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O presidente que nos falta

Por Universidade Nômade

Foto Presidente por Katja Schilirò

Foto: Katja Schilirò

“De asa quebrada, uma cotovia –
O coro dos anjos silencia”
(William Blake, tradução de André Vallias)

“Sabemos que as revoluções,
as guerras e o desprezo ou a violação das leis
não são imputáveis à maldade dos súditos
mas à má constituição do governo. (…)”
(Spinoza)

 

No meio dos debates e dos embates do impeachment que envolvem a Presidente Dilma Roussef e seu Vice Michel Temer, faleceu no Rio de Janeiro o presidente das ruas de junho a outubro de 2013. Sérgio Luiz Santos das Dores morreu no dia 14 de dezembro de infecção generalizada numa UPA onde passou uma semana (uma semana!) sem ter acesso aos cuidados necessários, alguns dias antes de a Presidente Dilma se juntar ao Governador, ao Prefeito do Rio e à Globo para inaugurar o Museu do Amanhã no Porto Maravilha.

Assim morrem os pobres na cidade do PAN, da Copa, das Olimpíadas, das Cidade das Artes, do Maracanã re-re-reformado, das bilionárias obras estéticas do Porto Maravilha. Dilma e Temer viajam com Paes e Pezão nos teleféricos do poder, nos carros que infestam a vida e o ar das metrópoles, nos caveirões do BOPE e nos tanques do exercito que semeiam a morte nas favelas e periferias.

O presidente das ruas lutava com os pobres que clamam por saneamento básico, transportes públicos e uma verdadeira paz. O presidente morreu sem os cuidados médicos adequados na cidade-sede do aparelho mafioso da representação parlamentar, empresarial e midiática que governa o Brasil. É no Rio de Janeiro que o pragmatismo cínico do PT paulista (experimentado nas Prefeituras petistas de São Paulo) se hibridizou às milícias do hard power que ocupam o Estado pós-colonial brasileiro, assumindo a cara predadora do capitalismo global.

Sérgio era presidente mas com p minúsculo. Presidente menor: nômade, libertário e ativista. A Presidente e seu Vice (com P maiúsculo) têm como modelo os Eikes, os Esteves, os Odebrecht, quer dizer, a moeda falsa dos ricos: o Brasil Maior, “Pais rico e sem pobreza”. Nosso presidente escolheu de viver pobre com os pobres e lutou como os pobres lutam: jogando seu corpo na luta, participando do sofrimento dos pobres na vida. Não convocava nenhuma ideologia ou religião e sim à vida nesse mundo.

Sérgio era o presidente da sociedade contra o Estado, a legitimidade de sua chefia estava na ausência de poder e por isso sua popularidade era inabalável. Ele era mesmo nosso presidente, sem aspas. Um presidente menor, com “p” de parrêsia, isto é, do falar franco e verdadeiro. Não era um presidente metafórico como os são a Presidente e seu Vice: ao passo que Dilma e Temer servem os ricos, no presidente a vida e a política dos pobres coincidiam realmente. Sua pobreza e sua vida pobre expressavam a potência dos pobres, quer dizer de um sofrimento que quer parar de sofrer.

E o presidente das ruas foi “impedido”: morto pelo sistema contra o qual lutamos em junho de 2013, o sistema que hoje desdobra todos os barrocos recursos procedimentais do formalismo jurídico para administrar um impeachment atravessado pela mentira eleitoral de outubro de 2014 e pelos rios de dinheiro roubado que cimentavam o consenso da coalizão de governo. Ao passo que a Presidente e seu Vice querem se perenizar – mesmo que um contra o outro – argumentando por meio de doutos pareceres jurídicos e protegendo-se por manobras regimentais supremas, o presidente menor foi brutalmente impedido, sem direito a defesa nenhuma.

O presidente das ruas morreu como os pobres morrem no Rio e no Brasil, mas amparado pelo amor da geração de junho. Por um instante, a Câmara voltou a ser ocupada. Mesmo que de maneira efêmera, no velório do presidente, a Câmara  voltou a ser dos pobres como o foi em junho e setembro de 2013. Um instante que dura muito tempo.

Mas a sua morte é também a explicitação do tremendo impasse político no qual se encontra a luta por democracia: junho de 2013 foi literalmente enterrado pela máquina da falsa polarização que a máfia governista do PTMDB soube e sabe mobilizar: Picciani contra Cunha, Paes contra Temer, Barbosa contra Levy. Captura subjetividades e parece funcionar. Um ciclo de lutas e mobilizações termina fechando a brecha democrática. Estamos de volta ao “campo”, à favela, à senzala.

É preciso reconstruir o êxodo, reencontrar o caminho da redenção, da fuga para fora das armadilhas e mistificações de uma representação que oprime nossas vidas como um morto-vivo. O presidente nos falta. O presidente que nos falta é a comunidade por vir, a sociedade contra o Estado, o processo constituinte capaz de produzir uma verdadeira moeda, transmutando todos os valores.

 

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