Por Ovidiu Tichindeleanu, filósofo moldovo, autor de “The postcommunist colonization, a critical history of the culture of transition”, em LeftEast, em 21/02 | Trad. UniNômade
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Os mortos da praça de Kiev não são apenas mortos da Ucrânia. Eles são os mortos do Leste Europeu “pós-comunista”. Provocam dor em todos os lugares, mas em diferentes graus. Uma ferida aberta não pode ser fechada com palavras, ainda que alguém possa gritar, em solidariedade, que o que está acontecendo seja a outra ponta da transição pós-comunista, o dito “lado ruim” da “bem sucedida” integração da Ucrânia na União Europeia. No entanto, nas duas pontas da integração, a transição tem sido um desastre histórico, arruinando com diferentes ritmos a dignidade, a qualidade de vida, as próprias vidas e futuros de milhões de pessoas. A difícil situação da Ucrânia hoje pode tornar o desastre visível para todos aqueles que tentam, com tanta dificuldade, seja desviar o olhar, seja legitimar o desastre por meio da retórica de mercado, desenvolvimento, estado-nação e civilização. Ou com “histórias de sucesso”, que foram imediatamente abandonadas no dia em que se tornaram tristes.
Ainda assim, a transição foi realmente bem sucedida: o Leste Europeu voltou à periferia ou semiperiferia do capitalismo global. Foi um retorno à situação de dependência, a uma corrida em direção ao fundo do poço. Alguém da região sempre estará batendo no fundo, e nem sempre será a Ucrânia. Fora do antigo bloco socialista, as coisas não parecem em nada melhores: 25 anos depois da “queda do comunismo totalitário”, como proclamação do “triunfo final da democracia liberal ocidental”, o estado global da democracia piorou radicalmente; desigualdades estruturais, guerras por recursos e terras se multiplicaram, e a sobrevivência do próprio planeta é hoje em dia uma questão aberta.
Na região, a destruição horrível provocada pelas reformas pró-capitalistas anticomunistas de transição, pouco importando se o partido no poder era de “direita” ou de “esquerda”, levou invariavelmente cada estado do Leste Europeu a uma situação de subdesenvolvimento nos setores da saúde e educação, ao empobrecimento e à emigração em massa, à formação de oligarquias, — bem como à alienação de uma pequena classe média, de aparelhos midiáticos, intelectuais e políticos, alienados da população ucraniana. Também levou ao surgimento de aparelhos de segurança e militares muito poderosos, tanto no Oeste quanto no Leste. E agora a bolha estourou, não por acaso no maior país fora das fronteiras da UE, e contudo aparentemente não tão grande ou poderoso o suficiente para evitar ser ensanduichado entre as maiores potências.
Os próprios cismas da Ucrânia podem estar colapsando no interior do país, mas muitos dos problemas ucranianos são internacionais. É apenas lógico que a resposta esteja envolvendo uma defesa do estado ucraniano, vinda de diferentes direções do movimento, embora as vítimas atuais não possam ser reduzidas a aparelhos do estado, e não tenham sido representadas pelo estado por um bom tempo. A ascensão dos nacionalistas de extrema-direita, sobre um pano de fundo de dominação por oportunistas cínicos e oligarcas locais, é uma contrapartida integral do sonho vendido agressivamente pelo Ocidente, que pode ser colocado no mesmo saco das contraofertas vindas da Rússia, ao leste. O sonho, que nas últimas décadas captou a maioria das energias locais em prol de melhorias, lentamente expirou por toda a região, depois da explosão da crise nos próprios centros do capitalismo global. Nos últimos três anos, movimentos populares pipocaram pelo Leste Europeu, e todos eles exprimiram um descontentamento antissistêmico. No entanto, a despeito dos prováveis efeitos de longo prazo que eles possam produzir, esses movimentos fracassaram em produzir um momento constitucional comum — muito provavelmente, como consequência da aniquilação histórica da esquerda, depois de 1989. Vários desses movimentos, quer da Ucrânia, quer da Romênia, acabaram sendo dominados ou maltratados por nacionalistas e pela extrema direita. Como consequência disso, grupos autônomos seguiram trabalhando relativamente isolados. Nenhuma frente popular emergiu. Reagindo à onda de mudanças, os liberais eurocêntricos se voltaram en masse à esquerda, mas indo longe o bastante apenas para negar o papel anterior da esquerda, e para apoiar temas como anticorrupção, direitos humanos, uma modernização mais pura, e talvez o keynesianismo. A resposta do sistema político vigente, por sua vez, tem sido invariavelmente de negação dos movimentos, de repressão, da colocação do problema em termos do “mal menor”, bem como mais desenvolvimentismo, reforço de estruturas verticais, às vezes apoio a capitalistas locais, ainda mais rápidas e pouco transparentes privatizações, e o uso desavergonhado de movimentos para tirar vantagem sobre os adversários na esfera política formal.
Nos momentos intensos da transição global, as revoltas sociais podem movimentar as coisas com grande velocidade, para o melhor ou para o pior. Em tempos de conflito, existe um desejo de construir poderes comunicativos, sem medo. Diferentemente da América Latina, no Leste Europeu, os mediadores tradicionais do consenso (para o bem ou para o mal): a religião e o nacionalismo têm sido tradicionalmente reivindicados pelas forças da extrema direita, dessa maneira se colocando no lado oposto da libertação. Essas mesmas reivindicações também têm sido adotadas nos vocabulários da luta anticolonial e do autonomismo, porém antes para reforçar um imaginário político obediente ou de “fortaleza sob cerco”, do que para verdadeiramente construir a soberania popular. Se o mundo está, de fato, numa etapa de transição para outro sistema global, tais sinais, como têm sido vistos nesta região, não são muito encorajadores. A guerra, a repressão e as sanções são soluções apenas para as estruturas verticais atuais, órgãos políticos, e para a extrema direita armada, todos esses que vão continuar ferindo o povo. Eles todos correspondem à concepção comum do poder na modernidade: poder como dominação, como oposto ao poder popular, no sentido de colocado a serviço ao povo. No entanto, as insatisfações da população são sistêmicas, e são firmes em rejeitar a dominação. Na luta, os membros de partido e as forças de segurança vão provavelmente abandonar essas estruturas, se elas continuarem a trabalhar contra o povo. E a UE deveria pensar melhor, antes de reproduzir os efeitos devastadores que tiveram as sanções e o embargo da ONU contra a ex-Iugoslávia (Sérvia e Montenegro), no período de 1990-92.
No Leste Europeu, o nacionalismo é um item automaticamente disponível, usado para articular o orgulho local e a dignidade destruída pela transição pós-comunista, segundo um repertório estritamente ligado e controlado pelos aparelhos de estado, e cujas linhas de fuga sempre apontam para passados míticos dourados. Esse tipo de nacionalismo é um modo de alienar as pessoas de suas próprias culturas e histórias contemporâneas. Tão logo tais símbolos apareçam em meio a manifestantes tão heterogêneos, eles têm o efeito inequívoco de parar o processo de construção democrática, “de baixo pra cima”. Em vez de pavimentar o caminho para as aspirações das comunidades, esses símbolos convocam uma tropa de machistas farsantes. Além disso, a referência invisível ao orgulho nacionalista local não deixa de ser ainda outra mazela ocidental, — segundo o projeto da modernidade ocidental de realizar o estado-nação, — isto é, o nacionalismo ucraniano se trata de uma projeção interiorizada do império, nada acidentalmente temperada com ingredientes teológicos. Enquanto essa referência subsistir em pé, os tipos de nacionalismo que vão emergir continuam a ser apenas um espelho do racismo ocidental contemporâneo. Esses tipos vão diminuir o poder popular.
Um sentido relacional para o local e um sentido de solidariedade regional, que contrastem as pressões tanto do Leste quanto do Oeste, bem como uma familiaridade com as lutas de outras periferias vão prover não apenas mais dignidade à luta, como também maior força comunicativa e a construção de alternativas concretas. Esperançosamente, a resposta do povo vai envolver a reivindicação de uma reconstrução popular do poder, e não alguma retirada para isoladas fortalezas.
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Tradutor: Bruno Cava