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Pensar-lentamente a revolução: diário de som a partir do Brasil

Percepção-relato das manifestações através dos sons.

Por Raluca Soreanu | Trad. Igor Peres

Para mover-se da Tahrir Square, a Syntagma Square, a Puerta del Sol, de lá a Zucotti Park, da Zucotti Park ao Gezi Park, e ao movimento recente “20 centavos” no Brasil, capturar seus ritmos comuns assim como seus matizes, nós talvez precisemos de um novo vocabulário. Para acompanhar as mudanças radicais no imaginário político é necessária uma nova semiótica. Seguindo as palavras de Bracha Ettinger, eu gostaria que pudéssemos pensar-lentamente, sentir-lentamente, pintar-lentamente esses movimentos, de maneira que se sobreponha uma forma de compreensão à outra e mais outra. Poderíamos assim movimentar-nos para além da pressa em encaixotar uma das semiotizações efetivamente inquietantes que o movimento brasileiro produziu – “o gigante acordou”, como uma simples instância do fascismo. Quando no útero do gigante na semana passada, encontrei formas de criatividade social e formas de sociabilidade que me convidaram a pensar-lentamente. No útero do gigante as pessoas tomaram conta uma das outras.Elas encontraram os estranhos para além de sua estranheza e para além dos códigos veiculados pelas cores dos partidos. Quando os ritmos aceleraram e as pessoas se viram à beira da confusão,imersos no som da guerra produzido constantemente pelas máquinas policiais, alguns intervieram oportunamente para que não pisoteássemos uns aos outros, como acontece com frequência em grandes aglomerações como esta. Com toda certeza, precisaremos olhar de perto este tráfego urbano alternativo das grandes mobilizações, e ver de que maneira se insere no movimento pelo direito à cidade. Havia também formas importantes de defesa do patrimônio na qual o conjunto plural de pessoas que cercava um monumento decidiu in loco que a memória que carregava era mais importante que o agravo de um indivíduo que desejava debruçar-se em seu pedestal. Certamente, este não é um movimento em direção ao indiscriminado e à confusão, mas uma espiral coletiva direcionada a novas formas de esclarecimento do que é relevante e precisa ser preservado. E assim, o canto“vem, vem, vem para rua vem!” emanado dos milhares de pessoas juntas na mesma batida é vazio em sua repetição somente na aparência.Só em aparência periga tratar-se de nada.Quando nos movemos para uma nova semiótica trata-se de algo bem localizado (talvez uma semiótica deleuzo-guatarriana) onde o significado é facializado e corporeificado. O que é a consciência facializada e a corporeificação rítmica do manifestante que não agride, mas protege, que não provoca, mas contém, que não destrói, mas produz artefatos políticos?

Enquanto muitas vozes condenam a falta da organização política, eu assisti a uma organização convincente. Quantas vezes em nossa experiência de vida marcamos um encontro com 300.000 pessoas nas ruas do Rio de Janeiro, e todos apareceram? Mesmo a quantofrenia da modernidade se viu perplexa ao deparar-se com esse novo fenômeno de mobilização, ao ponto de perdermos temporariamente nossa habilidade em contar: deveria haver 300.000 pessoas nas ruas do Rio de Janeiro, ou menos, ou mais, ninguém sabe. Essa falta de habilidade em contar não marca só a escala do protesto, mas transcende o contexto da contagem e do rastreamento do que a textura urbana comporta. Nós não poderíamos contar os manifestantes, pois eles circulavam de uma nova maneira, constituindo novos fluxos compostos por grandes aglomerações:eles eram circulares, oblíquos, espirais, ao invés de passarem simplesmente por pontos ou linhas obrigatórias.Ampliando a lente,prosseguem as observações sobre formas robustas de organização. Uma comunidade que acompanhei de perto, a do Horto Florestal, planejou sua presença meticulosamente, andou horas para o centro da cidade na defesa do seu direito de morar,ameaçado pela redefinição das fronteiras do Jardim Botânico. Havia uma impressionante mobilização anti-homofobia dentro do protesto cuja efervescência e lucidez na produção de artefatos políticos foram desencadeadas pela proposta legislativa de Marcos Feliciano de “curar” a homossexualidade. Estas são instâncias de plurivocalidade – haviaigualmente“negros” e “sem-terra” corporeificando suas longas histórias de luta. Havia militantes de partidos políticos convencionais. E, certamente, a extrema direita executando seus abusos e agressões usuais, mas sem a capacidade de fazer submergir toda a vitalidade do movimento em sua morbidade.

Há organização abundante que não vemos e para as quais necessitamos de uma nova semiótica; mas há também organização que não enxergamos, pois há um movimento constante em favor da opacidade de uma ordem que deseja preservar-se inalterada. Nós aqui talvez precisemos pensar sobre a vida dos artefatos políticos que cercam o protesto.A imensa aglomeração no Rio produziu milhares de cartazes com mensagens de pessoas e grupos (em registros que iam do trágico, ao irônico, ao fortemente cômico, e que por isso eram capazes de aglutinar solidariedades ao seu redor). Essas centenas de metros quadrados de expressão política foram dispostas ao redor da Praça da República,à medida que os manifestantes caminhavam na Avenida Presidente Vargas. As pessoas literalmente entrelaçaram seus cartazes nas cercas,organizando um museu de queixas.Esta coleção de materialidades robustas, as quais nos teriam ajudado no processo de nos olharmos e olharmos uns aos outros não estava mais lá dez horas depois. Elas haviam sido removidas, recolhidas com o lixo. Voltei para a Avenida Presidente Vargas pela manhã, antecipando-me ao desperdício deste objeto político, e tudo que foi preservado foram os restos de painéis de vidro quebrados de alguns quartéis-generais bancários,criando um museu alternativo do vandalismo, subarticulação e indiscriminação.Ao menos, as cercas de queixas políticas eram discriminadas, em seus conteúdos e sua constituição entretecida. Essa vida excessivamente curta e incompleta dos artefatos políticos diz algo sobre a capacidade do capitalismo de apagar consistentemente todos os traços da racionalidade política alternativa emergente.

Em cena há outra força que desorganiza. A simulação do som da guerra. No dia e na noite da imensa aglomeração,as ruas lembravam a guerra devido ao barulho constante provocado pelas explosões ao fundo. Explosões mais próximas ou remotas. O que explodia eram “bombas de efeito moral”, como chamam aqui, de uma maneira espantosamente explícita.Na verdade estas bombas são usadas pela polícia militar para intimidar e conter pelo som um adversário efetiva ou potencialmente violento. Isso é uma ferramenta incontida para conter a violência, contudo: ela não atua localmente, mas na manifestação como um todo, e mesmo por alguns quilômetros de distância; ela não esclarece onde poderia estar ocorrendo a violência efetiva(certamente algumas das pessoas que estavam presentes estavam usando suas próprias bombas de efeito moral na multidão e em seu entorno), para que os que protestavam tivessem a chance de sincronizar-se afastados dela, ou contra ela, mas, ao contrário, ela a multiplica. Há algo mais a dizer sobre essas falsas bombas. A vitalidade dos corpos é reclamada por seu som que é um som-fantasma imposto à localidade. Ela é uma bomba falsa. Não pertence ao lugar. Bomba-sonsa. Bomba-parcial. Essas ferramentas de guerra instituíram uma perigosa (e imensa!) cena de constante re-traumatização, onde nós na verdade poderíamos perder todo o controle que quereríamos manter,e as coisas poderiam tomar qualquer rumo. Existem muitos traumas recentes relacionados à entradadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nas favelas do Rio de Janeiro, que começaram em dezembro de 2008. Memórias da violência aqui são sobrepostas umas às outras, e nenhuma delas é respeitada ou posta para trabalhar criativamente através da imersão dos 300.000 no som da guerra.Porque deveríamos sentir,pelo som,como se estivéssemos em guerra? O que acontece com a memória das verdadeiras letalidades e plenitudes mórbidas da bomba neste bombardeio simulado? Parte do direito à cidade é precisamente aquele de não sentir-se como em tempos de guerra, se nós não estivermos em um.

E finalmente, uma questão recorrente para mim esse dias: como os acadêmicos vivem suas manhãs seguintes? Como a universidade se organiza em relação à política, à novidade do fenômeno para lidar, e as incertezas que com ele vêm à tona, apesar de todos os constrangimentos estruturais? Talvez seja hora de voltar ao pensamento de Adorno sobre a “solidariedade com os que sofrem” e trabalhar humildemente a partir daí. O problema da organização para mim é primeiramente um problema de auto-organização e de organização das proximidades de nossa vida vivida. Esse movimento não pedirá por líderes. Ele irá e já pede por co-habitantes da transformação histórica.Alguns dos advogados do Rio de Janeiro, por ora,responderam de uma maneira bela aos desafios local, oferecendo sua expertise para aqueles que foram submetidos ao abuso da polícia. Penso isso como advogado kairós. Acredito que a universidade pode organizar rapidamente espaços de elaboração onde podemos pensar-lentamente sobre o que está acontecendo nas ruas do Brasil. A intervenção da qual me vejo como parte integrante lutará para assegurar que a fábrica de processos coletivos que estamos experenciandonão seja constantemente rompida e traumatizada pela simulação do som da guerra.Assim,pessoas e grupos que já estão cuidadosamente organizados podem sentar juntos e organizar mais a si mesmo, ao invés de serem compelidos pela violência recente ou distante.

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