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O comum: dos afetos à construção de instituições

Entrevista com Antonio Negri, por Thiago Fonseca e Giuseppe Cocco, em 17/11/13, em São Paulo | Tradução: Thiago Fonseca | Revisão: UniNômade

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Versão integral da entrevista, publicada parcialmente na Revista Cult deste mês, em que Antonio Negri, durante viagem ao Brasil, desenvolve a relação entre os conceitos de multidão, comum, trabalho e classe, explica a potência de Spinoza para o pensamento político, comenta os protestos no Brasil inseridos num ciclo global e em termos de produção de subjetividade, faz referência à Marilena Chauí (que o citou numa entrevista anterior à mesma revista) e a importância de construir instituições, com a aliança entre os diferentes, como resposta ao vazio da representação.

Obs: “NR” = Notas dos revisores.

Thiago Fonseca: A primeira pergunta é a respeito da sua presença no Brasil. Do que eu sei da sua agenda, o senhor vai falar aqui em São Paulo sobre revoltas globais e a constituição do comum, a construção do comum, um tema político muito atual. Eu entraria por aí: o que é o comum, e como ele se constrói?

Antonio Negri: Trabalhei com Michael Hardt num livro que, a propósito, se chama Commonwealth (Harvard Press, 2009), no qual o tema do comum figura como objeto central da pesquisa. O conceito de comum resulta da série de estudos que fizemos a partir de Império (Record, 2001). É, por assim dizer, o último volume, não porque se trate de uma trilogia – “o três é o número perfeito”, realmente não –, mas porque com Império tínhamos realizado uma análise radical das categorias do pensamento político, não simplesmente ligadas ao conceito de soberania, mas todas as categorias que dele derivavam, e que deveriam ser modificadas a partir da globalização. Dessa maneira, a globalização funciona como elemento central, não somente para a construção de conceitos referentes ao mercado mundial, mas também para a destruição de condições conceituais e discursivas vinculadas ao quadro precedente, o dos Estados-nação.

Nessa perspectiva, o conceito de trabalho é fundamental. O conceito de trabalho, para mim e Hardt, é fundamental, uma vez que nos mantemos ligados à matriz marxista de análise e de crítica. O trabalho hoje se apresenta modificado: modificado radicalmente com relação ao período fordista – e também fortemente modificado com relação a qualquer definição tradicional de trabalho, como simples prestação de serviço ou execução laboral, que comportem extração de mais-valor. O trabalho é cada vez mais baseado nas relações, no enraizamento ontológico nas relações e, portanto, a subjetividade a que ele se refere é transformada. A partir dessa definição de trabalho (de força-trabalho), nasce o conceito de multidão, como crítica a todo conceito de “classe massificada”. Mas isso não significa que o conceito de multidão não seja um conceito de classe, quer dizer, que não esteja profundamente ligado à função do trabalho. Ora, nessa base que se implanta o conceito de comum, o conceito de comum como estrutura, ou se você quiser, como eixo estrutural da multidão, na medida em que ela é constituída por singularidades, por um conjunto de singularidades trabalhando. O conceito de comum não é, portanto, em caso algum, um conceito de organismo, conceito pensado como estrutura orgânica; é, ao contrário, resultante de uma série de atividades singulares que, de fato, se desenvolvem a partir da consistência subjetiva dos agentes.

Thiago Fonseca: Eu imagino que as manifestações são um exemplo de um desejo ou de uma vontade de construir esse comum a partir dessa nova configuração do trabalho.

Antonio Negri: O conceito de multidão pode compreender, sem dúvida, os movimentos nos quais as singularidades se combinam a partir de expressões de desejo, como complexos afetivos, como encontros de corporeidades postas em jogo. Mas o que me parece mais importante é sublinhar que não se trata nem de um processo indiferenciado nem indistinto, ou seja, que não lhe faltam qualificações. O processo que reúne multidão e comum é qualificado, é um processo ontológico. É qualificado pela produção de comum e é algo que não diz respeito somente à fenomenologia das manifestações dos movimentos sociais, mas, sim, à própria ontologia desse processo. É isso que arranca, por exemplo, cada expressão multitudinária (que comporta – mediante a afirmação do comum – um crescimento do ser) de qualquer interpretação que queira reduzir tais movimentos de multidão a experiências reacionárias ou mesmo fascistas. Temos aqui um conceito de bem, pela comunidade, pela totalidade das singularidades que estão em jogo, e que é qualificador. Do meu ponto de vista, a relação comum-multidão não pode, em caso algum, ser interrompida ou dissolvida, se for considerada do ponto de vista ontológico.

Reafirmar isso me parece importante também para responder a algumas afirmações que foram feitas recentemente acerca das potencialidades simplesmente subversivas ou mesmo reacionárias dos movimentos multitudinários que se deram no Brasil a partir de junho [de 2013]. Isso não impede que, como em cada realidade, multitudinária ou não, o quadro possa ser invertido pela intervenção de outros poderes.

Ao falar de multidão, não estamos descrevendo um processo teleológico. Esses processos são sempre atravessados por liberdades, por escolhas, pela capacidade de ruptura e descontinuidade, por obstáculos, em suma, por tudo que caracteriza a sua aleatoriedade – mas uma aleatoriedade potente. Não se trata de condições necessárias ao desenvolvimento da multidão, mas de condições sempre ditadas pelas decisões subjetivas, produções que se dão no interior desse desenvolvimento (construção multitudinária).

O conceito de multidão, como construção multidão-comum, representa duas faces de uma mesma medalha constitutiva. Quando a multidão se torna conceito de classe, e quando participa do trabalho, entra na relação de capital, entra numa relação que é – por definição – antagônica. Ora, a relação é antagônica entre o desejo que o capital tem de privatização, de propriedade e, no sentido contrário, as tensões sempre mais produtivas de ser que compõem os movimentos e os desejos da multidão. Aqui o choque é sempre extremamente pesado – verdadeiramente antagônico. E é aqui talvez que se vincule a concepção foucaultiana de poder, mas ao mesmo tempo se vincula à construção marxista da relação do capital, não parece? Para ambos, se trata da análise de uma relação: pode ser entre capital constante e capital variável, na acepção marxiana, como pode ser entre ações de disciplina ou de controle contra a resistência, no pensamento foucaultiano. Eu retomo essa relação antagônica em termos de “poder contra potência”, que me vinculam a uma ascendência spinozista.

Thiago Fonseca: Essa é inclusive a minha segunda pergunta. No seu vocabulário há essa terminologia de Spinoza: ser, potência, desejo. O quanto é importante o pensamento de Spinoza no seu próprio trabalho? qual a sua experiência como um marxista leitor de Spinoza?

Antonio Negri: Aqui a resposta deverá ser um pouco biográfica, não? Venho de uma experiência marxista muito determinada, a do operaísmo italiano, que, se se quiser apreender de maneira ampla, se põe no quadro das transformações do marxismo ocidental e se insere em sua crise, revisão, reconstrução, que ocorrem no segundo pós-guerra, particularmente entre 1953 e 1956, com o 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética e a revolta operária de Budapeste, na Hungria. Estamos, por assim dizer, no mesmo grupo em que se encontra o pensamento de Hannah Arendt e os últimos desenvolvimentos da Escola de Frankfurt. Estamos também no quadro de pensamento em que se encontram Foucault e o pós-estruturalismo francês, onde surgem temas como: produção de subjetividade, resistência, corporeidade etc – temas que passam a ser tomados pela temática filosófica e absorvidos na temática do marxismo ocidental.

Acredito também que o princípio posto por Tronti (“as lutas vêm sempre antes do desenvolvimento capitalista, antes da decisão capitalista de reestruturar o seu desenvolvimento”) seja uma afirmação que toma esse contexto histórico como condição fundamental. Para mim, como para muitos outros companheiros, foi extremamente importante aprofundar as condições ontológicas dessa afirmação: “as lutas vêm antes do desenvolvimento do capital”. Foi importante para nós naquela fase a leitura de Lukács e de Merleau-Ponty, que nos parecia, de fato, que aprofundavam uma fenomenologia ontológica da historicidade. Tratava-se de uma tentativa de imersão no ser, tentativa de reencontrar a densidade, a intensidade, a qualidade da produção, quebrando a tensão fraca da fenomenologia ontológica. O que aconteceu a seguir me parece verdadeiramente central.

A partir daí, começamos a destacar, por exemplo, os problemas de como qualificar a corporeidade, nos dois sentidos, quer dizer, tanto da corporeidade-maquínica, da relação homem-máquina, quanto das transformações alienantes que se determinam nesse terreno. Em segundo lugar, destacar a relação subjetividade-cooperação e, portanto, o conceito de singularidade – singularidade na medida em que cada ser é determinado não por sua consistência, mas pela relação com os outros, portanto, da relação com o outro como fundadora. Outro tema importante foi uma forma específica de retomada da virada linguística na história da filosofia, uma vez que os elementos ideais, linguísticos, afetivos etc, passam a ser considerados essenciais para a qualificação da singularidade, da materia quantitate signata [NR.: matéria específica usada para moldar indivíduos e não a matéria em geral, um conceito central de Duns Scoto para sustentar que a diferença entre indivíduos é de essência, da ordem formal da matéria].

A partir de tudo isso, e eu poderia continuar por infinitos conceitos mais, vemos o quanto Spinoza é central. Spinoza é uma antecipação desse desenvolvimento conceitual. Comigo o encontro se deu em meados dos anos 70, que depois se beneficiou do muito tempo à disposição quando estive preso: tive a possibilidade de desfrutar Spinoza para ocupar um tempo que, de outra forma, seria vazio. Foi a partir daí que assumi uma terminologia spinozista.

Sempre preferi pensar fora dos termos prescritos pela história da filosofia. Sempre pensei que a história da filosofia, como dizia o bom Deleuze, fosse o ópio do povo; que, enfim, a história do pensamento que, a partir de uma obscura ilha grega, e se retoma coerentemente até hoje, é uma narrativa sem sentido. A filosofia é a cada vez um aprofundamento de uma realidade que temos diante de nós, uma relação sempre nova com a realidade, com os outros, um discutir contínuo. A historicidade filosófica é sempre uma criação. Contudo, ao invés disso, ela foi reduzida a um manual, a uma repetição, a uma contínua tentativa de redução à ordem. Ora, Spinoza foi para mim uma tentativa de dar sistematização a uma série de pensamentos que nasceram fundamentalmente dentro de uma experiência de reflexão e de ação política. O que, de todo modo, já vinha sendo preparado pelo meu trabalho precedente, no sentido de que já nos anos 60, portanto, uma boa década antes, tinha começado a trabalhar sobre aquilo que eu chamava de “alternativas da modernidade”, por um lado, configurando uma linha de Descartes a Hegel, passando por Rousseau e pelo pensamento idealista da modernidade, enquanto, de outra parte, encontrei em Spinoza, assim como em Maquiavel, uma profunda originalidade subversiva, que poderia se vincular ao pensamento marxiano e ao pensamento pós-estruturalista francês.

Giuseppe Cocco: Há no seu primeiro livro sobre Spinoza, A anomalia selvagem, essa antecipação como anomalia, e depois no livro O poder constituinte, que tem como subtítulo As alternativas da modernidade. Qual é a relação entre esses dois livros?

Antonio Negri: Creio que seja uma relação de continuidade. O livro sobre o poder constituinte saiu uma década depois, no início dos anos 90. É uma continuidade, precisamente. A minha formação filosófica se dá na passagem entre a filosofia e as ciências jurídicas, e, portanto, para mim, reencontrar a potência dentro do direito, do direito constitucional, era fundamental. E era fundamental também com relação a uma série de polêmicas que, à época, se desenrolaram com meus ex-companheiros – como Tronti, Cacciari e outros, com os quais havia construído o operaísmo. A ideia fundamental era a de reencontrar o poder constituinte como poder positivo e não como poder de exceção, como poder determinado pelas condições de classe. Em essência, o pensamento do comum. Por outro lado, ao contrário, punham o poder constituinte, ou de maneira mais geral, o poder soberano, como poder de exceção schmittiano, e assim a política como autonomia do político, autonomia na construção de seu próprio esquema de desenvolvimento.

Para mim, o conceito de poder, e mesmo o de poder constituinte, era continuamente dialetizado, ou melhor, com uma palavra mais correta, des-dialetizado, encarnado com os movimentos sociais concretos que o faziam desenvolver-se. Não há poder constituinte se não como potência de um conteúdo específico, de uma determinação histórica forte. Deste ponto de vista, o conceito de poder constituinte se opõe completa e radicalmente à definição schmittiana de poder constituinte como poder soberano: é a exceção que cria o direito? Não!

Giuseppe Cocco: É a definição de Agamben.

Antonio Negri: Sim, exatamente. De fato a crítica de Agamben a Poder constituinte – em Homo Sacer – é a crítica ao fato que o poder constituinte, de qualquer maneira, ainda se trate de poder. E é uma crítica absolutamente equivocada.

Thiago Fonseca: Eu penso que o senhor já respondeu a minha pergunta seguinte, que era justamente sobre a relação entre teoria e prática, e a história da filosofia não ser uma história ideal, mas uma história criativa de filosofia. A minha pergunta seria: como o senhor entende a relação entre teoria e prática e se essa maneira, como o senhor já falou, do Deleuze, é uma forma já materialista de juntar teoria e prática, de não fazer algo no plano das ideias?

Antonio Negri: Sim, creio que essa pergunta já esteja esclarecida. A única coisa que se poderia acrescentar é que não se trata simplesmente de uma relação filosófica, objetiva, geral. É também uma relação ética que me parece fundamental: teoria e prática não são simplesmente vinculadas no pensamento, são também vinculadas na ação. Esta é uma resposta, se quiser, gramsciana – o pouco de Gramsci que me resta é fundamentalmente esse, e não creio que seja pouco importante.

Thiago Fonseca: Uma das perguntas que eu tinha preparado diz respeito ao texto da Marilena Chauí [NR: Entrevista à Cult n.º 182, Pela responsabilidade política e intelectual, em que a filósofa uspiana critica intelectuais brasileiros que citam Negri, Foucault e Agambem, no contexto das manifestações e de sua criminalização, também respaldada por parte da esquerda]. Não sei se o senhor quer responder.

Antonio Negri: A única coisa que posso dizer é que não consigo compreender como Marilena, pessoa extremamente culta, tenha podido confundir Agamben, Foucault e Negri numa interpretação de direita da multidão. Para mim, as turbas de direita, quando falo com propriedade de linguagem, e sem fórmulas retóricas de provocação, se chamam, por exemplo, “Aurora Dourada”, na Grécia. Isto é, são grupos especificamente nazistas ou similares. Não se pode fazer um discurso assim genérico da multidão. É claro, como se disse, que o conceito de multidão é contraditório, falamos dele como uma relação de forças. Dentro do capital há, por um lado, o mando e, por outro, a multidão dos trabalhadores, das singularidades sociais colocadas para trabalhar. É claro que nessa relação, quando a multidão é fraca, seu conceito pode tornar-se equívoco, mas quando a multidão é forte, essa é precisamente a multidão do comum.

Thiago Fonseca: No texto Declaration (2012), o senhor e Michael Hardt afirmam, sobre as lutas e o ciclo de lutas que tiveram início em 2011, que esse novo ciclo de lutas recusa a representação política. Aqui no Brasil, quando, em junho, as pessoas saíram às ruas, em princípio para pedir a redução das passagens, das tarifas do transporte, houve leituras no sentido de que as pessoas não estavam lutando contra a representação, mas fazendo demandas ao Estado, como fizeram demandas por educação, por hospitais, e que receberam o título de “padrão FIFA” em referência aos estádios de futebol, ou demandas pelo fim da corrupção, mas não pelo fim do Estado, segundo algumas leituras. O que o senhor avalia desse tipo de leitura: as pessoas estavam nas ruas recusando a representação ou ainda pensando em termos de representação?

Antonio Negri: Conforme disse antes a propósito do poder constituinte, as lutas, esse tipo de luta, sempre se ligam a conteúdos, e os conteúdos são sempre determinados no interior da historicidade, de uma historicidade específica. Essas lutas nascem através de uma demanda de maior representação – como sempre nascem as revoluções. A revolução francesa nasce demandando a convocação dos Estados Gerais; a revolução russa é, em parte, luta pela paz (pão e paz), e em parte demanda uma constituinte; a revolução inglesa nasce da recusa do poder absoluto, mas também por uma nova legislação sobre a propriedade da terra e uma nova representação; também a revolução americana etc etc. Toda revolta nasce no interior de um quadro historicamente fixado e de uma demanda determinada de representação.

Todavia, nas revoluções, na luta e, portanto, na elaboração das demandas, das reivindicações, o quadro político se especifica. Michael Hardt e eu estamos convencidos que o quadro específico da representação democrática, da maneira como está configurado nas constituições representativas liberal-democráticas, esteja profundamente esgotado, exausto. Por quê? Porque, poderia dizer teoricamente, as constituições burguesas liberal-democráticas não compreendem o comum. Em nenhuma constituição do pós-guerra, há o reconhecimento do direito de acesso ao comum. Existe o direito da propriedade privada, existe o direito da propriedade pública, com funções mais ou menos amplas, mas não existe o direito de acesso ao comum. Não existe. Em segundo lugar, a liberdade de expressão está determinada em termos puramente formais. Dessa maneira, pode-se chegar ao paradoxo de eleições, de processos democráticos de escolha de representantes, completamente sobrepujadas pelo poder do dinheiro. A última decisão da Corte Suprema dos Estados Unidos é de não por limites ao financiamento dos candidatos.

Giuseppe Cocco: O caso do mensalão…

Antonio Negri: Estamos, portanto, numa situação anormal e paradoxalmente contraditória no que diz respeito a uma leitura elementar dos direitos do homem. Em terceiro lugar, ainda, a máquina democrático-representativa é uma máquina incapaz de conter e desenvolver um mecanismo democrático de decisão. As próprias estruturas parlamentares são fundamentalmente corruptas – não corruptas moralmente, não corruptas simplesmente nos indivíduos que as compõem: corruptas como sistema, mesmo quando compostas por pessoas excelentes – porque a corrupção é uma corrupção do poder do dinheiro que sobrecarrega tudo.

Daí segue uma capacidade de intervenção representativa parlamentar completamente bloqueada; já não há governo algum que decide através do parlamento: decide-se por decretos, através da governance. A própria complexidade das sociedades democráticas, das sociedades capitalistas avançadas, exige uma governance que age para além dos critérios do Estado de direito, da aplicação de uma lei geral e abstrata. A governance se rege mediante decisões concretas e individuais.

Estamos diante de uma crise do sistema democrático verdadeiramente radical. Um sistema político completamente absorvido pelo poder do dinheiro: isso era o neoliberalismo – mas ele também está em crise, e aqui retornamos ao princípio do ordenamento global e, assim, a uma crise da soberania, lá onde, através dos mecanismos de endividamento, a soberania foi patrimonializada pelas finanças e, assim, à coisa pública pelos sistemas privados de gestão.

Ora, para voltar ao tema dos movimentos, é claro que se eles querem ser eficazes e construir o comum, ou seja, tornar-se ontologicamente positivos, devem submeter à crítica a série de temáticas que começamos a sugerir. Trata-se de ajudar, melhor, de inventar novas formas de instituições, que nós chamamos de instituições do comum e, assim, conseguir fazer valer a horizontalidade do fazer político, do estar junto, do construir multidão. Mas também aqui é preciso estar muito atento, porque são coisas que se constroem, que não se pode antecipar com o cérebro. A relação entre sujeitos agentes na horizontalidade, por exemplo, da comunicação, da informação, hoje é possível, através de tecnologias específicas – e provavelmente mesmo os processos de decisão: mas é algo extremamente difícil de propor. São temas de dificílima solução que se apresentam, mas que, no entanto, representam problemas reais.

Thiago Fonseca: O senhor adiantou uma pergunta que eu ia fazer, sobre a crítica à representação, se significaria uma crítica às instituições. O senhor está falando que não, que as instituições do comum precisam ser construídas pela multidão, correto? Com relação ao tema das instituições e ao trabalho, do qual o senhor já falou. O senhor escreve com Hardt, em Commonwealth, um argumento que acho interessante, que é como se fosse o de advogado do diabo: “vamos dizer ao capitalismo o que ele precisa fazer para aumentar a sua produtividade”. Precisa dar acesso ao comum para as pessoas, dar direitos de cidadania e de movimentação, e daí em diante. Nisso, parece que a educação tem um papel fundamental. Quanto mais as pessoas tiverem acesso ao conhecimento e à educação, mais elas têm acesso ao comum. Aqui em São Paulo, quando os estudantes querem democratizar a universidade, eles são reprimidos, pela polícia, por exemplo. Essa repressão do interesse de democratizar o acesso ao conhecimento não é de certa forma contraditória aos interesses do capital, nesse sentido de fazer o papel do advogado do diabo, dando acesso ao comum?

Antonio Negri: Trata-se de compreender que o capital é sempre exploração da força-trabalho. O que significa exploração da força-trabalho? Significa que sem a força de trabalho, não há capital. Quer dizer: sem o trabalhador, não há valorização. O valor vem do trabalhador, é extraído do trabalhador, é trabalho excedente transformado em valor excedente (mais-valor).

Em segundo lugar, o capital não pode aceitar a transformação da multidão em classe, ou em poder político. No entanto, a divisão do trabalho é um elemento absolutamente sincrônico com o desenvolvimento capitalista, com a construção da cooperação. Isso tudo, porém, vale apenas na arqueologia capitalista. Na arqueologia capitalista, o capital organizava o trabalho. Um patrão tomava um camponês, o punha na fábrica, simplificava as operações produtivas que ele deveria cumprir, dizia-lhe, por exemplo, “você deve baixar essa alavanca a cada 30 segundos” ou então “quando ouvir um apito”. O trabalho estava todo ali, mas era a partir da cooperação de muitas pessoas executando essa operação que nascia, no prolongamento máximo da jornada de trabalho, o mais-valor e sobre ele se construía a exploração.

Hoje, na pós-modernidade capitalista, o problema nasce daquilo de que falávamos há pouco, ou seja, o fato que quando as lutas precedem o desenvolvimento do capital, isso significa também que, agora, ocorre uma espécie de apropriação do capital fixo por parte do trabalhador. Um exemplo evidente dessa apropriação se dá no terreno da informática; é uma apropriação que se apresenta no trabalho afetivo dos serviços em hospitais, na cura em geral; é uma reapropriação que fundamentalmente se desenvolve no trabalho científico. Há, portanto, um aumento de autonomia da força-trabalho complexa. Ela constitui uma potência real. Assistimos ao paradoxo de um capitalista que não vai mais ao campo para recrutar novos trabalhadores, a fim de fazê-los cooperar na produção de mais-valor, mas que o conjunto de trabalhadores do General Intellect [NR.: “intelecto geral social”, conceito central dos Grundrisse de Marx, traduzidos e publicados no Brasil pela ed. Boitempo, em 2011] constitui redes sociais autônomas que o capital busca explorar.

É claro que, na universidade, não se quer que essa inversão da autonomia do saber seja reconhecida. Reconhecer o General Intellect seria reconhecer um poder subversivo. As universidades poderiam se tornar o ponto de referência e de organização que hoje nos falta. Os elementos cognitivos, hoje, tornam-se cada vez mais fundamentais para definir a transformação do trabalho. Quem poderia ter imaginado que os professores em greve no Rio constituiriam uma aliança com os jovens que foram chamados de “black blocs” (mas que não têm nada a ver com a ideologia dos black blocs mundiais), reconhecendo na pobreza destes um saber sobre a cooperação social que os professores vinham descobrindo? Ora, esse tipo de aliança provavelmente constrói um primeiro elemento daquilo que nós chamamos de “institucionalidade do comum”.

Giuseppe Cocco: Eu queria aproveitar uma pergunta para ele. Uma pergunta que há algum tempo queria fazer, ou talvez uma crítica. Na transformação do trabalho, do trabalho material que se torna imaterial…

Antonio Negri: Sim, sim, dizemos sempre que “imaterial” é uma palavra horrível…

Giuseppe Cocco: Quero perguntar outra coisa. De fato essa transformação do trabalho que se torna subjetividade, que se torna principalmente autônoma…

Antonio Negri: Que assume características autônomas…

Giuseppe Cocco: Exatamente. Não é mais organizado pelo capital e de fato é aquele trabalho que se explora na subjetividade e em todo tempo de vida, quer dizer, biopoder e biopolítica. Você continua a usar o termo “força-trabalho”. Para mim, o termo “força-trabalho”, que talvez ajude a manter a ligação com a tradição marxista, a força-trabalho é organizada fundamentalmente ao redor da divisão da liberdade em dois momentos: tempo de trabalho e tempo de não trabalho. Nas características do trabalho hoje, está a de não ser mais uma força-trabalho, mas de ser diretamente a vida. Portanto a pergunta é: não seria necessário usar menos o termo “força-trabalho” quando se fala de trabalho hoje?

Antonio Negri: Mas o que seria melhor?

Giuseppe Cocco: Subjetividade, trabalho, vida…

Antonio Negri: Em vez de dizer “força-trabalho” dizer “trabalho-força”, “trabalho-potência”?

Giuseppe Cocco: Porque falar de “força-trabalho” significa que há um tempo de trabalho e um tempo de não trabalho.

Antonio Negri: Não, mas veja, a solução é aquela arendtiana: falarmos em vez disso de trabalho e atividade.

Giuseppe Cocco: Exatamente.

Antonio Negri: Mas também essa distinção é facilmente criticável, sobretudo nos termos nos quais foi definida por Hannah Arendt quando falava de atividade. Paolo Virno, por exemplo, foi muito ambíguo sobre essa passagem: quando falava de atividade, falava na verdade de uma atividade livre, de uma atividade de não-trabalho. Mas falar de atividade como se esta fosse desligada do trabalho é um equívoco. Trata-se aqui de falar de atividade como atividade cooperativa, arrancando o conceito de trabalho do individualismo. O individualismo era muito forte na acepção de “atividade” dada por Arendt. Paolo, quando começou com a história da “obra-prima”, da virtuosidade no trabalho, que ainda por cima é um conceito fundamental para a descrição da nova figura do trabalho, também havia, no entanto, de alguma maneira, isolado o conceito de trabalho de sua dimensão cooperativa, porque religava ao tema da classe, coletiva. Dizer “força-trabalho” é provavelmente equivocado, porque o faz relacionar à classe, a trabalho coletivo, antes de esclarecer-se o que é isso. Mas, por sua vez, falar somente de “atividade” mantém uma ambiguidade que liga o trabalho à alienação, à degradação ontológica. Talvez eu seja irremediavelmente marxista.

Thiago Fonseca: Eu vou aproveitar isso que o Giuseppe disse a respeito de o trabalho ter se expandido para todo o tempo da vida. Às vezes, eu fico com essa questão: o senhor não fala, por exemplo, de ideologia, não é um conceito que o senhor usa. Mas essa dispersão do trabalho na vida, e às vezes a não-percepção de que se esteja trabalhando, não dá espaço para algum tipo de conformismo ou de não-resistência, para as pessoas?

Antonio Negri: Pode ocorrer, é possível. Por exemplo, isso se verificou nos primeiros anos de experiência daquilo que Sergio Bologna chamou de “autônomos de segunda geração”. Autônomos de segunda geração eram aqueles que começavam a ter uma atividade de trabalho separada da fábrica (sem que fossem profissionais liberais, como os autônomos da primeira geração). Eles punham no mercado sua atividade – um desenhista, um tradutor, um montador mecânico muito qualificado, um carpinteiro etc.

Tratava-se de trabalho autônomo de segunda geração porque não estava separado da cooperação global e, sim, principalmente, no interior da subsunção real do trabalho, de uma direção social direta sobre o trabalho. Nisso, havia sem dúvida a ilusão de ser livre. A ilusão que Marx tratava com tanta violência, a ilusão do “trabalho livre” proudhoniano.

Mas eu tenho muitas reservas em usar o termo “ideologia”, porque creio que hoje o problema de uma definição do real se resolva de forma direta, imediata, em termos de verdade/não-verdade, de verdade/falsidade. Não creio que a ideologia tenha hoje mais a capacidade de construir horizontes fetichistas globais. Lembro-me, por exemplo, da discussão tida com Derrida a propósito dos “Espectros de Marx”. Eu lhe dizia francamente: o problema hoje é de verdade/não-verdade. A falsidade é algo imediatamente culpável, deplorável, não detém a ilusão da verdade. Há maldade na falsidade. Naquela polêmica, havia algo que me agrada recordar, um episódio que eu tinha lido nos dias em que discutia com Derrida, a história nos diários de Tocqueville de um dia de junho em 1848.

Giuseppe Cocco: Da empregada? O sorriso da jovem empregada?

Antonio Negri: À mesa de Tocqueville, de uma família burguesa, da grande burguesia no sexto, sétimo arrondissement de Paris, na margem esquerda do rio Sena, ouviam-se os disparos de canhão contra os operários em junho de 1848. Todos estavam muito preocupados com isso à mesa, salvo a criada, que quando entra no salão e ouve os disparos e vê o mal-estar de seus patrões, sorri. E é imediatamente demitida. Aqui é a verdade que salta imediatamente aos olhos. Eu punha esse episódio como uma crítica da ideologia, porque a ideologia é um fantasma que recobre cada verdade, e era forte nos períodos em que a luta operária era fraca. Mas hoje mais e mais pessoas trabalham, sofrem por trabalhar, resistem ao trabalho e o contestam, dizem ao patrão: “quero que meus transportes sejam pagos, porque também o transporte é trabalho”.

Thiago Fonseca: Vou voltar à questão da Declaration. Vocês afirmam que “a democracia se realiza quando um sujeito capaz de apreendê-la tiver emergido”. Nesse sentido, existe algo em que a gente pode pensar sobre como esses sujeitos emergem? Em que momento se sente a necessidade de resistir? É um tipo de tomada de consciência, um despertar, uma passagem da passividade à atividade? Aqui se falou muito que “o gigante acordou”, “o povo acordou”. Esse acordar, esse despertar, ele pode ser acelerado? Há mecanismos para acelerar esse “despertar”?

Antonio Negri: Aqui no Brasil houve efetivamente uma aceleração da produção de subjetividade resistente. Por quê? Como? Não sei dar uma resposta. Posso dizer genericamente: há um ciclo de lutas global que se desenrola, mas seria uma resposta genérica. Aqui voltamos às razões do político, quer dizer, à experiência política, ao testemunho ético, à atividade militante, ao reconhecimento que se vive entre outros, que somente com outros se pode construir algo de justo, de correto. É, em suma, um retorno a Spinoza a resposta a essa pergunta. Retornar a Spinoza quer dizer que somente o comum constrói o comum.

Thiago Fonseca: O senhor tem essa experiência de escrever a quatro mãos: escreveu com o Giuseppe, escreveu com o Michael, escreveu com Felix… Eu lembro de ter lido em Mil platôs que a experiência que Deleuze e Guattari tiveram era de, apesar de serem duas pessoas, já eram muitas pessoas, pois cada um deles já era muitos. Eu gostaria de ouvir do senhor qual é a sua experiência de escrita colaborativa. Escrever com outra pessoa já é constituir uma pluralidade?

Antonio Negri: Creio que essa seja a resposta. Cada um de nós é de fato uma multidão, e é multidão porque não é uma identidade, mas porque é uma singularidade em uma mar de relações. Uma singularidade é um conjunto, uma multidão, um conjunto de relações. Assim, cada afirmação de multidão (e de singularidade) é imediatamente uma crítica da identidade, da autorreflexividade, e com isso de cada instância transcendental.

Giuseppe Cocco: De olhar para o próprio umbigo.

Antonio Negri: Não quero ser sarcástico e chamar a reflexão identitária de “umbiguismo”: certamente deve haver sarcasmo neste caso, mas não se pode esquecer que essa atitude tem uma origem filosófica profunda. Para nós, trata-se da recusa radical do “penso, logo existo”. Com essa atitude, pensamos que o homem não tem uma alma, mas que sua singularidade é construída na relação com os outros. E já que essas afirmações parecem quase metafísicas, melhor é reencontrar no concreto sua vivacidade: e essa de fato consiste no trabalhar junto, no construir junto. Portanto, implicitamente, há uma ética que não se pode separar da física dos corpos e do pensamento, que não se pode separar da ontologia do estar junto e da interdependência. É uma ética profunda.

Quero dar apenas um exemplo. Tim Murphy publicou seis ou sete artigos em comemoração aos meus 80 anos. Entre eles, há um de Michael Hardt que achei muito bonito, no qual ele explica como trabalhamos juntos, como fazemos para trabalhar em dupla. Diz ele: “Na verdade, jamais pensei nisso, mas acho que em Negri já havia essa disponibilidade antes de eu conhecê-lo, pois ele já tinha tido essa experiência com outros. É alguém que cresceu, tornou-se grande fazendo política, e fazer política, principalmente fazer política com os trabalhadores, é um estar junto, um construir junto, um percorrer dos caminhos que te fazem tornar-se singular”. Um pensamento é sempre algo que se pensa ao menos em dois, não?

Vamos tomar um bom copo de vinho?

Antonio Negri, 80, é filósofo e militante, escreveu vários livros sobre as lutas, Spinoza, Marx, Descartes, Lênin, Leopardi, tendo sido publicado, em português, com Poder constituinte, Alma Vênus Kairós, O trabalho de Dioniso, O trabalho de Jó, Exílio, Cinco lições sobre o Império e, com Michael Hardt, os clássicos Império Multidão.

Giuseppe Cocco é professor da UFRJ, escreveu MundoBraz e, com Negri, Glob(AL), e participa da rede Universidade Nômade.

Thiago Fonseca é mestrando em filosofia pela USP e organizou o dossiê Negri para a a revista Cult.

Revisores: Vladimir Santafé e Bruno Cava.

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