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O rolezinho entre a elite sem vergonha e a vanguarda do racismo

Por Samuel Braun, para a UniNômade

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O Shopping Leblon obteve uma liminar na 14ª Vara Cível do Rio, na sexta-feira, 17 de janeiro. A decisão não só impede a realização do evento, como põe à disposição policiais militares e oficiais de justiça. No final do dia seguinte, sábado, o grupo Habeas Corpus, criado no calor das manifestações de 2013, conseguiu um “salvo-conduto”, um habeas corpus obtido na 2ª Vara Cível, garantindo o acesso livre dos manifestantes e organizadores ao shopping, bem como sua liberdade de manifestação. Diante disso, o shopping no Leblon optou por fechar as portas pelo dia inteiro, em pleno domingo, arcando com um prejuízo milionário. Preferiu a drástica medida a recepcionar milhares de negros, pobres e militantes de esquerda. Na grande mídia, no entanto, as notícias tão meticulosamente arquitetadas apenas dão conta da liminar obtida pelo shopping e, a seguir, sua decisão de fechar. Nenhuma menção à decisão favorável, em senti contrário, o que aliás explica a repentina atitude de cerrar as portas.

Vale também abordar um desdobramento importante, que só tomou corpo neste fim de semana (18, 19 de janeiro). Entre as várias opiniões sobre o assunto, uma se arroga isenta, pretendendo nem tanto desmerecer um dos lados, mas a questão como um todo. Por mais engenhosa a tentativa de fazer rodeios para elogiar alguns aspectos bem específicos dos rolezinhos, eu relaciono essas opiniões “isentas” entre aquelas abertamente contrárias aos eventos. Ao reconhecer o direito de todos aos shoppings e, inclusive, a existência da segregação racial no Brasil, nesse mesmo ato de reconhecimento “separa o joio do trigo”, para condenar o confronto aberto pelos rolês contra o racismo. Em geral, essa linha opinativa diz que os jovens não são inocentes ou tolos, e que querem romper com a opressão racial e social indo ao encontro do símbolo maior da sociedade capitalista, em vez de ir dar um rolê nas bibliotecas, praças, escolas, hospitais etc. Ainda acusa certos movimentos políticos — como sempre, desqualificados como desorganizados, inconsequentes, infantis… a lista de adjetivos é longa — estão aparelhando a questão para promover a si mesmos, usando os jovens como “massa de manobra” e, além disso, tomar o controle do sentido dos rolezinhos e plantar outros. Essa linha opinativa que condena o lugar do protesto também não hesita em contar o número de brancos, estabelecendo um tipo de “teste de tornassol” para definir a legitimidade do movimento.

É difícil acreditar que nada tenham aprendido com as lutas de afirmação racial, ao longo de tantas décadas, e não possam entender a qualidade fundamental dessa luta em romper com o gueto, em afirmar-se fora do lugar relegado e imposto como limítrofe para a sua presença e expressão, e em exercer o simples — contudo, tão revolucionário — direito de existir e estar nalgum lugar onde, por tanto tempo, estiveram segregados. Do ponto de vista político, estar num shopping é uma tomada de posição, uma demonstração ainda incômoda de que a sociedade deva ser igualitária e que, para sê-lo, a diversidade tem de ser vista, dita, ouvida, desentranhada onde sempre esteve oculta e ocultada.

Mas, do ponto de vista cultural, é bom lembrar que o rolézinhos não começaram com um cunho político diretamente reivindicatório, mas sim como uma ação espontânea. Ela vem ganhando outros contornos em boa parte porque interessou às elites “desnaturalizá-los”, expondo a insatisfação. Os rolezeiros queriam ir ao shopping, namorar, passear, divertir-se, como fazem aqueles que insistem em expulsá-los. Eles não foram lá para fazer um protesto político convencional, foram para socializar. É o estranhamento aparecido quando uma sociedade radicada no racismo se depara com negros e pobres fazendo o que era “natural” a brancos e ricos.

Não é verdade que, ao dar o rolê no shopping, os jovens negros, favelados e pobres estejam sucumbindo a alguma ideologia. Estão agindo espontaneamente numa sociedade em que esquerda e direita lhes apontam nesse caminho. A direita, ao reproduzir a visão de um modelo hierárquico com suas desigualdades de renda e acesso ao consumo. A esquerda, ao comprazer-se de fazer “justiça social” com políticas de inclusão dos pobres no mercado de consumo, repetindo uma visão de “sucesso” baseada no consumismo.

Se os intelectuais de qualquer matiz partidário não põem em dúvida este projeto de sociedade consumista, em discursos ou ações políticas, por que deveriam os jovens da periferia assumir essa crítica e dar sentido a suas ações a partir dela? Nas periferias, certamente existem cérebros bem mais “conscientes” do que nos corredores do poder. Porém, mesmo os mais “conscientes” certamente não veriam motivos para autoimpor-se uma exclusão social segundo a lógica capitalista, quando vários dentre os intelectuais pertencem a uma composição social que jamais fez voto de pobreza. No fundo, o que esta linha opinativa deseja é mandar os pobres para outros lugares. O que estão fazendo é alinhar-se ao gerenciamento da miséria, imbuídos de um espírito vanguardista para quem o pobre, o negro e o favelado não têm “consciência” suficiente, são incultos e precisariam de sua alta tutela intelectual. Em bom português: vanguarda do racismo.

O rolezinho não é um projeto revolucionário. O rolezinho não é um movimento pensado para ajudar este ou aquele na disputa eleitoral. O rolezinho não é um movimento social organizado pra levantar uma bandeira. O rolezinho não é um protesto organizado pedindo melhores áreas de lazer. O rolezinho não é um movimento musical para propagandear o funk da ostentação. O rolezinho não é e não tem de ser nada disso. Assim como os passeios daqueles que odeiam os rolezinhos e de quem nunca foi exigido nada disso. O rolezinho não tem que ser onde alguém queira que ele seja. Assim como seria absurdo alguém ficar ditando aonde se dará o passeio de cada indivíduo. O rolezinho não tem de ser numa biblioteca, nem na igreja, nem na escola, nem no shopping. Ele simplesmente não tem de ser nada em nenhum lugar em que seus autores não desejem. É de fato difícil viver com este tipo de democracia?

Do segundo viés, resta a velha disputa política, que está sendo atualizada desde junho. As organizações e militantes mais tradicionais, acostumados a controlar as ações políticas conforme a conveniência de seus planos ideológicos, de seus projetos eleitorais ou de inserção no status quo, que naturalizaram a censura interna e a castração de pensamento , chamando isso de centralismo “democrático”, — todos esses não pretendem reconhecer qualquer legitimidade em uma ação política fora destes planos centralizados. Assim, qualquer movimentação coletiva com conteúdo político que escape do projeto enrijecido ideológico, que não preveja etapas, personagens credenciados, hierarquias estabelecidas, será considerado oportunista e irresponsável. Irresponsável porque atrapalha o fatalismo de suas teorias, atrasando-as ou embaralhando-as. Oportunista porque dão combustível a algo que eles acham bobagem, que eles não são capazes de enxergar a importância, e assim, configura-se aos seus olhos como um desvio de foco de seus “soldados”.

Uma coisa embasando a outra, o centralismo e o autoritarismo tradicionalista, junto de um racismo e preconceito intelectual, criam um sentimento de repulsa tão grande ao fato social que se lhes apresenta, suplementado ainda pelo incômodo inconsciente de se ver fora do movimento, que procuram discursos para deslegitimar os eventos. Se não podem afrontar diretamente aqueles que em teoria dizem defender, procuram algozes entre os que, diferente deles, não se encastelam em teorias ultrapassadas e vão à luta do lado dos oprimidos. Assim, a cor da pele, a posição social, o local de moradia, a estética que apresentam, aliás toda e qualquer característica, serve para diferenciar os apoiadores daqueles “legítimos”. Assim, multiplicam-se os que dizem “vejam quantos brancos nesse evento que falsifica um rolezinho”, como forma implícita de dizer que, para militar na causa da justiça racial e social, deva-se pertencer a mesma classe social ou ter a mesma cor de pele. Se assim fosse, estaríamos na verdade reafirmando o racismo, e destruindo qualquer solidariedade entre grupos, além de desautorizar qualquer grande teórico ou líder marxista, se brancos e/ou bem-nascidos. Mas eles não se importam. Por mais que sejam brancos e pertençam à delgada camada chamada “classe média”, condenam qualquer branco ou de “classe média”, que não sejam eles.

O rolezinho é uma expressão cultural acima de qualquer coisa, que não precisa ter ambições políticas para fazer política (e assim foi), que portanto não tem qualquer obrigação de ser engessado como um protesto organizado convencional, conforme um projeto prévio ou ideologia. O rolezinho tem o direito de realizar-se livremente, sem ditames externos, sem receitas, e constituir-se enquanto afirmação cultural. Não onde a guetização elitista e racista ou alguma imposição com maquiagem ideológica a queira, mas exatamente no lugar onde não é querida. A partir do momento em que é atacada dos dois lados, seja da elite que sempre foi racista de primeira hora, assumidamente e sem qualquer vergonha, até aqueles que, disfarçadamente racistas, querem tutelar, programar e eventualmente liderar o que, hoje, veem apenas como “massa de manobra”. O rolezinho pode, sim, revestir-se de um caráter francamente de protesto, recepcionando a solidariedade de quem deseja somar-se, encontrar-se com eles, sem qualquer pretensão de vanguardismo ou cooptação.

 

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