Por Judith Butler, na Revista Cult, 14/11/2015 | Trad. Sofia Nestrovski
—
—
Estou em Paris. Ontem à noite, passei por perto do local da matança na rua Beaumarchais. Jantei em um lugar que fica a dez minutos de outro alvo dos ataques. Todos que eu conheço estão bem, mas muitos que eu não conheço estão mortos, traumatizados ou em luto. É escandaloso e terrível. Hoje as ruas estiveram movimentadas de tarde, mas vazias à noite. A manhã acordou inerte. As discussões televisivas que ocorreram imediatamente após os eventos parecem deixar claro que o “estado de emergência”, ainda que temporário, na verdade cria precedente para uma intensificação do estado de segurança. As questões debatidas na televisão incluem a militarização da polícia (de que modo “completar” esse processo), o espaço da liberdade, e a luta contra o “islã”, este último entendido como uma entidade amorfa. Hollande, ao nomear isso como “guerra”, tentou parecer másculo, mas o que chamou atenção foi o aspecto imitativo de sua performance – tornou-se difícil, então, levar seu discurso a sério. E no entanto, é esse agora o bufão que assume o papel de cabeça do exército.
A distinção entre estado e exército se dissolve em um estado de emergência. As pessoas querem ver a polícia, querem uma polícia militarizada para protegê-las. Um desejo perigoso, ainda que compreensível. Muitos são atraídos pelos aspectos beneficentes dos poderes especiais concedidos ao soberano em um estado de emergência, como as corridas gratuitas de táxi na noite de ontem para qualquer um que precisasse voltar para casa, e a abertura dos hospitais para todos que foram atingidos. Não há toque de recolher instaurado, mas os serviços públicos foram reduzidos e as manifestações, proibidas – inclusive os “rassemblements” (encontros) para lamentar os mortos foram considerados ilegais. Compareci a um desses encontros na Place de la République, onde a polícia reiterou que todos deviam se dispersar, e poucos obedeceram. Nisso vi um breve momento de esperança.
Os que comentam os eventos buscando distinguir as diferentes comunidades muçulmanas, com suas diversidades de posição política, são acusados de procurarem “nuances”: o inimigo precisa ser total e uno para ser aniquilado, e as diferenças entre muçulmanos, jihadistas e o Estado Islâmico vão ficando mais difíceis de discernir nos discursos públicos. Mesmo antes do ISIS assumir a responsabilidade pelos ataques, muitos já apontavam o dedo, com total certeza, ao Estado Islâmico. Pessoalmente, achei interessante que Hollande tenha proclamado três dias de luto oficial ao mesmo tempo em que intensificou os controles de segurança, algo que traz um modo a mais de interpretar o título do livro de Gillian Rose, “Mourning becomes the law” (O luto torna-se lei). Estaríamos vivendo um momento de luto ou uma submissão a um poder de estado cada vez mais militarizado, de suspensão da democracia? De que maneira esse modelo de estado se instaura com maior facilidade quando é vendido em nome do luto? Serão três dias de luto público, mas o estado de emergência poderá se estender por até 12 dias até que seja necessária sua aprovação em assembleia nacional. E ainda, a explicação do estado é de que é preciso restringir liberdades a fim de defender a liberdade – um paradoxo que não perturba os doutos comentaristas da televisão. De fato, os atentados foram evidentemente direcionados a locais emblemáticos da circulação livre e cotidiana na França: o café, a casa de shows, o estádio de futebol. Na casa de shows, aparentemente, um dos assassinos responsáveis pelas 89 mortes violentas acusou a França de ter falhado na intervenção na Síria (contra o regime de Assad), e o Ocidente, pela intervenção no Iraque (contra o regime baathista). Não se trata, portanto, de um posicionamento (se é que podemos chamá-lo assim) totalmente contrário à intervenção ocidental em si.
Há, ainda, uma política dos nomes: ISIS, ISIL, Daesh. A França recusa-se a dizer “état islamique” para não reconhecer sua existência enquanto estado. Querem manter o termo “Daesh”, palavra árabe que não é acolhida pela língua francesa. Nesse meio tempo, foi essa a organização que assumiu a responsabilidade pelos ataques, afirmando que se tratava de uma retaliação pelo bombardeio que matou muçulmanos em território do califado. A escolha de um show de rock como alvo de ataque – como cenário para os assassinatos, na verdade – recebeu a justificativa de que ali seria um local de “idolatria”, de um “festival de perversão”. Eu me pergunto onde eles encontraram o termo “perversão” – parece que estiveram lendo uma bibliografia de outra área.
Os candidatos à presidência já chegaram com suas opiniões: Sarkozy agora está propondo campos de detenção, afirmando ser necessário prender qualquer um suspeito de ter ligações com jihadistas. E Le Pen advoga pela “expulsão”, ela que há pouco chamou de “bactérias” os novos imigrantes. É bem possível que a França consolide sua guerra nacionalista contra os imigrantes a partir do fato de que um dos assassinos claramente entrou no país pela Grécia. Minha aposta é de que será importante acompanhar o discurso sobre a liberdade nos próximos dias e semanas, pois irá trazer implicações para o estado de segurança e o achatamento das versões de democracia que temos diante de nós. Uma liberdade é atacada pelo inimigo; outra é restringida pelo estado, que defende o discurso do “ataque à liberdade” pelo inimigo como um ataque à essência do que é a França, mas suspende a liberdade de reunir-se (o “direito à manifestação”) em meio ao luto, e prepara uma militarização ainda maior da polícia.
A questão principal parece ser: qual vertente da extrema direita prevalecerá nas próximas eleições? E o que será a “direita tolerável” quando Marine le Pen for considerada de “centro”? São tempos assustadores, tristes e preocupantes, mas há a esperança de que ainda somos capazes de pensar, falar e agir em meio a tudo isso. O processo de luto parece ter sido totalmente restringido dentro do território nacional. Praticamente não se fala dos quase 50 mortos em Beirute no dia anterior, tampouco dos 111 mortos na Palestina apenas nessas últimas semanas. A maioria das pessoas que eu conheço dizem que estão em um “impasse”, incapazes de pensar a fundo sobre a situação. Uma das maneiras de pensar sobre ela talvez venha com a invenção de um conceito de luto transversal – de considerar como a métrica do lamento se dá, como e por que os assassinatos no café me comovem de modo mais intenso que os ataques ocorridos em outros locais. Parece que o medo e a raiva poderão se transformar em um feroz apoio ao estado policial. Talvez seja por isso que prefiro aqueles que dizem estar em um impasse: significa que levarão um certo tempo para pensar a situação. É difícil pensar no espanto. É preciso ter tempo, e ter companhia para atravessar esse tempo – há, talvez, espaço para que isso se dê em um “rassemblement” não autorizado.
—
Judith Butler é filósofa queer e teórica sobre o gênero, ativista de movimentos minoritários.