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Eu tenho ligação com Caio

Por Silvio Pedrosa, professor de história da rede municipal (Rio de Janeiro) e UniNômade

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“Quem de nós pode ou poderia afirmar ligações com Caio? Pouquíssimos. Talvez ninguém. Para nossa vergonha, pois o ‘pobre’ não passa de uma figura conceitual em nossas bocas e teclados, em nossos textos e teses.”


“se olhei para o sol resplandecente

ou para a lua que caminha com esplendor,

e meu coração se deixou seduzir secretamente,

e minha mão lhes enviou um beijo;

também isso seria crime digno de castigo,

pois teria renegado ao Deus do alto.”

Jó, 31, 26-28.

Caio Silva de Souza, o acusado pelo manuseio do artefato explosivo que, lançado ao chão, serpenteou pelo ar, atingiu e vitimou o cinegrafista Santiago Andrade, é um jovem trabalhador de apenas 22 anos. Sob descomunal pressão, inclusive de seu próprio advogado, ele confessou ter segurado o rojão que, no dia 6 de fevereiro, durante manifestação contra o aumento das passagens de ônibus, matou o funcionário da Rede Bandeirantes de Televisão. No momento em que tudo ocorreu, a tropa de choque da polícia militar lançava uma chuva de bombas de gás sobre os manifestantes, dando prosseguimento a uma repressão brutal, iniciada momentos antes dentro da estação Central do Brasil (mesma repressão que, aliás, ocasionou a morte de Tasman Accioly, um ambulante atropelado por um ônibus desgovernado em razão da confusão instaurada pela PM e tornado estatística instantaneamente, como acontece com a vasta maioria das mortes produzidas pela ação das nossas forças policiais).

Morador de Nilópolis, na Baixada Fluminense, Caio e sua mãe moravam de favor na casa de parentes. Ele dormia no sofá da sala. A mãe não tem condições de trabalhar, pois a esquizofrenia de seu pai (avô de Caio) requer cuidados. Para ajudá-lo na rotina diária, ela, há cerca de um ano, passou a pagar, com parte da pensão do pai, o aluguel de uma quitinete próxima à estação de Olinda – assim ele teria que tomar apenas uma condução para ir e voltar ao trabalho. Auxiliar de serviços gerais no Hospital Rocha Faria, em Campo Grande, Caio era um precário, trabalhando temporariamente para uma empresa terceirizada em troca de um salário mínimo.

Caio, segundo a própria mãe, se considera um herói, responsável coletivamente pela redução das passagens de ônibus, resultado das mobilizações multitudinárias de junho de 2013. Ele ia a todas as manifestações, confirmando, do seu celular (pois não tem computador pessoal), a presença nas mobilizações marcadas nas redes sociais. Nelas colocava seu próprio corpo em risco, resistindo à violência policial, para que outros manifestantes pudessem se afastar em segurança do centro do conflito, para que a brecha democrática aberta pelas mobilizações sociais não se fechasse, varrida pela violência que as polícias despendem para quem ousa exercer o seu direito de manifestação.

Ele foi capturado na Bahia quando tentava chegar ao Ceará na casa de avós. A prisão foi transmitida ao vivo, irrompendo na programação da madrugada como notícia de última hora, pois a Rede Globo de Televisão teve acesso privilegiado à informação de sua prisão, mediada pelo advogado de seu próprio delator (que anteriormente havia defendido milicianos e emergiu misteriosamente na defesa de Raposo) que, ato contínuo, tornou-se o seu próprio advogado. Antes mesmo de prestar depoimento à polícia, Caio foi interrogado pela repórter que acompanhava o seu caso. A mídia corporativa dava mais um passo no processo de se tornar uma instância decisória do judiciário brasileiro. Foi indiciado por homicídio doloso (com intenção) qualificado (por uso de explosivo – legalmente vendido em qualquer esquina do país e usado às toneladas a cada final de ano) ao arrepio das leis, ao arrepio do direito, como esclareceu o jurista Nilo Batista. Como provas da sua culpa apenas a própria confissão, extraída sob condições completamente excepcionais, e fotos e imagens de TV completamente inconclusivas.

Caio é mulato, pobre, morador da periferia e sem conexões políticas. Após a prisão, ele confessou receber 150 reais por manifestação, insinuando que tal dinheiro viria de partidos (e organizações) de extrema-esquerda, cujas campanhas eleitorais são financiadas, com parcos recursos, a partir de doações de pessoas físicas. Um dos quadros mais conhecidos de um desses partidos políticos, que recentemente alcançou quase um milhão de votos na eleição para a prefeitura do Rio de Janeiro, estaria supostamente envolvido no esquema. Durante dias, durante semanas, mobilizaram-se diversas redes da esquerda carioca na defesa do nome desse político. Todos tinham ligações com ele e as exaltavam com orgulho nas redes sociais. Caio não só não mereceu qualquer mobilização, como foi tratado de forma protocolar pela maioria das organizações de esquerda da cidade e do estado: ‘as culpas precisam ser apuradas e os envolvidos punidos!’ ouvimos e lemos. Alguns dentre estes devem ter aludido às passagens de Caio pela polícia para desqualifica-lo (dando um crédito seletivo à mídia corporativa, aquela mesma que fabricava um ‘factoide’ contra o seu político predileto – as passagens não passavam de detenções para averiguação não confirmadas).

O próprio político, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do estado do Rio de Janeiro, não se movimentou para apurar as condições suspeitas nas quais Caio havia sido envolvido no incidente do dia 6 de fevereiro. Limitou-se a defender a própria ‘trajetória’, declarando-se contrário a ‘qualquer violência’ e partidário do ‘isolamento’ dos manifestantes violentos (no discurso midiático-policial: ‘vândalos’ e ‘baderneiros’). À essa altura Caio era só mais um pobre encarcerado nas prisões brasileiras. Sua identidade já havia sido subsumida pela onda de criminalização e perseguição política para a qual ele serviu apenas de pretexto. Caio era apenas uma peça de carne negra a ser moída no moinho satânico da mídia corporativa. Apenas um anel (um símbolo que representava a perniciosidade da esquerda autonomista que surgiu nas ruas e redes em 2013) a ser cedido em troca do cessar-fogo e da manutenção da mão da esquerda partidária.

Quem de nós pode ou poderia afirmar ligações com Caio? Pouquíssimos. Talvez ninguém. Para nossa vergonha, pois o ‘pobre’ não passa de uma figura conceitual em nossas bocas e teclados, em nossos textos e teses. E, no entanto, estaríamos circunscrevendo nossas relações de forma excessivamente judicial (talvez inconscientemente a única forma pela qual poderíamos pensar – com horror – estar relacionados a Caio) sem sequer notar que muitos de nós que tivemos (e exaltamos) ligações com o deputado estadual envolvido no caso talvez também jamais tenhamos mantido qualquer relação comprovável com ele.

Pode-se mesmo (e certamente alguns terão dito como forma de não macular essa ala do espectro ideológico) dizer que Caio não é de esquerda. Não possui, certamente, ‘formação política’. Não seria necessário, então, ou mesmo possível esboçar ‘ligações com Caio’. E nem seria recomendável, sob pena de incluir variáveis complexas ao cálculo político-eleitoral.

O quê Caio possuía, entretanto, era um impulso de justiça, que declarou na madrugada em que foi preso à funcionária das organizações Globo: queria uma educação pública melhor (para outros Caios mais jovens, moradores de Nilópolis e da periferia carioca e fluminense) um sistema de saúde mais digno (para seu avó, esquizofrênico, para sua mãe, que padece de problemas neurológicos). Os ‘realistas’ de esquerda, sobretudo, apologistas da realidade, dirão que Caio foi ingênuo. Que não se muda o mundo nas ruas. Que é preciso engajar-se numa organização, militar num partido: ‘disputar as instituições’. A ‘ingenuidade’ de Caio teria sido, então, a crença num dos lugares comuns que garantem pertencimento à esquerda: a insatisfação com o atual estado de coisas e a disposição para participar de um movimento real que o possa abolir.

Nossas ligações com Caio são de ordem ontológica. Caio estava conosco em 17 de junho, na ‘batalha da ALERJ’. Em 20 de junho, Caio deve ter enfrentado a violência policial, o ‘caveirão’, enquanto muitos de nós corríamos para longe do confronto. Também deve ter estado nas ruas quando os professores grevistas foram atacados na Cinelândia enquanto seu futuro profissional era decidido no interior de uma Câmara de vereadores cercada e defendida por centenas de policiais. A ‘ingenuidade’ de Caio se manifestava na alegria de estar junto, de agir politicamente em comum, construindo uma democracia, uma democratização por dentro de uma ordem oligárquica, cujas instituições apenas formalmente delineiam uma expectativa de soberania popular. Caio era (e é) uma expressão de singularidade, de desejo por outro mundo.

Eu tenho ligações com Caio. Não por ser um dos grevistas que ele, provavelmente, protegeu em outubro de 2013 da sanha fascista da polícia militar. Mas por ter compartilhado nas ruas das mesmas dores que ele, por ter descoberto, talvez junto com ele, a potência do agir em comum. Por ter concebido junto com ele que o tempo não é uma forma de ser, mas uma força constitutiva, que nos constitui, ao mesmo tempo que é constituída pelo nosso agir, pelo nosso viver. Eu tenho ligações com Caio. Todos temos. E deveríamos exaltá-las. Deveríamos defendê-las. Para defender Caio, mas também para defender o direito de outros Caios irem às ruas. Para defender o direito de outros Caios tomarem o porvir em suas mãos. Para defender o direito de outros Caios serem dignos do seu próprio tempo.

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