Por Silvio Pedrosa, em 28/11/2015 no medium.com
—
—
Numa conversa com Michel Foucault em 1972, Deleuze disse: “se as crianças conseguissem que fossem ouvidos seus protestos (…) isso bastaria para ocasionar uma explosão no conjunto do sistema de ensino”. Foi essa a epígrafe do plano de estudos que apresentei recentemente à seleção do mestrado. Meus alunos talvez não saibam (alguns agora saberão), mas todos os dias quando saio de casa, estou mais interessado neles do que em ensinar-lhes ‘história’. Cumpro a função prescrita pelo estado (como eles bem sabem de tanto ler e escrever sobre os assuntos do currículo), sofro do mesmo stress que meus colegas com a ‘indisciplina’ de muitos deles, mas nunca deixo o terreno da pesquisa — de uma certa etnografia, talvez — quando convivo com eles em sala (e talvez por isso seja um recordista de notificações e chamada de responsáveis). Essa co-pesquisa talvez me diga se estou certo, mas desconfio de forma otimista que nessas crianças e jovens (na sua figuração enquanto encarnação de uma alma comum à infância e à juventude) haja uma potência radical capaz de produzir outras formas de viver consigo e em comum.
As escolas em que trabalhamos tantos de nós, com afinco e dedicação, não são compatíveis com essas crianças e jovens e a escuta atenta ao que eles tem a dizer são capazes de explodir o conjunto do sistema de ensino estruturado, pelo menos, nas nossas cabeças. Para toda indisciplina há uma pedagogia professoral. Para todo mau aluno há uma ordem de disciplinas e saberes imposta de cima pra baixo. Para toda sala desorganizada há uma arquitetura educativa do século XVI. Pois para toda barbárie há um espelho civilizador que não se reconhece na sua própria criatura.
Quando vejo as escolas de São Paulo transformarem-se em usinas de produção de outra educação, experiências de (auto-)formação que não são simulacros de autonomia (programada), noto que mais do que um grande evento político, trata-se apenas da superfície quente e brilhante de um magma que corre subterrâneo e que subverte todos os dias uma educação imposta de cima pra baixo seja pelas indisciplinas e mesmo violências com que nos defrontamos – policiais que somos, nós professores -, e resta reforçada em mim a urgência em se recuperar a escola como lugar de tempo livre (a skholé grega) – tal como já o disse Jan Masschelein -, como terreno capaz de fecundar iniciativas de democracia para além da estrita igualdade, construindo autonomia real no trato com os saberes e as práticas do mundo. A escola como lugar de desobediência aos imperativos dos aparelhos de captura que nada produzem.
O trabalho de toupeira, que os teólogos da revolução esperam como os preparativos do juízo final que antecede a entrada no reino dos céus, mudou tanto que mais do que fazê-lo, as esquerdas não sabem sequer mais identificá-lo (e correm a recobrir a organizada rebeldia do estudantes com suas marcas e símbolos). Apenas um ‘compromisso bárbaro’ (como o que propôs Guattari num texto sobre a subjetividade maquínica) com essas crianças e jovens (bem como outras figuras do ‘devir-universal da juventude’) pode sustentar uma oposição real ao abismo que nos cerca. “É claro que nada disso está ganho!”, ressaltou Guattari nesse mesmo texto. Mas o que é que já esteve ganho para nós, os malditos?
—
Silvio Pedrosa é professor da rede municipal e participante da rede Universidade Nômade.