quimera, quando a crise está internalizada. Virada a modernidade do avesso, estaríamos condenados a revoltas antipolíticas e desconjuntadas, para desordenar o futuro engendrado na sala de máquinas? Continuamos a dramatizar a conjuntura, um trabalho contínuo e coletivo, exatamente por apostar que não.
setembro de 2016
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Notas
1 Bruno Cava, blogueiro e copesquisador associado à Universidade Nômade, tem artigos em vários sites e revistas como Chimère, Multitudes, Al Jazeera, Alfabeta2, The Guardian, Le Monde Diplomatique e Lugar Comum, é autor de “A vida dos direitos” (Lumen iuris, 2008) e “A multidão foi ao deserto” (AnnaBlume, 2013, reeditado na Argentina em 2016, pela Quadrata), e organizou os volumes “Amanhã vai ser maior” (AnnaBlume, 2014), com Giuseppe Cocco, “Podemos e Syriza” (AnnaBlume, 2015), com Sandra Arencón Beltrán, e “A Terra Treme” (AnnaBlume, 2016), com Márcio Pereira. Tem dois livros no prelo, pelas editoras Revan (com Alexandre Mendes) e Lexington (com Giuseppe Cocco). Bloga no quadradodosloucos.com.br
2 MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Trad. de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.
3 MARX, Op. cit., p. 25.
4 Ibid. p. 26.
5 Ibid. p. 26, 27.
6 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Graal, 2006. Nota de rodapé p. 139-141.
7 SIBERTIN-BLANC, Guillaume. “Penser (dans) la conjoncture”. In Cahiers du Centre de Recherches Matérialistes, n.º 1, 2011. Disponível em: http://grm.revues.org/77 . Ver também, do mesmo autor, “D’une conjoncture l’autre : Guattari et Deleuze après-coup”, revista Actuel Marx, n.º 52, 2012/2. Paris: PUF, 2012. p. 28-47.
8 Ibid. p. 31.
9 MARX, Op. cit., p. 26.
10 Ibid. p. 17-19. Prefácio escrito em 1869 para a 2ª edição francesa do livro.
11 Ibid. p. 18.
12 Loc. cit.
13 FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”. In Microfísica do poder. 20ª ed. Graal.
14 CAVA, Bruno; GIUSEPPE, Cocco (orgs.). Amanhã vai ser maior; o levante da multidão no ano que não terminou. São Paulo: AnnaBlume, 2014. A melhor literatura a respeito pode ser encontrada em MORAES, Alana et al (orgs.) Junho: potência das ruas e das redes. São Paulo: Friedrich Ebert, 2014 e JUDENSNAIDER, Elena et al. Vinte centavos: a luta contra o aumento. São Paulo: Veneta, 2013. Ver também, com outra abordagem, o ensaio magistral de ARANTES, Paulo. “Depois de junho a paz será total”, in O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2015. P. 353-460. Outros artigos valiosos: AVELAR, Idelber. “O enigma de junho”, Partes I – IV, In O biscoito fino e a massa (blogue autoral). Ago-Set 2014. Disponível em: http://www.idelberavelar.com/archives/2014/04/o_enigma_de_junho_parte_i_os_pro69
testos_de_junho_e_a_amazonia.php e PINTO NETO, Moysés, “Juventude em chamas; pessimismo, organização e utopia” In Revista Lugar Comum, n.º 46, vol. 1, Rio de Janeiro: dezembro de 2015, disponível em https://dev.integrame.com.br/lugarcomum/46/ Com a licença, remeto também ao posfácio que escrevi à edição argentina de 2016 de meu livro escrito “a quente”, em novembro de 2013: CAVA, Bruno. La multitud se fue al desierto; revuelta, neodesarrollismo y crisis. Trad. de Ariel Pennisi e Agustín J. Valle. Buenos Aires: Quadrata, 2016. p. 147-175.
15 SASSO, Guilherme del; BERNARDO, Gabriel. “Junho antes de junho, o ciclo de lutas em Porto Alegre, 2013, onde tudo começou”. In site da Revista Universidade Nômade, 8 de maio de 2016. Disponível em: https://dev.integrame.com.br/tenda/junho-antes-de-junho-o-ciclo-de-lutas-de-2013-em-porto-alegre-onde-tudo-comecou/
16 Ibid. p. 36, 37.
17 ARANTES, Paulo. “Depois de junho a paz será total”. In O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 353-460.
18 CAMPOS, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio M. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016. Prefácio de Pablo Ortellado.
19 COCCO, Giuseppe. “O capital que neutraliza e a necessidade de uma outra esquerda”. Entrevista com Giuseppe Cocco, por Márcia Junges e João Vítor Santos. In Revista IHU, n.º 468, ano XV, 29 de junho de 2015. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6019&secao=468
20 KEYNES, John Mainard. Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Trad. de Manuel Resende. Saraiva: 2013.
21 MORENO, Camila. O Brasil made in China; para pensar as reconfigurações do capitalismo contemporâneo. São Paulo: Rosalux, 2015.
22 STEFANONI, Pablo. “La lulización de la izquierda latinoamericana” In Le Monde Diplomatique Argentina, n.º 183, setembro de 2014. Disponível em: http://www.eldiplo.org/notas-web/la-lulizacion-de-la-izquierda-latinoamericana/
23 SINGER, André. “Cutucando onças com varas curtas; O ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff” (2011-2014). In Novos estudos, 10 de setembro de 2015.
24 OLIVEIRA, Francisco de. “Crítica à razão dualista” In Crítica à razão dualista o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013 [1972]. p. 29-69.
25 CARDOSO, Fernando Henrique. Política e desenvolvimento em sociedades dependentes : ideologia do empresariado industrial argentino e brasileiro. São Paulo: Zahar, 1971.
26 Uma análise magistral do filme, por XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento; cinemanovo, tropicalismo, cinema marginal. 2ª ed. São Paulo, Cosac Naif: 2012. p. 7-123.
27 Por todos, ver as sínteses em FUMAGALLi, Andrea; MEZZADRA, Sandro (orgs.). A crise da economia global; mercados financeiros, lutas sociais e novos cenários políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
28 OLIVEIRA, Op. cit., p. 29-69.
29 ARANTES, Op. cit., p. 353-460.
30 ARANTES, O novo tempo do mundo, Op. cit., p. 89-94.
31 MARX, Op. cit, p. 28.
32 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado; contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução por Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. E ARANTES, O novo tempo do mundo, Op. cit.
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Referências
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