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Hip Hop, singularidades e máquinas de guerra

por Roger Aníbal Lambert da Silva[1]

 

Introdução

 

Gilles Deleuze e Félix Guattari afirmam, em Mil Platôs, que “as fugas e os movimentos moleculares não seriam nada se não repassassem pelas organizações molares e não remanejassem seus segmentos”.[2] Percebe-se, portanto, que não basta dizer Viva as fugas!, pois seria muito simples acreditar que a linha de fuga não está diante do risco de que “se transforme em destruição, abolição pura e simples, paixão de abolição”,[3] ao invés de se conectar com outras linhas de fuga. Ora, a questão que se coloca é como fazer para que as linhas de fugas suscitem forças revolucionárias, verdadeiras  máquinas de guerra.

Tendo em vista esta questão, nosso objetivo é estabelecer uma conversação acerca do movimento hip hop enquanto uma máquina de guerra potencial, na medida em que constitui uma linha de fuga criadora para jovens que, através da arte, recriam seus modos de existência não obstante as ambigüidades que coexistem e os riscos de apropriações pelos aparelhos de captura e de bloqueio do movimento, formando fenômenos de massificação, de reprodução de segregações pelos ativistas.

 

O hip hop salva: processos de singularização

 

Já de início é importante frisarmos que hip hop e rap não são sinônimos, como muitas vezes se supõe, isto é, o hip hop não se restringe a linguagem verbal. O hip hop é um movimento cultural iniciado no final da década de 1960, nos EUA, e é composto por um conjunto de manifestações: o rap, o break e o grafite.[4] O rap é uma forma de expressão musical, composta por um MC e um DJ, é a arte do canto falado e ritmado. O break é uma forma de expressão corporal inventada por portoriquenhos contrários à guerra do Vietnã. Através de suas performances, os breakers simulavam os helicópteros da guerra, os soldados mutilados e também robôs que passaram a substituir a mão de obra negra na indústria. O grafite é uma forma de expressão plástica, uma forma de contestação pela qual os grafiteiros modificam a estética urbana.

Esta conexão de diferentes formas de expressão, o rap, o break e o grafite, compondo o movimento hip hop, foi realizada pelo DJ Afrika Bambaataa, em 1968, que após cinco anos fundaria a organização Zulu Nation, maior posse de hip hop do mundo, que hoje conta com integrantes espalhados por mais de 58 países, promovendo diversas atividades culturais. O hip hop emergiu nos subúrbios negros de Nova Iorque, em um contexto marcado por  diversos problemas de ordem social, bem como de radicalização das lutas pelos Direitos Civis. Assim, já em seu surgimento, o hip hop estabeleceu um intenso diálogo com outros movimentos já existentes, tais como o Black Power, o Panteras Negras etc.

No início da década de 1980, o movimento hip hop surgiria no Brasil.  Ao contrário do que pessoas que associam o hip hop somente ao rap poderiam imaginar, o hip hop não chegou ao Brasil por meio da música, mas através da dança. O b.boy Nelson Triunfo, com seu cabelo estilo black power e andar robótico, que causava grande estranhamento, foi um dos responsáveis por difundir o break no país, dançando ao som improvisado que emergia de diversas latas. No período de organização das equipes de break e do surgimento do grafite, entre 1983 e 1988, o rap conquistava sutilmente a juventude negra nos bailes blacks.

Uma crítica comumente direcionada ao hip hop brasileiro é a de que o mesmo seria uma simples importação de uma manifestação cultural norte-americana. Entretanto, cabe lembrar que, embora se alimente de sua genealogia estadunidense, o movimento hip hop passou por uma apropriação e uma ampla reconstrução ao se abrir e misturar com outras múltiplas e heterogêneas formas de expressão.

Sendo assim, o hip hop no Brasil é híbrido, fruto não de uma importação passiva, mas de uma espécie de apropriação antropofágica: o rap se mistura com o samba, o repente, o carimbó e outros gêneros musicais; o break se mistura com a ginga da capoeira, o siriá; o grafite é influenciado por desenhos regionais retratando a caatinga,  o sertão do nordeste e os orixás da Bahia.

Se o hip hop não se limita à linguagem verbal, como dito no início, ele também não se resume aos elementos que o constituem. Suas formas de expressão se associam constantemente a outras linguagens – como o cinema, a literatura, o teatro -, gerando novas formas de expressão, o que contribui para um processo contínuo de recriação dos seus elementos.

Dentre estas linguagens, a literatura tem se destacado nos últimos anos,  surgindo como fortalecedor daquele que já há algum tempo é considerado o quinto elemento do hip hop: o conhecimento. Há todo um movimento literário agitando a periferia, é a chamada Literatura Marginal e Periférica,[5] trazendo a tona novos escritores, que apresentam suas produções em saraus, promovem debates, oficinas de leitura etc. Como se pode observar, o hip hop pode ser considerado precursor na criação de verdadeiros Pontos de Cultura na periferia, através da criação de condições para que os sujeitos possam exprimir-se pela pintura, dança, canto, organização de projetos comuns etc.

Os saraus, iniciativa de Sérgio Vaz, criador da Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), vem cada dia mais sendo incorporados ao movimento, incentivando a leitura e a criação na periferia. A Cooperifa foi fundada no ano 2000, com o objetivo de envolver artistas da periferia em atividades como exposições de fotografia, de poesia e performances teatrais em lugares que são os verdadeiros centros culturais da periferia, tais como praças, bares e galpões. Ao longo destes anos, já foram lançados mais de 40 livros de poetas e escritores da periferia, além de dezenas de discos. A Cooperifa é um exemplo, como disse o escritor Marcelino Freire, de toda esta movimentação que está acontecendo na periferia, com o advento da literatura periférica: “Quem pode dizer para as pessoas da periferia o que eles têm que escrever? O que eles não podem escrever? Eles podem escrever e já estão escrevendo sim. Isso faz muita diferença, modifica a geografia das coisas. Essa vontade, esse querer se expressar e eles já estão se expressando. Puta merda! É lição que eu recebo o tempo inteiro”.[6]

O movimento cultural da Cooperifa chega a reunir até 500 pessoas a cada edição de seu sarau. O próprio Sérgio Vaz dá seu depoimento acerca dessa verdadeira “literatura da ruas”: “todas as quartas-feiras, guerreiros e guerreiras de todos os lados e de todas as quebradas vêm comungar o pão da sabedoria que é repartido em partes iguais, entre velhos e novos poetas, sob a bênção da comunidade. Professores, metalúrgicos, donas de casa, taxistas, vigilantes, bancários, desempregados, aposentados, mecânicos, estudantes, jornalistas e advogados, entre outros, exercem a sua cidadania através da poesia”.[7] Em seu Manifesto da Antropofagia Periférica, Sérgio Vaz diz: “Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros. A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade […]. A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar […]. Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte vigente não fala […]. É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão […] Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona. Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à produção cultural […]. Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada. A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor. É tudo nosso!”.[8]

Desse modo, a nosso ver os saraus da Cooperifa promovem um verdadeiro hibridismo, um espaço de criação do novo a partir de uma apropriação antropofágica e periférica.

Gostaríamos de compartilhar, nesse momento, o depoimento de Jairo – taxista, arte-educador e integrante do grupo de rap Periafricania – a respeito dos saraus da Cooperifa: “quando eu vim aqui mano: era eu, minha vida e meu taxi. Vai vendo: eu, minha vida e meu taxi […]. Aí eu vim aqui eu descobri uma pá de coisa: vi gente vindo aqui chorar porque não tinha o que comer; hoje tá comendo, tá escrevendo, num chora mais mano, num chora mais mano. Parou de chorar, agora tá feliz mano, quer lutar mano, isso aqui é um quilombo nego, isso aqui é um quilombo!”.[9]

Este depoimento de Jairo ressalta algo que é comum ouvirmos de integrantes do hip hop, a saber, o fato de o movimento ser um marco em suas vidas. Isso porque, a nosso ver, o hip hop potencializa bons encontros, constitui uma linha de fuga, a composição de novos agenciamentos, processos de singularização.

Este depoimento é um exemplo de como “a maneira como somos afetados pode diminuir ou aumentar a nossa vontade de agir”.[10] Através do hip hop a força criativa dos jovens se expande, pois “os afetos de alegria” – como diz Deleuze, na esteira de Espinosa – “são como um trampolim”,[11] aumentam a potência de agir, estimulando a invenção. Ou seja, as oficinas de hip hop são “verdadeiras máquinas geradoras de artistas”.[12]

Nesse sentido, consideramos que o hip hop resgata vidas pelas periferias do Brasil, que o hip hop é a salvação para milhares de jovens, é um movimento que luta para evitar que jovens da periferia tornem-se trapos. Sabemos que estas afirmações – de que o hip hop salva, que impede que jovens tornem-se trapos – pode abrir margem para alguns contra-sensos, como o de conferir ao movimento um caráter moralizante. Sendo assim, faz-se necessário determo-nos um instante nessa questão e deixarmos mais claro nosso argumento.

No Abecedário de Gilles Deleuze, ao ser questionado, por Claire Parnet, a respeito do sentimento de responsabilidade pelas pessoas que se drogaram e fizeram bobagens, ao lerem O anti-Édipo ao pé da letra, Deleuze respondeu: “nunca me fiz de esperto com essas coisas, nunca disse a um estudante: é isso, drogue-se, você tem razão. Sempre fiz o que pude para que ele saísse dessa, porque sou muito sensível à coisa minúscula que de repente faz com que tudo vire trapo […]. Acho que se deve ficar atento para o ponto em que a coisa não funciona mais. Que bebam, se droguem, o que quiserem, não somos policiais, nem pais, não sou eu quem deve impedi-los ou… mas fazer tudo para que não virem trapos. No momento em que há risco, eu não suporto […]. Sobretudo o caso de um jovem, não suporto um jovem que se ferra, não é suportável […]. Sempre fiquei dividido entre a impossibilidade de criticar alguém e o desejo absoluto, a recusa absoluta que ele vire trapo […]. É verdade que o papel das pessoas nesse momento, é de tentar salvar os garotos, o quanto se pode. E salvá-los não significa fazer com que sigam o caminho certo, mas impedi-los de virar trapo. É só o que quero”. Por fim, Deleuze disse, em relação ao O anti-édipo, que o livro “sempre teve uma prudência, me parece, extrema. A lição era: não se tornem trapos”.[13]

Pois bem, nossa argumentação teve por base estas considerações de Deleuze, bem como a diferenciação que o mesmo estabelece, no livro Conversações, entre moral e ética. Segundo Deleuze, enquanto “a moral se apresenta como um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que consistem em julgar ações e intenções referindo-as a valores transcendentes (é certo, é errado…); a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função do modo de existência que isso implica”.[14]

Desse modo, quando consideramos que o hip hop salva milhares de jovens e tem um papel fundamental em evitar a produção de trapos, temos em vista, não um julgamento moral, mas uma perspectiva ética e estética, a partir da qual se avalia os diferentes “modos de existência”. Em outras palavras, a questão não é da ordem do bem ou do mal, mas sim do bom e do mau encontro, do aumento ou da diminuição da potência de agir.

É nesse sentido que argumentamos que o hip hop salva e impede que milhares de jovens tornem-se trapos, ao liberar a capacidade de afetar e ser afetado por forças alegres, ao potencializar processos de singularização. Assim, os jovens se descobrem poetas, artistas do spray, dos toca-discos, dançarinos, percebem que a cultura não tem dono, que se produz e se reinventa. Ao invés de investirem na reprodução do estereótipo de criminoso, de figuras cristalizadas, estes jovens produzem, através de sua criatividade e seu talento, sua arte periférica.

O rapper GOG, na música A rima denuncia, observou que “a rima transforma o homem por inteiro; cela fechada, mente aberta descrevendo o cativeiro” e que “a rima recicla da vida a palavra pobreza; agora é espírito de luta, beleza”.[15] De fato,  lançando mão desta expressão musical, favelados, detentos, meninos de rua, negros, mulheres, gays, indígenas, enfim, toda uma legião de marginalizados e de minorias passaram a mostrar que podem ser protagonistas de suas histórias.

Portanto, não é a toa que Guattari já havia chamado atenção, no livro Caosmose. Um novo paradigma estético, para a importância do rap para milhões de jovens, pois, segundo ele, “a oralidade, moralidade, ao se fazer maquínica, máquina estética e máquina molecular de guerra […] pode se tornar uma alavanca essencial da resingularização subjetiva e gerar outros modos de sentir o mundo, uma nova face das coisas, e mesmo um rumo diferente dos acontecimentos”.[16]

 

O hip hop em movimento: uma máquina de guerra

 

Entretanto, não ignoramos, obviamente, que essa potência do movimento hip hop, assim como de outros movimentos, corre sempre o risco de ser capturada, bloqueada em seu processo de singularização. Mas, além desse risco, há um outro não menos perigoso, a paixão de abolição, a linha de fuga como finalidade pura e simples e não como abertura para novas fugas e para a produção de novos agenciamentos sociais.

É justamente esta a principal questão colocada por Deleuze e Guattari, em diferentes ocasiões. Deleuze, em texto publicado no livro A Ilha Deserta, afirmou que a questão que interessava a ele e a Guattari era “as linhas de fuga nos sistemas, as condições nas quais essas linhas formam ou suscitam forças revolucionárias, ou permanecem anedóticas”. Ou seja, a questão que os preocupava é:  “dado um sistema que foge realmente por todos os lados e que, ao mesmo tempo, não pára de impedir, de reprimir ou de colmatar as fugas por todos os meios, como fazer para que essas fugas não sejam simplesmente tentativas individuais ou pequenas comunidades, mas que elas formem verdadeiramente máquinas revolucionárias?”.[17]

Esta questão também é ressaltada por Guattari em seus escritos e entrevistas, enfatizando que não se trata do ideal de “uma coluna vertebral”, de “superinstâncias unificadoras modeladoras”, mas de inventar uma “centralidade organizacional”, uma “convergência das novas formas de luta”, [18] baseada em uma nova sensibilidade às alianças, conjunções imprevisíveis, contra a cristalização das lutas em instâncias fechadas umas em relação às outras. Na falta de uma tal articulação das lutas, todas as revoluções moleculares, todas as lutas pelos espaços de liberdade, segundo Guattari, não conseguirão nunca engatar transformações sociais e econômicas liberadoras em grande escala. Daí a questão que ele colocou:  “Então, afinal, que forma de organização? Alguma coisa vaga, fluida? Um retorno às concepções anarquistas da belle époque? Não necessariamente. E certamente não mesmo […]. As realidades com as quais se defronta a revolução molecular, tanto quanto a revolução social, são pesadas; clamam pela constituição de aparelhos de luta, máquinas de guerra revolucionária eficazes […]. Enquanto continuarmos prisioneiros de uma concepção das relações sociais herdada do século XIX, […] ficaremos fora da realidade, continuaremos a dar voltas em nossos guetos, ficaremos indefinidamente na defensiva, sem conseguir apreciar o alcance de novas formas de resistência que surgem nos mais diversos campos. Trata-se portanto, de primeiramente medir em que grau estamos contaminados pelos artifícios do CMI [Capitalismo Mundial Integrado]. O  primeiro destes artifícios é o sentimento de impotência que conduz a uma espécie de ‘abandonismo’ às suas ‘fatalidades’. […] Cabe a cada um de nós apreciar em que medida – por menor que seja – podemos contribuir para a criação de máquinas revolucionárias capazes de acelerar a cristalização de um modo de organização social menos absurdo que o atual”.[19]

Consideramos que o hip hop – por menor que seja – contribui tanto ao potencializar processos de singularização, que impulsionam o desmanche de figuras cristalizadas e a invenção de novos modos de existência, quanto ao constituir conexões rizomáticas com outros movimentos sociais. As linhas de fugas traçadas pelo movimento hip hop, como bem argumentou Rociclei da Silva, “não significa fugir da periferia, mas sim fazer a periferia fugir, transbordar ir além da medida. E ir além é inovar, criar e produzir”.[20] Desse modo, posses e coletivos de hip hop instituem encontros com outros movimentos sociais para promover troca de experiências e estratégias de luta. Estes encontros, a nosso ver, aumentam a potência de agir dos ativistas, não só do movimento hip hop, mas também dos outros movimentos.

Que se pense na apropriação antropofágica que outros movimentos e minorias fazem do hip hop atualmente, demonstrando a força do movimento. Jovens indígenas da Reserva Indígena Jaguapiru, no Mato Grosso do Sul, por exemplo, vêm se utilizando do rap como forma de se manifestar acerca de problemas envolvendo a posse e a exploração da terra, a discriminação sofrida etc. O grupo chamado Brô MC’s reinventa esta forma de expressão, cantando suas músicas em português e em guarani, língua materna do povo indígena Guarani/Kaiowá.

De acordo com Rociclei da Silva, o que levou o movimento a resistir ao longo destas décadas foi exatamente “seu poder de transformação, articulação e produção. A toda investida de captura do poder o movimento responde com uma criação ou produção e isso se dá porque o movimento agrega outros elementos artísticos e culturais aos seus quatros elementos”.[21] Assim, a nosso ver o hip hop tem se constituído como uma verdadeira máquina de guerra. A sua reinvenção ao longo das décadas já demonstra como o movimento é uma máquina de guerra potencial, pois ao se conectar com outras formas de expressão, o que se está produzindo são linhas de fuga, trançando novos agenciamentos e evitando a paralisação do movimento.

Segundo Guattari, é “nas trincheiras da arte que se encontram os núcleos de resistência dos mais conseqüentes ao rolo compressor da subjetividade capitalística, a da unidimensionalidade, do equivaler generalizado, da segregação, da surdez para a verdadeira alteridade. Não se trata de fazer dos artistas os novos heróis da revolução, as novas alavancas da história! A arte aqui não é somente a existência de artistas patenteados mas também de toda uma criatividade subjetiva que atravessa os povos e as gerações oprimidas, os guetos, as minorias…”.[22]

O rapper Renan do grupo paulista Inquérito, demonstra a importância do hip hop nesse sentido: “o Hip Hop hoje extrapola o cultural e o social, é mais que isso, é viral, um vírus do bem que se espalha pelas quebradas desse imenso Brasil periferia, dando voz a favelados, ribeirinhos e mocambos, sejam eles indígenas, brancos ou negros. É a arte que resiste, que resgata, reconstrói. Formou-me mais que a faculdade, me criou como uma família, e fez de mim o que eu sou hoje”. [23]

Entendemos, nesse sentido, que o hip hop constitui um importante movimento de transformação social, visto que – ao invés de se fechar numa espécie de gueto – se ramifica e colabora para a criação de novas máquinas de guerra, de novos agenciamentos sociais, de modo a impedir a neutralização dos processos de singularização, ou seja, evitar a produção de trapos.

Portanto, gostaríamos de fazer nossas as palavras do rapper GOG e afirmar que o hip hop é muito mais que quatro elementos, que o movimento “é a revanche do gueto, dos pretos, dos índios, dos pobres […]”.[24] Acreditamos que assim como o hip hop tornou possível que Mv Bill se constituísse como um “preto em movimento”,[25] poderíamos acrescentar que o hip hop contribui também para a constituição da mulher em movimento, do indígena em movimento etc. Em suma, o hip hop se constitui como uma das trincheiras para a invenção de um povo.



[1] Professor de História e mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desenvolve pesquisa sobre a atuação de jornais do Rio de Janeiro no processo político da abolição da escravidão no Brasil. Sua relação com o movimento hip hop teve início há cerca de 10 anos, tendo sido integrante da posse de hip hop chamada Posse Inteligência Verbo Ativa (PIVA), em Cambuí-MG.

[2] DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Trad. de Aurélio Guerra Neto et. al. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.p.95.

[3] Ibidem. p.112.

[4] As informações que apresentamos sobre o hip hop baseia-se tanto no conhecimento adquirido ao longo dos anos, como integrante do movimento,  quanto em diversos estudos, revistas, documentários e outros materiais que tratam do mesmo. Ver, dentre outros: ANDRADE, Elaine Nunes de. “Hip Hop: movimento negro juvenil”. In: ANDRADE, Elaine Nunes de (org.). Rap e educação, rap é educação. São Paulo: Summus, 1999; MOVIMENTO Hip Hop: a periferia mostra seu magnífico rosto novo.  Caros Amigos Especial, São Paulo, Casa Amarela, set. 1998; PIMENTEL, Spensy Kmitta. O livro vermelho do hip hop. São Paulo, USP, 1997. Trabalho de conclusão de curso apresentado à Escola de Comunicação e Artes; ROCHA, Janaína; DOMENICH, Mirella; CASSEANO, Patrícia. Hip Hop, a Periferia Grita. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001; SILVA, Rociclei da. “Informação, cultura e cidadania no coração da periferia pelas batidas do hip hop”. Rio de Janeiro, UFRJ, 2011.  Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação.

[5] Dentre inúmeros trabalhos, podem ser citados os seguintes: FERREZ (Org.). Literatura marginal: talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005; SACOLINHA. Graduado em marginalidade. São Paulo: Scortecci, 2005; VAZ, Sérgio. Colecionador de pedras: antologia poética. São Paulo: Global, 2007;  BUZO, Alessandro (Org.). Poetas do sarau suburbano: ritmo e poesia. Rio de Janeiro: Ponteio, 2011.

[7] VAZ, Sérgio. Literatura da ruas. In: VAZ, Sérgio. Literatura, pão e poesia. Histórias de um povo lindo e inteligente. São Paulo: Global, 2011. p.35-36.

[8] VAZ, Sérgio.  Manifesto da antropofagia periférica. In: VAZ, Sérgio. Literatura, pão e poesia. Op. Cit.. p.50-52.

[9]  Esta sua fala foi reproduzida do documentário É Tudo nosso! O Hip-Hop Fazendo História; produzido por Toni C, e encontra-se disponível em http://www.youtube.com/watch?v=CivPBCG_b3I

[10] SILVA, Rociclei da. Op. Cit. p.79

[11] DELEUZE apud SILVA, Rociclei da. Op. Cit. p. 20.

[12] SILVA, Rociclei da. Op. Cit. p. 97

[13]  O vídeo encontra-se disponível em http://www.youtube.com/watch?v=Bkvqrta5mnw

[14] DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. De Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.p.125-126.

[15] Um vídeo com a música encontra-se disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=uaacn9LBDls

[16] GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992. p.122.

[17] DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Editora Iluminuras, 2005. p.388-389.

[18] GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Org. e trad. de Suely Rolnik. 2ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.p71-73.

[19] Ibidem. p.222-225.

[20] SILVA, Rociclei da. Op. Cit. p. 101.

[21] SILVA, Rociclei da. Op. Cit. p.97

[22] GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Op. Cit.. p.115.

[23] A citação foi reproduzida de SILVA, Rociclei da. Op. Cit. p. 106.

[24] Trecho de sua música chamada Guerrilha G.O.G, disponível em: http://www.4shared.com/mp3/-RDLM-vP/GOG_Guerrilha_GOG.html

[25] Fazemos referência a sua música intitulada Preto em movimento. Clipe disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=aZ7QE6aB628

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