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Ocupando velhos porões

Ocupação em estilo queer de banheiro masculino na universidade federal do RN rasga dissenso sobre o modelo majoritário do macho-branco-ocidental por dentro de todos os conceitos da modernidade: público, estado, “interesse geral”, gênero, sexo e trabalho. Uma subversão no nível da subjetividade, que desvia identidades dessa dominação difusa, mas nem por isso menos violenta.

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Por Pedro Feitoza

“O banheiro dos homens foi ocupado. E não como de costume, por seus corpos castrados de cu, sua inteligência de self-made man, sua racionalidade a toda prova, suas políticas viris e todas essas mijadas-em-pé do macho hétero ocidentalóide. O banheiro dos homens está, desta vez, ocupado por uma horda de homens fracassados, sapatânicas assassinas, bichas anômalas, translésbichas extraterrestres; gente do fora, gentália, gente que não fala a língua da normalidade e que, por isso, procria dialetos estrangeiros; gente que estrangeiriza o de casa, porque não tem casinha, caixa, etiqueta, padrão de fábrica. O banheiro dos homens foi ocupado por gente que resiste a viver com medo de não ser homem, gente que desfaz o homem, implode-o em submasculinidades, femininos excessivos e seis mil outros gêneros não catalogados.”

Assim começa o texto intitulado “Medo de Glitter”. Provavelmente indo além da vontade dx autxr, podemos considerá-lo como um manifesto de exposição do ato de ocupação por parte de jovens de um banheiro masculino no setor 2 da UFRN. É possível acessar o texto e fotos da ocupação aqui.

A mensagem é clara. A ocupação do banheiro se dá por um movimento de dissolução da figura do macho ocidental, chefe da família e da nação, chefe dx outrx, construída historicamente às custas da opressão de tantas outras e outros, da mulher, dx negrx, dx índix, dx homossexual, da bicha anômala, dxs transsexuais e translébichas, da gente de fora, da parte dxs sem parte, de todxs aquelxs que negam a negação da determinação. Daqueles que serão sempre xs outrxs de uma história que gira sempre em torno da referência do patriarcado civilizado. Movimento de dissolução que desnaturaliza todas as formas de determinação social da sexualidade e a explode numa infinidade de possibilidades; que tem no cu – ápice do processo alienante de dessexualização do corpo – lócus de merda e prazer, onde se caga e se goza, onde se afirma autonomia e constituição com outrxs.

Figuras tradicionalmente opostas, aqui são dispensadas e repensadas numa relação contínua que denuncia nossa relação alienada com nosso próprio corpo. Basta pensar no simples exemplo da nossa incapacidade de beber da água que acabamos de cuspir. As questões que surgem das provocações (no melhor sentido do termo) da ocupação são inúmeras e, apesar da temática central já ter sido delineada, não será dela que esse texto irá tratar. Talvez por isso ele seja um tanto dispensável. Meu interesse aqui é ensaiar algumas análises/sínteses e propor algumas inversões na forma de pensar aspectos do ato textual já referido e as reações bem peculiares de várixs estudantes nas redes sociais.

Assim, o texto se dividirá em duas partes.

1. As reações negativas ao ato, em linhas gerais, se resumem à tentativa de classificar de irracional a ocupação, contrastando-a com um comportamento “obviamente normal”. Essa acusação de irracionalismo tem o objetivo de impedir o reconhecimento do ato como forma legítima de denúncia e reivindicação social, de impedi-lo de operar como evento político de resistência e contestação à opressão, em suma, de excluir a voz dxs excluídxs. É como dizer que é preciso antes entrar, assumir os papéis sociais pré-estabelecidos, para só aí ter a possibilidade da denúncia e do anúncio. A grande maioria dos comentários dava ênfase à forma do protesto em relação às transgressões ao que é público, praticamente executando um corte epistemológico de encher juristas de orgulho: se a forma é inadequada, o conteúdo torna-se irrelevante. Através da reflexão sobre tais reações, a inversão que proponho aqui é percebê-las não como um contraponto ou oposição ao ato, mas sim como a confirmação do que o ato denuncia.

Um dos argumentos mais recorrente foi o apelo ao respeito pela coisa pública, ao patrimônio. Não foram feitas ponderações no estilo “apesar da depredação do patrimônio…”. A condição de respeito ao patrimônio atua de forma absoluta na condenação. Não sobra espaço à importância das questões tocadas pelo ato, mesmo que se trate da vida e felicidade de diversas outras pessoas. Formas de responsabilização civil por dano ao patrimônio é o que não falta em nossas instituições judiciais e administrativas. Mas e quanto as formas de responsabilização e combate em relação às opressões sofridas por minorias e maiorias? Os comentários dxs estudantes não conseguem chegar a esse
ponto.

Eu poderia dizer que numa sociedade patrimonialista como a nossa, na qual a propriedade é condição para a dignidade, não poderia ser diferente. Porém, gostaria de ir além. Mesmo que se afirme que nada foi quebrado e que o banheiro foi totalmente limpo pelos jovens após a ocupação, de nada adiantaria. O que está em jogo no apelo não é a mera preocupação pela subsistência da coisa pública, mas sim a manutenção da apropriação do espaço público por valores e padrões advindos de grupos hegemônicos. A reação não se precipita ao suposto dano físico dos objetos, mas à transgressão violenta de tais valores e padrões. Nas fotos, não há objetos quebrados ou inutilizados. O que há são paredes agredidas no branco da higienização civilizatória. São mensagens que expõem publicamente o que deveria se recolher ao âmbito privado, que expressam desejo pelo
que não deveria ser desejado, por ser satânico e sagrado.

O que havia não eram pessoas impedidas de entrar, mas corpos à mostra, corpos que não se adequam às imposições estéticas das propagandas de cerveja. “Vai raspar o sovaco e arrumar um emprego menina!” O arcabouço simbólico introjetado por uma sociedade doente continua a operar, passando de um preconceito a outro. Não só é preciso seguir o padrão estético, como também é preciso estar empregado. Dois pressupostos se lançaram de pronto: que a menina obviamente é desempregada e que a cidadania é condicionada à pseudo-produtividade capitalista. “Ridículo, existem outras formas de defender o que pensa.”

Outras formas quais? Formas que se adequem justamente ao que se denuncia? Que estejam dentro das coordenadas estabelecidas? Formas que pelo seu caráter dócil abandonam seu potencial contestatório? Os jovens não estavam simplesmente defendendo o que pensam, mas sendo o que são, desejando o que desejam, gozando o que gozam. O ato se consuma no tempo presente. Pelo público também se constitui o ser, o desejo e o gozo. O que se depreende claramente dos comentários é o total despreparo para a reflexão e abertura ao outro. A negativa “não entendi o protesto” não revela um ponto de partida, no qual x estudante admite ser incapaz de compreender o contexto posto a sua frente. Revela em verdade um ponto de chegada, ao qual x estudante recorre como efeito de retórica após ter analisado, enquadrado e assimilado a partir de seus pré-conceitos (Gadamer). Elx utiliza justamente o arcabouço simbólico que a ocupação do banheiro buscou desafiar e denunciar. O que de novo surgiria daqui senão mais do mesmo?

Ora, é claro que todos estamos sujeitos a essa operação, não podemos fugir completamente a ela. Mas x estudante deve ser capaz de, ao se deparar com uma situação claramente estranha (revelada pelo “ridículo”), refletir a partir de uma metafísica da alteridade (Dussel), ou seja, repensar a situação utilizando e problematizando referenciais em comum mínimos (no caso o fato de serem humanxs, jovens e estudantes) e abrindo-se à escuta dx outrx, de seus desejos e valores. Tentar passar ao outro para retornar a si, em uma síntese de soma maior que ambas as partes. Como já escrevi, o ato se consumou em sua própria atuação. Serviu e serve plenamente para aqueles que participam. Mas e para nós que estamos diante do computador? Para xs professorxs e estudantes que poderão discuti-lo em sala de aula, servirá para repensarmos nossas posturas e valores? Para
refletirmos sobre o fascismo social que permeia nossa sociedade/universidade?

O debate nas redes sociais é uma fotografia bem precisa de como pensa uma boa parte dxs estudantes da UFRN. É preciso que a Universidade assuma sua responsabilidade no ocorrido, não para punir ou aplicar qualquer forma de retaliação aos/às estudantes, mas para utilizá-lo para debate de questões que vão muito além da ocupação de um banheiro.

2. Passando às inversões que proponho aos aspectos do ato textual, primeiramente quero abordar sobre pensá-lo como uma narrativa pós-moderna, proposta admitida pelo excelente texto de Catarina Santos. Vejo diferente. Para mim ele explicita não uma transgressão pós-moderna, mas sim a radicalização do projeto da modernidade (em termos filosóficos e também históricos). Modernidade que não deixa de ser desdobramento da formação histórica do ego conquistador europeu (eu conquisto), revelador da face opressora. O que o projeto da modernidade procura inaugurar é justamente a dissolução de todo e qualquer fundamento “exterior”, a realização de expectativas de autofundamentação nas múltiplas esferas da vida social. O desafio é a construção de uma subjetividade auto-fundamentada, ou seja, que não encontre seu próprio fundamento a não ser em si mesma. Nesse sentido, para pegarmos apenas a questão da sexualidade, a ocupação do banheiro efetiva a proposta de autofundamentação na recusa de admitir que grupos ou instituições sociais, como o Estado, a Mídia e a Igreja, determinem subjetivamente o possível na sexualidade.

Aqui o fundamento que passa a operar é o da autoidentidade. Autoidentidade que não rejeita a participação dx outrx, do público, em sua constituição, mas que se define pela compreensão dos indivíduos de suas próprias práticas. Assumindo esse fundamento, as formas de produção da sexualidade abrem-se à pluralidade.

O segundo aspecto é sobre uma das passagens mais valiosas do texto, quando afirma que “autonomia não se reivindica, ou é agida ou não é”, o que concordo plenamente. Reivindicar autonomia seria, inversamente, assumir uma heteronomia. Mesmo que se tenha que percorrer um longo caminho para se compreender isso, existe uma grande verdade aí.

Porém, se pensarmos em um sentido mais profundo, o que se fez em vários momentos foi justamente o contrário, reivindicar autonomia ao grande Outro, ao espaço socialmente partilhado de significações. Seja através de textos, fotos, palavras, trocadilhos, imagens e expressões. E mais. Inversamente, através da negativa, se reconheceu a autoridade da UFRN, da reitoria e demais instituições “respeitáveis”. Não para comunicar uma carta de reivindicações, mas para comunicar uma não-carta. Assim, apesar do ato textual apontar no sentido inverso, o que emerge é justamente uma demanda por reconhecimento. Demanda que afirma diferenças, diversidade e distinções justamente para postular igualdade. Como diria Lacan, a linguagem nos trai e sempre revela mais do que desejamos.

Nenhuma das análises desenvolvidas nessa segunda parte do texto tem como objetivo fazer julgamento das intenções dxs autorxs, apontar falhas ou tentar iluminar novas ações. Minha intenção é apenas gerar algumas reflexões para tentar pensá-lo dentro de um contexto maior do que a própria UFRN e, quem sabe, suscitar alguns debates. Minhas posições diferem da visão de muitos que tiveram conhecimento da ocupação e provavelmente de seus participantes. Por isso mesmo a vontade de expô-las.
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Pedro Feitoza é mestrando em filosofia do direito na Universidade de Brasília

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