Entrevista de Bruno Cava por Gigi Roggero (presencial), 14/7/2013, para Commonware (em italiano) | Trad. UniNômade Brasil
Qual é a genealogia e as formas de desenvolvimento do movimento no Brasil?
Devemos começar por dois pontos importantes. O primeiro diz respeito ao fator global: perderemos qualquer coisa de decisivo se não olharmos ao contexto. Tiveram lutas na Turquia e no Egito, teve um inteiro ciclo de lutas começado em 2011: é impossível não ver algumas características em comum. Por exemplo, antes da revolução árabe, existiam ditaduras, um consenso sólido como rocha por uma governança muito verticalizada, e coisa de duas ou três semanas a rocha ruiu. Os movimentos romperam o consenso e a percepção política mudou. No Egito, as redes sociais trabalharam com os movimentos de rua, os sindicatos, as bases. No Brasil, se pode ver algo parecido: não se tem uma ditadura, obviamente, mas também um forte consenso ao redor de um tipo de governança. Este consenso era tão sólido que se colocava como indiscutível, seria fantasia qualquer alternativa. De repente, foi colocado no centro da discussão, e por fora dos canais institucionais da representação. Se pensarmos também no 15-M europeu, havia um consenso consolidado ao redor de um governo financeiro da Europa, com o poder concentrado em grandes bancos, grupos de investimento, onde os próprios estados-nações e a União Europeia não passam de filiais do sistema financeiro. De repente, imprevisivelmente, e de maneira bem material, rasgou um dissenso na inteira lógica de funcionamento da política nesses países. Também nos Estados Unidos. Se olharmos pro movimento Occupy, ele abriu uma alternativa real a um debate bipartidário completamente pacificado sobre o capitalismo, um tipo de pressuposto invisível, mas que voltou à cena pública desde sabe-se lá quando.
Nas revoluções árabes, no 15-M e no Occupy, as pessoas saíram às ruas, ocuparam praças, multiplicaram encontros, criaram novas formas de organização e novos discursos, e colocaram radicalmente em discussão o fundamento de uma governança que, até pouco tempo, era invisível e mesmo intocável. A produção de subjetividade chacoalhou as coordenadas da política. Penso que no Brasil, vimos alguma coisa de semelhante. As pessoas não apenas foram às ruas e praças para se manifestar contra os governos, mas também deixando claro que estavam em êxodo em relação às bandeiras dos partidos, sindicatos e todas as instituições da representação, inclusive os grandes veículos de imprensa, que se colocam como representantes da opinião e moralidade públicas. Acredito que a conexão global é verdadeiramente importante e que o movimento brasileiro esteja inscrito no mesmo ciclo de lutas.
Obviamente, e aqui entramos no segundo ponto, no Brasil existem muitas especificidades que não podem ser esquecidas. Não estamos vivendo um momento de crise ou recessão e, além disso, não se dá uma fase de rebaixamento social da classe média, nem um governo que esteja aplicando medidas de austeridade. É mais ou menos o oposto: vivemos num tempo de crescimento econômico estável, do início até o fim do governo Lula, de 2002 a 2010, continuando num ritmo constante no governo Dilma. Lembremos que Lula e Dilma são do mesmo partido, ela era o principal ministro de Lula, e é a sucessora por ele indicada. Nesse período Lula/Dilma, vivemos uma fase de inclusão social: em uma década vimos milhões de brasileiros atingirem um nível inédito de renda e acesso ao consumo, um nível relativamente digno. No país sempre houve uma elite branca muito rica, uma delgada camada média e uma ampla base de pobres sem a possibilidade sequer de construir um futuro, sem a possibilidade de estudar ou trabalhar senão em condições extremamente precárias, sem renda garantida e com reduzido acesso ao mercado de consumo. Na última década, teve uma forte distribuição da riqueza social e um número verdadeiramente impressionante de pessoas tem, hoje, condições de pensar prospectivamente e organizar um futuro. Em termos de subjetividade, vimos uma transformação social drástica e profunda, que mudou a sociedade brasileira. Os pobres agora podem entrar em lugares que sequer sonhavam atravessar a porta. Por exemplo, a universidade: em 2003, menos de 10% da população completava uma graduação e, atualmente, o número aproximadamente é o dobro. Mas isso se vê também no cotidiano por toda a cidade. Os pobres agora compram produtos no supermercado, fazem turismo, vão a pet shops ou salões de beleza, chegando a mercadorias e serviços antes impensáveis.
Portanto, não tivemos rebaixamento, mas o oposto. Tivemos uma nova composição social nascida do crescimento econômico. Não tem como dizer, agora, que as revoltas no Brasil sejam contra a exclusão, porque o que vimos foi a inclusão na sociedade. A insatisfação, assim, vivida na pele e gritada na rua, é contra um projeto de inclusão.
Podemos e devemos entrar no campo das hipóteses, e muitos estão já refletindo sobre as revoltas de grande escala no Brasil. Eu penso que um bom ponto de apoio para essa reflexão, pensando do ponto de vista da composição social e de classe, que é o ponto de vista de um materialismo consequente, é o livro do sociólogo Jessé Souza: Os batalhadores do Brasil. É uma pesquisa empírica em que o autor se propõe a descrever os dramas, as angústias e o sofrimento dessa nova composição social, aparecida na última década, e que tenta de todas as formas vencer no novo Brasil. As histórias de vida mostram como é difícil conseguir o sucesso, o tamanho da montanha de exigências, cobranças e expectativas carregadas sobre cada um. Porque na medida em que as pessoas agora têm o acesso ao sucesso, também podem fracassar. O fracasso vem a reboque como contrapartida ao futuro. A sociedade brasileira, afinal, não é uma sociedade clássica de bem estar social. Longe disso, do paradigma que encontramos nos livros e que sempre se refere à Europa do pós-guerra, os Trinta Gloriosos etc. Aqui, temos uma sociedade ultracompetitiva, submersa na precariedade, flexível, um mundo do trabalho marcado por uma cobrança intensiva e individualizada. Para vencer, não é preciso apenas estar qualificado para trabalhar, mas estar preparado emocionalmente, ter um perfil empreendedor, ser polivalente em qualidades e virtudes, ser bonito, arrojado, simpático, estar bem dotado de capital cultural e intelectual. Isso tudo carrega a subjetividade de uma enorme pressão.
Antes, a maioria dos pobres vivia na lei da sobrevivência, na labuta diária pelas necessidades básicas, sozinho num mundo inacessível, fechado, áspero, essencialmente injusto, onde a telenovela parece outro planeta. Só que, agora, com a abertura do mercado de trabalho e consumo, com a inclusão de milhões, a sobrevivência está projetada para o futuro como um item que você pode conquistar ou não, e que depende de você. O controle da subjetividade é diferente, mas nem por isso menos tenso. Você passa a ser responsável individualmente pelo seu sucesso, e tem de fazer mil coisas difíceis e diversas, para chegar lá.
Nesta perspectiva, outra linha de pesquisa que me parece útil para compreender as manifestações brasileiras está, por exemplo, no importante livro de Maurizio Lazzarato, A fábrica do homem endividado [sem tradução ao português]. É um livro que se aplica também ao Sul, mesmo fora das condições da crise do Norte. Aqui se vive outro tipo de crise, do ponto de vista da subjetividade. A dívida, aqui, não é financeira. É uma dívida subjetiva que empurra você a vencer, para ser uma pessoa bem sucedida, para avançar, superar os obstáculos, adaptar-se. Em suma, a “nova classe média” é mais um contradispositivo da subjetividade, uma espécie de fardo, que mobiliza os “emergentes” entre certo sucesso e certo fracasso, quer dizer, um modelo de inclusão que vai muito além do plano econômico ou sociológico. Nesse esforço sempre inglório para vencer no novo “capitalismo brasileiro”, se explicam — pelo menos em parte — vários arranjos “de sucesso”, como a ascensão das igrejas neopentecostais, a retomada de esquemas familiares, autoempreendedorismo.
Portanto, esta é a situação no Brasil: há uma nova composição social, há uma pressão subjetiva cortando-a por dentro, e ao mesmo tempo não existem bons sistemas de transporte, saúde, segurança pública, educação. Os ônibus, trens e metrôs, em especial, são lugares de sofrimento, sufocantes na hora do rush, superlotados e extremamente lentos. Apesar de tudo isso, nesta construção antropológica de subjetividade do novo mundo do trabalho brasileiro, aparentemente não existia uma insatisfação de grande escala, disseminada, além de revoltas, tumultos e pautas mais pontuais e circunscritas a temas específicos. Parcialmente, isto se deve porque o próprio modelo de inclusão mobiliza a culpa individual: são as pessoas que, no final das contas, estão devendo, nasceram devendo, e devem responsabilizar-se por isso.
Pode dar exemplos de como isso ocorre concretamente? Como se vê o novo Brasil e os brasileiros?
Por exemplo. Se estou no ônibus prensado na carne alheia por mais de uma hora para voltar pra casa não culpo a organização do transporte coletivo, mas a mim mesmo, por não ter sido bem sucedido o suficiente para comprar o conforto de um automóvel. Se minha filha está penando na fila de um hospital por atendimento, me culpo por não ter sido capaz de vencer a ponto de pagar um bom plano de saúde. Se tenho de colocá-la na escola pública, igualmente lamento não ter obtido o sucesso necessário para matriculá-la numa escola da classe média. E assim por diante, a culpa é sempre do indivíduo que não conseguiu realizar o que deveria, não se esforçou, não se adaptou o suficiente. Tudo nos leva a crer que só temos deveres e não direitos. Agora, imagine se parte desse gigantesco esforço de adaptação e trabalho, que precisamos investir para obter boa educação, transporte e atendimento de saúde, fosse investido em uma luta política pela reinvenção, reforma e melhoria dos sistemas de educação, transporte e saúde? Quero dizer, em vez de se culpar individualmente por não vencer no sistema, por que não questionar o próprio sistema. Parece abstrato culpar o sistema e é exatamente isso que tenta fazer parecer o grande consenso em vigor. Mas não é. Existem caixas pretas, acordões e conchavos bastante reais, envolvendo muito dinheiro, ao redor da organização urbana do transporte, dos planos de saúde, da lógica de funcionamento da educação.
Tudo isso é, na verdade, um arranjo material de interesses e esquemas: a maioria discutidos em gabinetes e campanhas eleitorais, inacessíveis à população que, no final, é quem paga tudo. Essa situação esdrúxula, onde temos culpa por tudo e estamos endividados por tudo, na minha análise, foi um fator desencadeador da escala massiva dos protestos brasileiros. As pessoas perceberam que a culpa não era delas, especialmente quando o Movimento Passe Livre questionou a lógica do transporte público e, mais importante, os governantes tiveram de recuar e fazer o “impossível”: cancelar o aumento. É que além das planilhas e cálculos objetivos de especialistas, com que tentam nos convencer que não dá mais, existe uma margem bastante palpável que é a margem de lucratividade, compromisso político-eleitoral e exploração, margem sistêmica, numa monstruosa e insaciável extração de tempo, vida e energia das pessoas incluídas no novo Brasil e suas cidades. O problema, enfim, é de organização, é sistêmico porque transcende a esfera meramente individual, a consciência e o mérito de cada um, incidindo diretamente sobre o plano político. O preço das tarifas é um tema político, jamais econômico.
A situação explodiu com um acontecimento contingente, a Copa das Confederações. Existe esse estereótipo do Brasil como pátria das chuteiras, lugar de alienação onde o futebol não passa de ópio de povo. Mas coincidentemente os maiores protestos da história do país se deram em meio a um megaevento do futebol. Mais do que isso, foi na mídia esportiva e seus jornalistas que apareceram as opiniões mais críticas à realização dos megaeventos, contrastando com a absoluta cumplicidade e até ufanismo por parte dos jornalistas convencionais. Isso faz parte da estratégia de capitalizar o Brasil atraindo investimentos, uma espécie de marketing político pela sua inserção no mercado global, na nova ordem mundial. Essa plastificação soa como uma ofensa.
O fato é que os brasileiros quando veem a imagem que se está vendendo do país no estrangeiro, só podem ficar indignados. Quem vê de fora a propaganda oficial parece que o país é maravilhoso, primeiromundista, quando há deficiências graves e humilhações em setores essenciais, como saneamento, saúde, educação, cultura, segurança pública. É preciso mostrar os pés de barro do colosso, diante de uma publicidade tão enganosa.
Podemos não viver uma crise recessiva, mas sucede uma crise do crescimento, uma crise da nova sociedade brasileira e sua composição social profundamente ambivalente. Muitas pessoas uma hora se indignam e se revoltam contra o modelo molar de inclusão. Nas revoltas, existe uma positividade, as manifestações estão assentadas numa vontade de viver e expandir diferente, uma construção comum de alternativas constituintes. Nada disso é entendido pelo governo federal, que insiste nos slogans do Brasil Maior e do Brasil Rico, sem prestar atenção (e até desprezando) em qual riqueza e grandeza as pessoas têm sonhado.
Tem-se então no Brasil uma revolta contra a inclusão. Também sublinhaste como não se pode falar em rebaixamento, mas ao mesmo tempo é falacioso o argumento da “nova classe média”. Podemos dizer que, no Brasil, essa camada média já nasce rebaixada e precarizada? Ou seja, já é imediatamente proletariado cognitivo?
Concordo. Penso que no Brasil historicamente saltamos a casa do welfare state; é que a nossa história, ao contrário do que teorizam intelectuais colonizados, não é um jogo da amarelinha onde o “céu” é o primeiro mundo. Aqui talvez sequer seja caso de andar pra frente, quem sabe pros lados, como o caranguejo. Os sociaisdemocratas europeus dos anos 1960 e 1970 sonhavam com o “pleno emprego” e os nossos, colonizados, com a Suécia. Quanto complexo de inferioridade! Paradoxalmente, já nascemos numa situação pós-moderna. O pós-estruturalismo foi inventado pelos índios e não por acaso Levi-Strauss levou para o outro lado do oceano e deu no Anti-Édipo.
Há cerca de 10 anos, quando a polícia subia o morro tinha um só objetivo: extermínio, controle violento dos negros. Era chacina o tempo todo. Agora, embora a forma-caveira persevere, sobem também os bancos, a formalização dos serviços. A lógica agora é de pacificação e não extermínio. Essa paz obviamente é do medo, que permita uma relação de força favorável para explorar o território de maneira ordenada. O que significa: expandir a franja do capitalismo, concentrar a exploração e incluir a população no mercado de trabalho e consumo. Isso, como toda franja capitalista, tem dois lados. Por um lado, aumenta em molecularidade o controle, transmudado de sua forma mais disciplinar. Por outro, mobiliza capacidades e ferramentas da população, que passa a exigir mais e aumentar a sua esfera de direitos, a sua posição como sujeito. O pacote “pacificação” é signo de uma ambivalência, o que se pode condenar, contudo, é estabelecer a unidade dessa pacificação como tarefa de polícia — civil ou militar, não importa, são igualmente brutais e racistas. Por que não uma unidade de políticas públicas, ou políticas do comum (UPC)?
Contrastando com teorias catastrofistas da esquerda, que só veem o pobre e a favela como vítimas, como lugar infernal, Giuseppe Cocco trabalha há muito tempo sobre esse conceito de “mobilização produtiva dos pobres”. É uma retomada da favela como usina, como fábrica de desejos, franja de subjetividade. Isso tem um lado ético e estético muito forte, e vai além de interpretações paternalistas para instalar nas comunidades e suas tradições de luta uma qualidade constituinte. Isso está acontecendo no Rio e em outras grandes cidades. Essas pessoas não aceitam mais quaisquer empregos subalternos, condições humilhantes, e estão se “proletarizando”, ou melhor, socializando noutros termos, se organizando de outras maneiras, novos coletivos e movimentos político-culturais.
Uma boa pesquisa seria identificar não só os novos circuitos de valorização e formas difusas de exploração do novo “proletariado”, mas também as bacias de trabalho vivo, os modos inovadores de cooperação social, viver junto, de criar.
Antes, você acenou sobre o papel dos jovens, a juventude como categoria política e não exclusivamente anagráfica. Pelo que você diz, os jovens estão imediatamente socializados dentro de um “novo modelo” de inclusão social do Brasil Maior. Quanto e em que formas a questão geracional pesa na composição de classe?
O movimento do Passe Livre, que afinal disparou as revoltas em junho, é composto por pessoas na faixa dos 20 anos. É realmente incrível. Nas manifestações, os grupos de ação direta são milhares e milhares de garotas e garotos com 16, 17, 18 anos, estudantes do ensino médio, além de muitos universitários. Eu vi vários com uniformes da escola pública. Este é um elemento incontestável. Vimos por outro lado os “antigões”, eu incluso, em vários momentos tímidos, hesitantes, e alguns inclusive com uma atitude de desprezo e até repulsiva. Consideram-se militantes de sétimo dan e estão perplexos, porque os protestos também são contra as bandeiras vermelhas da esquerda, dos partidos, e também contra o governo federal do PT e de Dilma. Houve hostilizações contra isso e nós estávamos ali, sem saber para onde ir, em meio a uma juventude positivamente “selvagem” que, todavia, estava muito bem organizada, com pautas muito consistentes e uma percepção agudíssima sobre a realidade bloqueada.
Temos que levar em consideração que essa “nova geração” já cresceu num outro Brasil, na nova sociedade profundamente ambivalente de que eu falava. Não viveram politicamente os tempos de FHC, a terra arrasada dos anos 1990, e não compreendem como a gente compreendia a luta antineoliberal, que às privatizações e ao mercado dizia vivas ao estado. Já nasceram politicamente no governo Lula e não vão se contentar com explicações que o PSDB é pior. Isso não convence, é uma chantagenzinha de velho. Tudo isso, para eles, não faz sentido. E é bom que seja assim. Estão livres desses vícios que nos tornam hesitantes, ranzinzas e até nojentinhos. Porque Belo Monte, a resistência da Aldeia Maracanã, a luta por renda, mídia e cultura, isso para eles é vivido como um imediato contra o estado, e não só um problema do mercado. Está tudo misturado, é como se tivessem contornado a guilhotina da modernidade entre público e privado. Na minha opinião, e espero não estar enquadrando demais essa carga selvagem, o discurso do comum é imediatamente consistente com essa febre geracional.
Eles dizem: “ok, esta é minha possibilidade de existir, de viver sem seguir o que já estava preparado para mim, é minha chance de dizer não à montanha de expectativas e culpas, do mercado, do estado, da família, então eu vou lá e faço meu caminho”.Tem, sim, um componente geracional.
Você citou algumas vezes o conceito de comum: além do que existe nos léxicos políticos, em que modo é concretamente importante nas lutas e qual a sua relação com o público?
Como eu disse, nos anos 90 no Brasil, parecia claro a muita gente que a direita era pelo mercado, a privatização e a globalização financeira, enquanto a esquerda defendia o estado, o público e a proteção dos países pobres contra a globalização. Éramos pelos serviços integralmente públicos e de qualidade, por uma sociedade com um estado forte, que pudesse confrontar o poder econômico e os arcaísmos regionais e, de cima a baixo, realizar a justiça social. Quando eu tinha 16 anos, eu acreditava piamente nisso. O iluminismo não ilumina a gente… ele ilude, não é?
Veio a esquerda ao poder, Lula foi eleito em 2002. As receitas neoliberais foram dando lugar para uma matriz mais sincrética, misturando algumas políticas do tempo do FHC (ortodoxia financeira, algumas privatizações), com o nacional-desenvolvimentismo na linha furtadiana. Mas também inovações, de fato tímidas, embora importantes, seja em termos programáticos, como a massificação das políticas sociais, os pontos de cultura, seja de abertura para os movimentos, como forma de governança. Dilma sucedeu Lula, e fortaleceu no discurso o lado gestor, da eficiência e modernização do estado. A minha impressão é que ela pensa efetivamente como a esquerda pensava nos anos 1970. Isso toca, por vezes, nas estratégias desenvolvimentistas de certo setor formulador e intelectual das ditaduras militares, a exemplo da equipe do ex-presidente Geisel. O signo máximo, sem dúvida, é a barragem de Belo Monte, que vai ser a terceira do mundo e servir essencialmente para fortalecer a primarização da economia no norte do país (grande indústria mineradora).
Por isso, as manifestações estão se revoltando também contra o estado. Contra um estado muito distante da composição social, incapaz de comunicar-se, de ser perpassado desde baixo. O Grande Projeto está surdo e mudo, resume-se a viver de publicidade, gabinetes fechados, e pesquisas desde o alto de opinião e popularidade. O governo pretende colher o apoio a jusante, sem fazer o dever de casa de uma democracia. Esse descompasso se abriu nas ruas, onde é preciso reformular tudo, voltar à prancheta.
É aí, nessa necessidade de positividade, que eu vejo o comum como uma resposta em movimento. Existe, sim, um desejo de organização que não passa pelas formas representativas, que não quer mais saber dos mil conchavos e lobbies envolvidos na governança. Que não querem fazer megabarragens e megaobras para capitalizar a imagem do Brasil ou auferir divisas pela exportação de commodities. Porque os representantes dizem que não tem outro jeito. Mostram planilhas, infográficos, leem as tendências internacionais. Mas tem que ter outro jeito. As pessoas estão construindo isso, quando, em grande êxodo, recusam os partidos, bandeiras e movimentos de esquerda ou direita. Esse comum está espessando graças a novas redes, formas de comunicação, formas de controle democrático e deliberação. Daí podem surgir outros modelos de governança no nível dos serviços, da saúde, cultura, educação, transporte.
No Brasil, o “comum” não é tanto uma questão de inovação teórica, mas uma alternativa constituinte que se impõe pelo próprio impasse oferecido pelos representantes, na camisa-de-força entre “público” e “privado”.
Nas revoltas brasileiras, como é a relação entre o movimento e a esquerda, que costuma ser o portador do discurso histórico da defesa do “público” e do estado?
A esquerda tradicional no Brasil, — estou falando do PT, PCdoB, PDT, PCB, PSOL, PSTU, movimentos sociais, centrais sindicais, UNE, UBES e alguns outros, — foram pegos totalmente de surpresa pela magnitude que a coisa galgou em pouquíssimo tempo. A reação foi de assombro generalizado. E daí começaram a surgir discursos de primeira hora. Tiveram os que frisaram não ter nada a ver com isso, e fizeram questão de marcar atos e passeatas “separados” do movimento selvagem. Tiveram outros que, no governo, na situação, julgaram que os maiores prejudicados seriam eles mesmos, que tinham as eleições de 2014 já calculadas e definidas, e aí partiram para estratégias de desqualificação e, os mais pelegos, de criminalização. Tiveram os que ficaram repelidos pela presença de pautas incomuns à esquerda, e alguns minúsculos grupos da direita, sem representatividade nos protestos, mas que foram suficientes para ativar um medo totalmente irracional e mecanismos de defesa, com abundante abuso da palavra “fascismo”. A tese da manipulação é típica da mentalidade colonial. O esquerdista pensa como o colonizador: o “outro” é incapaz de autodeterminar-se, é incapaz de querer o melhor para si, e que quem tem a razão é ele mesmo, o conscientizador, e que essa razão precisa ser encarnada no estado socialista. Essa é a “construção do socialismo”: eles mesmos encarnados no poder para civilizar as massas bárbaras. É quase uma constância histórica serem atropelados pelas revoluções que só conseguem elogiar nos livros.
E tiveram, claro, intelectuais orgânicos muito bem orientados pelos dirigentes que não tiveram qualquer pudor em usar seu “capital acadêmico” (medido pelo sistema Lattes) para engrossar o caldo da repressão violenta. O caso mais grave, na minha opinião, foi da filósofa Marilena Chauí, que palestrou na academia da polícia militar que fascistas eram os manifestantes.
Enquanto muita gente se mobilizou na alegria de ver algo diferente finalmente acontecer num país onde sempre se falou em “alienação” e “desmobilização”, a esquerda tradicional fez o papelão de se diferenciar ela mesma da multidão, que provou conhecer somente na teoria ou através de pesquisas de opinião e eleitorais. Muitas máscaras caíram, da esquerda na situação e na oposição, e eu não tenho dúvida que as pessoas que se revoltaram e foram às ruas vão se lembrar disso. Tem muita gente de esquerda, aliás, que tem medo que realmente ocorram grandes manifestações. Isso ameaça a sua “reserva de mercado”, mexe com sua identidade querida, no final das contas é só mais uma zona de conforto burguesa onde podem estabelecer relações de amizade, produção ou amorosas com alguma segurança e autocomplacência. É realmente triste o grau de impotência de parte de nossa esquerda, é um complexo colonizado.
Voltemos à genealogia do movimento no Brasil. Em que grau pode recompor e transformar lutas precedentes, e em que grau pode criar perspectivas comuns?
Não vejo, hoje, a esquerda tradicional, sejam partidos, sindicatos ou movimentos sociais, capazes de unificar e dar direção à intensa mobilização da sociedade brasileira, na dimensão política e produtiva. Acredito que a massificação dos tumultos e lutas pode acontecer, outra vez, através de ações táticas feitas no momento certo, a exemplo do que o MPL conseguiu ser o estopim, em junho. Essas ações estão conjugadas com uma indignação difusa que se manifesta onde a vida é mais tensa: no transporte coletivo, na saúde, na educação e outros âmbitos cheios de pólvora. Obviamente, a iminência e a realização da Copa do Mundo vão tensionar ainda mais a situação, além das eleições de 2014, onde serão votados presidente, governador e parlamentares federais e estaduais.
Se uma recomposição de classe no nível organizativo é possível, se dá com outro tipo de movimento, e outro tipo de comunicação. Está em construção, talvez seja difícil enxergá-la, e prefiro não fazer postulações que pareçam abstratas ou metafísicas. Que sei eu de utopias? Sei que a luta continua e só ela ensina, como gosta de dizer uma companheira tradutora da Vila Vudu. Grupos como o Favela não se cala promovem arranjos inéditos, com capilaridade nas favelas, mas também no asfalto. Outras mídias, como o jornal Nova Democracia, ou esses maratonistas com câmera na cabeça fazendo streaming, contam-nos outras histórias diretamente dos acontecimentos. Tem muita coisa de bastidor, matilhas amorosas de preto, grupos estético-políticos, outra produção cultural, como por exemplo o Norte Comum, no Rio. Os camelôs, os sem tetos, os artistas de rua, os hackers, as vadias, os precários, todos continuam na sua construção diuturna de outra cidade, e atravessam as manifestações na medida de seu desejo e sua raiva.
Estamos, nós da UniNômade brasileira, pesquisando as formas embrionárias e produzindo conhecimento nas lutas e para as lutas, isso é certo e para mim gratificante. A esquerda se perdeu num “compromisso histórico” em que a juventude e todos nós revoltados e indignados não nos sentimos comprometidos. Não posso deixar de estar otimista.
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Bruno Cava é militante e blogueiro, publica o Quadrado dos loucos e participa da rede UniNômade
Gigi Roggero é pesquisador precário das lutas na Europa, autor de Fábrica do saber vivo, participa do projeto Commonware