Por Antonio Negri, in Radical philosophy, n.º 154 (2009) | Trad. UniNômade BR
Toni resenha Rem Koolhaas para falar da arquitetura na condição pós-moderna, as condições de resistência biopolítica e as linhas de fuga para qualificar e romper o Junkspace.
Imagem: Angeli
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Dos textos reunidos no livro Junkspace1, Bigness (1994) é para mim o texto chave. A cidade genérica (1994) e Junkspace (2001) são complementos em parte coerentes, em parte paradoxais. Concordo com os argumentos de Bigness, além disso, Bigness é para mim – com Delirious New York – o texto básico para a leitura e crítica da arquitetura de hoje.
“A Bigness é o ponto em que a arquitetura se torna ao mesmo tempo máxima e minimamente arquitetônica: ao máximo por causa da enormidade do objeto; minimamente por sua perda de autonomia – ela se converte em instrumento de outras forças, se torna dependente. A Bigness é impessoal: o arquiteto já não está condenado ao estrelismo.2
A Bigness já não precisa da cidade, compete com ela, representa-a, apropria-se dela, ou melhor ainda, é a cidade. Se o urbanismo gera potencialidades e a arquitetura as aproveita, a Bigness desdobra a generosidade do urbanismo contra a mesquinhez da arquitetura. Bigness = urbanismo contra arquitetura.3”
Com isso, superamos a poesia e a história da cidade. Entre os séculos 19 e 20, entre G. Simmel e M. Weber, entre Burckhardt e Braudel, a cidade tinha se convertido de novo em polis, no centro imperial. Hoje, o espaço e o tempo destroem a centralidade utópica. A complexidade do mercado mundial reconfigura a forma da cidade: “mais da metade” da população mundial que vive nas cidades afirma uma centralidade real. A Bigness está presente, a desmedida da metrópole. O que é então o corpo metropolitano?
O texto A cidade genérica complementa Bigness, ilustra e aprofunda suas reflexões. Estou parcialmente de acordo com o texto. Dos 17 parágrafos que o integram, estou de acordo com mais da metade da primeira seção. Nela, se desestruturam os conceitos de identidade metropolitana, da história da cidade, do espaço público. Os conceitos são desconstruídos mostrando de que maneira a metrópole se fez fractal, anômica, enorme, multinacional etc. Mas eu concordo menos com a metade restante do texto, especialmente os últimos pontos, em que a metrópole aparece como uma máquina que esvazia a cidade de realidade, como um campo sociológico em que a horizontalidade se apresenta em via de desaparição, em que qualquer estabilização é hipócrita e fugaz – uma cidade de espaços vazios, pânico e insegurança contínuas, gritos e alaridos, parasitismo infraestrutural etc.
Aqui, o pós-moderno – categoria fundamental do pensamento de Koolhaas, já inaugurada plenamente no manifesto retroativo para Manhattan, que foi Delirious New York – se estabelece como uma categoria irreversível, como um modo de ver o presente, mas ao mesmo tempo este presente se mostra a nós perverso, corrupto, e se converte no elemento fundamental para a descrição do espaço metropolitano.
Não estou de acordo, e mais à frente explicarei e discutirei melhor o desacordo. Mas antes vejamos Junkspace. Aqui, a modernização alcança o cume, é a apoteose da modernidade, sem rota de fuga, um fascismo sem ditadura:
“É o fascismo isento de ditador. Desde o repentino beco sem saída em que você é deixado por uma gigantesca escada de granito, escadas rolantes levam você a um destino desconhecido num trajeto com uma vista provisória de vidro (…) vivemos sempre num sanduíche (…) entre o supérfluo e o inevitável (…) sem caráter, anônimo, repetitivo, vazio, disperso, vácuo, risível, pós-existencial (…) etc.4”
Estamos ante uma situação rabelaisiana, plena de sarcasmo e intensa ironia, em que falta completamente o sorriso. A metrópole em que habitamos é um enorme e grotesco teatro, sem escapatória, efetivamente sem esperança. O arquiteto está cansado. Esse mesmo urbanismo que deveria vencer a arquitetura e desmistificar o arquiteto só existe como não-planificação de uma paisagem metropolitana indefinida e perversa. O arquiteto desmistificado segue existindo como acusador laico, amargo, testemunhal e desencantado.
Apesar disso tudo, alguma coisa ainda acontece por aqui, um estalo, uma fagulha, um evento. Será literatura? aqui o texto desloca a argumentação de Koolhaas… De fato, aqui está o ponto chave, em Junkspace, quando aparece um paradoxo manifesto. Quanto mais se aprofunda a crítica da cidade e, portanto, desaparece o seu horizonte como cidade; quanto mais se transforma a metrópole num horizonte infinito, tanto mais esse Junkspace perde a aparência matemática e plástica da arquitetura tradicional e assume, ao contrário, uma fisicalidade corpórea e extraordinária, transpondo o nível da análise do surrealismo de um De Chirico à sonhada hipercorporalidade de Bacon. O Junkspace é biopolítico.
Como o científico do Renascimento, crescido entre linhas e compassos, que vaga pela cidade para encontrar os açougueiros que esquartejam bezerros para vender a carne e oferecem a possibilidade de anatomizar seus corpos, da mesma forma Koolhaas atravessa a metrópole para encontrar o corpo dela, para anatomizá-lo. Os primeiros teatros anatômicos tinham sempre rotas de fuga clandestinas – normalmente um poço ou passadiço, levando até a o rio – através do que se faziam passar os restos pestilentos do trabalho anatômico. No Junkspace se desenvolve a análise de Koolhaas. Mas é aí também onde começa o descobrimento do corpo metropolitano.
Junkspace, lixo: mas é aí dentro que habitamos. Recentemente, Agamben falou da metrópole referindo-se a Foucault, para notar como, ao marcar a passagem do poder territorial do Antigo Regime ao biopoder moderno, Foucault apresentava dois modelos disciplinares distintos: o do tratamento da lepra e do controle da peste. O paradigma da lepra era o da exclusão: tratava-se de tirar os leprosos da cidade, estabelecendo uma divisão clara entre fora e dentro. No caso da peste, diferentemente, se trata de dividir, vigiar e controlar cada um dos bairros, cada rua, cada casa, examinar e registrar tudo. Segundo Foucault – prossegue Agamben – o poder político da modernidade resulta da convergência e superposição dos dois paradigmas. Os leprosos se tratam como empesteados e os empesteados como leprosos. O resultado é a superposição de estratégias e dispositivos baseados em oposições binárias do tipo: inclusão/exclusão, são/doente, normal/anormal, dirigidos a subjetivar disciplinarmente e/ou controlar os sujeitos.
“Se aplicarmos este duplo paradigma ao espaço urbano, teremos um primeiro esquema para a compreensão do novo espaço metropolitano ocidental. Trata-se de um esquema complexo dentro do que os dispositivos simples de inclusão e visão (do tipo “lepra”) convivem com uma articulação complexa dos espaços e seus habitantes (do tipo “peste”), como fim de produzir um governo global dos homens e das coisas.5
Agamben junta a essa consideração a referência ao controle do espaço urbano em Gênova, em julho de 2001, por ocasião da cúpula do G-8. Poderíamos acrescentar também o governo do espaço público ao redor de Rostock, em 2007.”
O que significa tudo isso? Que o Junkspace é um lugar de inclusão disjuntiva, do mesmo modo que, em geral, também é o processo capitalista de produção. O capital não existiria se não existisse a força-trabalho e não seria produtivo se não lhe extraísse o valor. Mas ao mesmo tempo, o valor deve ser separado da força-trabalho, para dominá-la. Na metrópole produtiva, a inclusão disjuntiva investe a população inteira da metrópole como espaço produtivo e, a seguir, a distribui por funções, móveis e flexíveis, substancialmente precárias, visando à produção do valor, isto é, a produção de riqueza e a extração de lucro.
Subjetivemos a realidade pós-moderna da metrópole. Quando se passa de uma condição analítica pura, de uma reflexão fenomenológica objetiva e desencantada, para levar em conta também a dimensão biopolítica da metrópole, aí o quadro que se oferece, além de ser extraordinariamente complexo, mostrará a coextensividade das produções de subjetividade com a metrópole: na circulação de mercadorias, nas redes de informação, nos movimentos contínuos e no nomadismo radical da força de trabalho, a exploração feroz dessas dinâmicas… Ao mesmo tempo excesso contínuo e inacabável de poder biopolítico da multidão e excesso em relação à capacidade de controle das instituições dominantes. Todas as energias disponíveis foram postas a trabalhar, a sociedade foi posta a trabalhar: Junkspace é igual à sociedade do trabalho. Dentro desta totalidade explorada, dentro deste mandato laboral, vive portanto uma liberdade intransitiva, irredutível ao que tenta subjugá-la. E sim é certo que a liberdade, quando o domínio exerce sua função para voltá-la contra si própria, está aqui de certa maneira absorvida pelas consciências (e isto se chama fascismo), e sem embargo dentro desta ambivalência se abrem linhas de fuga: o sofrimento é por vezes produtivo, mas nunca revolucionário – o revolucionário é o excesso, a abundância, a potência.
Eis novamente – visto de fora – o Junkspace: desequilíbrio e ruptura que se multiplicam sobre o indefinido espaço metropolitano… Mas este também é um momento em que se multiplicam as fronteiras e os obstáculos, as linhas de fratura e os muros, que não podem já ser considerados simplesmente como bloqueios colocados pelo poder, ou como pântanos em que nos atolamos, mas sim interfaces que polarizam as relações. Uma interface é uma membrana que vibra revezadamente com os golpes de dois mundos diferentes, de duas pulsões de vida diferentes. A interface é um lugar de entrada e saída, de conversão e tradução de linguagens, de transformação daquilo que chega e daquilo que se vai. Na metrópole pós-moderna, existe sempre uma fratura entre pulsões e direitos, um dècalage que constitui ao mesmo tempo bloqueio e potência das forças produtivas. Talvez, de novo, aqui se deva considerar como tema central, para compreender precisamente o Junkspace que habita a Bigness, um vínculo entre forças produtivas e relações de produção dissolvidas na forma biopolítica. Poderão ser reconstruídas de forma revolucionária?
Duas notas breves destinadas aos urbanistas contemporâneos. Ao lado do pós-modernismo de Rem Koolhaas está sempre o reformismo urbanístico. Este sempre seguiu as transformações da metrópole reconhecendo a transformação, certamente, mas amiúde mistificando-a e tornando-a utópica. Este é seu máximo esforço: o reformismo hipermoderno se empenha no intento de corrigir a metrópole desde dentro, regulado pela ideologia da transparência (materiais ligeiros, figuras lineares, predomínio do vidro etc). Trata-se então de dobrar a consistência complexa da metrópole num só eixo de leitura, ao mesmo tempo plástico e formalista. Aqui a indústria arquitetônica revela seu parentesco com a da moda e do cinema. Este projeto se estende a todos os setores da produção arquitetônica, os decompõe e recompõe segundo lógicas que, na realidade, escondem a vontade de desarticular qualquer possível antagonismo dos sujeitos e das consciências. E assim inundam de luz artificial todos os espaços em que a exploração e a dor não podem ser mostradas. O racionalismo e o funcionalismo se tornaram brandos, mas ainda são eficazes na obra de mistificação.
Assim o cinismo pós-moderno se opõe justamente ao reformismo hipermoderno: este tem um olho atento à Bigness e sempre um olhar perverso sobre o Junkspace. O pós-modernismo ataca a história mas é historicizante, ataca a Santíssima Trindade “renda, lucro, salário” como uma estratificação arqueológica, mas sabe que não vai destruí-la, além disso, sabe que ao herdá-la acabará reproduzindo-a. Existe uma crueldade que o pós-modernismo consegue fazer ver de maneira exemplar: é o reconhecimento de que o homem qualquer – o cidadão, o trabalhador, o nômade – em definitivo está imerso no mundo da mercadoria, numa metrópole que o explora. É também o pós-modernismo uma declaração da incapacidade de subtrair-se a essa realidade? Estaria a Bigness dominada por um sentimento de impotência? Conduz ao reconhecimento do Junkspace a conclusão asmática de que é impossível atuar?
Tudo isto está aí, diante de nós, as ciências da cidade foram submetidas ao biopoder. Basta. Esta situação não pode durar mais, é necessário invertê-la. Estou convencido de que as forças da vida não se submeteram jamais ao controle e que, somente se as considerarmos superficialmente, se possa dizer que estão cada vez mais submetidas ao mandato capitalista. Desde este ponto de vista do capital, a metrópole é horrível. E também estou convencido de que não há mais esperança de encontrar outro valor de uso que não seja o da circulação do valor de troca, e de que também não haja nenhuma possibilidade de escavar uma natureza, uma zoe6, mais além da consistência pesada do poder sobre o bios.
E apesar disso, quanto mais as cidades e metrópoles se convertem em lugares de produção, mais elas são lugares de resistência. Hoje atravessar uma metrópole é atravessar uma fábrica imaterial. E da mesma maneira que, nas fábricas fordistas, coabitavam a dureza da produção e a alegria do encontro, de estar juntos, de constituir a classe, na metrópole coabitam agora a solidão e a multidão. A metrópole é capital constante em ação, é uma expropriação louca da força de trabalho. Mas é também o lugar em que a multidão se reapropria do capital e do comum produto do trabalho. Em consequência, a metrópole é ao mesmo tempo lugar de exploração e terreno do êxodo. Da mesma maneira que se havia construído a hegemonia do operário sobre a fábrica no projeto comunista, assim é na hegemonia do trabalho imaterial e da multidão cognitiva da metrópole, que pode pode ser construída, dentro e contra o projeto de produção, no comum. A partir dessa consciência, tudo pode recomeçar, tudo deve voltar a começar.
Eu realmente não sei o que podem fazer os arquitetos presos na crise da modernidade. Mas me parece que eles devem decidir bem como interpretar a relação de inclusão/disjunção, quer dizer, a relação produtiva que se estende entre metrópole e multidão. Será possível abrir a metrópole à possibilidade de encontro e construção de lutas? Certo que já não é mais o momento de confinamentos resistentes nem tampouco haja espaço para utopias. Mais além da transparência hipócrita do hipermoderno, mais além da ilusão de que os espaços urbanos possam ser gentrificados por classes criativas ao gosto de Tony Blair (na verdade, aqui o Junkspace se converte numa arma de desmistificação e luta), se trata de liberar novas formas de vida e investigar novas formas de comunidade que tendam em direção do êxodo.
Eu quase rio quando meus companheiros mais próximos me falam, tomando-as como indicações de alternativas, de comunas habitacionais, de jardins e hortos autogeridos, de casas ocupadas multifuncionais, de ateliês culturais e políticos, de empresas de uma Bildung [NT. cultura formativa] comum… O realismo cínico pós-moderno mereceu a minha crítica, mas é justo partir de seu realismo e não se alimentarem mais ilusões sobre o fato que a cidade e a metrópole estejam consignadas ao exercício do biopoder; é justamente a partir desse reconhecimento consciente que sou levado a me perguntar: o que quer dizer restituir a metrópole à produção biopolítica? Na dimensão da Bigness, não do artesanato, mas do General Intellect, talvez nós precisemos voltar a falar em democracia e comunismo.
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NOTAS
1 Negri se refere à edição italiana dos textos de Koolhaas: Rem Koolhaas, Junkspace: per un ripensamento radicale dello spazio urbano (Macerata: Quodlibet, 2006).
2 Rem Koolhaas y Office for Metropolitan Architecture. ‘Bigness, or the Problem of Large’, en: Rem Koolhaas y Office for Metropolitan Architecture. S M L XL : OMA. ([S.l.: s.n.], 1993).
3 Koolhaas, Junkspace.
4 Ibid.
5 “Agamben on the metropolis,” s.d., http://www.generation-online.org/p/fpagamben4.htm.
6 Negri se refere à distinção célebre, que Hanna Arendt retoma de Aristóteles reelaborando-a, entre a esfera da vida qualificada (bios) pela ação política e a esfera da vida natural (zoe), simplesmente reproduzida pelo trabalho.
REFERÊNCIAS
“Agamben on the metropolis,” s.d. http://www.generation-online.org/p/fpagamben4.htm.
Koolhaas, Rem. Junkspace : per un ripensamento radicale dello spazio urbano. Macerata: Quodlibet, 2006.
Koolhaas, Rem, y Office for Metropolitan Architecture. S M L XL : OMA. [S.l.: s.n.], 1993.