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O levante de Junho de 2013 atacou o “hard power” brasileiro

Entrevista com Giuseppe Cocco no IHU online, 27/9/17, por Patrícia Fachin e Ricardo Machado

A novidade no cenário político não é nem a existência de uma crise moral, nem o desvelamento da corrupção. A “única novidade”, diz o cientista político Giuseppe Cocco, “é que por uma vez algum setor da magistratura decidiu fazer o trabalho que deveria fazer se o Brasil tivesse alguma democracia”.

IHU On-Line – O que o depoimento de Antonio Palocci trouxe de novidade ao cenário da Lava Jato? Há alguma surpresa na decisão de Palocci, diferente de José Dirceu, de colocar as cartas na mesa?

A novidade parece estar mesmo no fato de que o Palocci parece ter decidido colaborar

Giuseppe Cocco – A “delação premiada” é um mecanismo jurídico que, uma vez que abre uma brecha, tende a virar uma “bola de neve” e vira uma avalanche cada vez maior, até que o poder consegue se reorganizar e colocar a máquina judiciária de volta ao seu lugar: a criminalização dos pobres e de qualquer instância realmente democrática. Fala-se muito de “crise moral” no Brasil, como se a novidade fosse a própria “corrupção”. Oras, a única novidade é que por uma vez algum setor da magistratura decidiu fazer o trabalho que deveria fazer se o Brasil tivesse alguma democracia. Na Itália, onde a delação premiada (chamada lei dos “pentiti”, dos arrependidos) foi implementada no final da década de 1970 para combater as organizações da esquerda armada, o dispositivo foi extremamente eficaz: em três anos, entre o 7 de abril de 1979 (quando o Negri foi preso) e 1982, a magistratura e as polícias acabaram de vez com todas essas organizações. Os sucessos técnicos da repressão foram multiplicados politicamente pela desmoralização ética que a difusão dos acordos de delação premiada criou.

A partir do momento que começou a funcionar, o dispositivo da colaboração se desdobrou ao longo de duas linhas: por um lado, houve uma modulação dos níveis de colaboração e das penas, por exemplo, com a figura do “dissociado” (que não colaborava, mas passava a condenar politicamente e publicamente as organizações da luta armada e recebia um abrandamento das condições carcerárias e da pena); pelo outro, a tecnologia jurídico-repressiva passou a ser usada contra a máfia e, depois da queda do muro de Berlim, contra o sistema dos partidos políticos. A operação “mani pulite” [Mãos Limpas] (o ancestral da Lava Jato) foi, portanto, a terceira onda do dispositivo.

Aqui no Brasil, em um contexto totalmente diferente, a delação premiada começou sendo aplicada a partir da parte mais “madura” da experiência italiana, atacando diretamente a corrupção sistêmica, quer dizer, setores do dispositivo predatório do estado neoescravagista que liga as grandes empresas (estatais e privadas) ao sistema dos partidos. A Lava Jato teve três “condições” ou três caraterísticas para “pegar”:

(1) a grande legitimação que veio do levante cidadão de junho de 2013 (como não ver que os “inimigos” de junho – aqui no Rio – estão quase todos presos e/ou investigados: Cabral, a Fetranspor, o secretário de Saúde, o pessoal envolvido com Copa e Olimpíadas etc.);

(2) a explicitação do estelionato eleitoral e do fracasso econômico do governo Dilma-Lula-Temer (que teve como consequências os panelaços e as grandes manifestações pelo impeachment);

(3) a decisão dos juízes de Curitiba de inicialmente focarem no setor empresarial: diretores da Petrobras, empreiteiros, doleiros.

Se o “PT realmente existente” é eticamente corrupto, a esquerda do PT se corrompeu politicamente

Esse foi um detalhe muito importante, porque evitou o “fórum privilegiado” que teria funcionado (e ainda funciona) como uma barragem para que a bola de neve não vire avalanche no ambiente político, com a multiplicação das delações entre os grandes caciques do sistema partidário.

A Lava Jato só “pegou” nos políticos que não tinham mais essa proteção ou a perderam pontualmente (como no caso do Cunha ou do Delcídio do Amaral, antes dele). Como funcionam com os políticos, as últimas delações mostraram (JBS e Funaro): por um lado, Aécio conseguiu ser solto pelo STF; pelo outro, Temer e companhia fizeram até da própria delação um negócio de compra e venda do “silêncio” — fala quem não recebe o dinheiro necessário para “segurar isso”. Talvez essa seja uma das explicações para o Palocci também, pois o PT foi totalmente homologado e roubou do mesmo modo e para fazer as mesmas coisas que os outros.

Contudo, a novidade parece estar mesmo no fato de que o Palocci parece ter decidido colaborar. Seria o segundo dirigente político do PT a fazê-lo. O primeiro foi o senador Delcídio do Amaral. Ao PT, sobram poucos recursos para desacreditar o Palocci. Duas argumentações estão sendo usadas: uma, pasmem, que tenta explorar a sua origem política trotskista e outra é a crítica da Lava Jato, que “torturaria” os presos para obrigá-los a colaborar. A primeira seria apenas desprezível, mas o marketing do PT nos mostrou uma rara eficácia em veicular qualquer coisa. A segunda é algo que tem mais a ver com o discurso dos advogados e é muito fraca: quando observamos as condições infernais de tratamento judiciário e prisional reservado aos pobres (inclusive nesses mais de treze anos de governo federal petista e nos governos estaduais do PT), esse garantismo da geometria variável aparece claramente pelo que é: mero cinismo.

IHU On-Line – Em termos políticos, o que significa o depoimento de Palocci à Lava Jato?

Não há nenhuma nuance, nenhuma diferença entre o governo Lula (liderado por Palocci e Henrique Meirelles), o governo Dilma (liderado por Mantega e Barbosa) e o governo Temer (liderado por… Henrique Meirelles): quem manda são sempre os mesmos interesses das grandes empresas e de seus lobistas

Giuseppe Cocco – Os significados políticos são muitos. Em geral, me parece avassalador para o PT e o “lulismo” em geral. Contudo, a candidatura do Lula para 2018 já se tornou definitivamente algo parecido a todas as outras, com dinâmicas de marketing totalmente independentes do debate político e de qualquer preocupação ético-política. Aqui, sim, temos uma diferença entre Palocci e Amaral. Ao passo que o senador era um operador parlamentar, Palocci foi a cabeça do primeiro governo Lula e da montagem da campanha eleitoral que elegeu Dilma em 2010, sem esquecer que ele é algo como um “sobrevivente” da geração de prefeitos que o PT tinha em São Paulo na segunda metade da década de 1990 (dois dos quais foram assassinados misteriosamente). Aliás, o tom de voz, o tipo de raciocínio que ele usou no Tribunal poderiam ter sido os mesmos que usava em uma conferência de imprensa quando era o todo-poderoso ministro da Fazenda de Lula, ou o ministro da Casa Civil de Dilma.

Palocci sabe — porque o construiu — perfeitamente qual foi o modo de funcionamento do governo e do PT. Quando ele fala de “pacto de sangue”, usando um termo que nos faz pensar nos filmes de Coppola sobre a máfia norte-americana, ele explicita as dimensões de uma coalizão de governo que não era entre partidos, mas entre o PT e grupos muito poderosos de grandes empresas e lobistas que aproveitaram o governo e a gestão do PT para amplificar ainda mais o nível de controle oligopolista e predatório do Estado. Naquela que deveria ter sido uma oposição de esquerda aos governos Lula e Dilma (e isso fora do PT e no próprio PT), diz-se que Palocci deveria ter sido criticado sempre, ainda quando era ministro, por ter sido o defensor e articulador das políticas neoliberais dentro do governo Lula. Ora, o que o depoimento confirma é que, ao contrário, não há nenhuma nuance, nenhuma diferença entre o governo Lula (liderado por Palocci e Henrique Meirelles), o governo Dilma (liderado por Mantega e Barbosa) e o governo Temer (liderado por… Henrique Meirelles): quem manda são sempre os mesmos interesses das grandes empresas e de seus lobistas — empreiteiras, montadoras, produtoras de commodities e os bancos.

Em junho de 2013, não era mais o dispositivo de assemblar fragmentos que funcionava, mas aquele do agenciamento de resistência das singularidades irredutíveis

O levante de junho de 2013 conseguiu, pela primeira vez, atacar o hard power, a estrutura fundamental do poder no Brasil, aqueles que mandam mesmo, independentemente de governos e coalizões. Os regimes e os governos passam, e esse hard power resta: reproduzindo-se e negociando seu (ab)uso do Estado: com a ditadura, a oligarquia baiana, os tucanos, o PMDB e o PT de Lula. Pior, com Lula e Dilma, a retórica neodesenvolvimentista, o marketing eleitoral e o tal do “pré-sal” permitiram uma renovação ampliada desse pacto predatório e neocolonial do qual vive esse tipo de capital parasitário que se nutre das veias abertas não apenas do Brasil, mas da América Latina e mesmo da África. A tragédia do Rio de Janeiro é emblemática disso.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a iniciativa do PT de dar início ao processo de expulsão de Palocci do partido?

Giuseppe Cocco – Me parece algo irônico, diante da ausência de qualquer tipo de autocrítica e mudança no PT. Isso se aproxima mais de um “acerto de contas”, algo que acaba reforçando a ideia de que há um pacto de sangue.

IHU On-Line – Como o depoimento dele impacta politicamente o PT e Lula?

Intelectuais como Francisco de Oliveira e Paulo Arantes tinham razão e anteciparam um apodrecimento que agora tem consequências nefastas não apenas para toda a esquerda, mas também para a própria ideia de esquerda

Giuseppe Cocco – Para discutir como impacta politicamente o PT precisamos saber do que estamos falando. Podemos dizer que há “3” PT: o “PT que manda”, a chamada “esquerda do PT” e a nebulosa das Frentes (Brasil Popular e Brasil sem Medo) que congrega esse fenômeno chamado também de “voto crítico”. O que eu chamo “o PT que manda” nos mostrou que tem donos e por isso é imutável. Nesse PT, os generais que perdem as batalhas são promovidos e são sempre os mesmos. A nova presidente nacional é a exata expressão dessa inexpressividade do “PT que manda”, onde tudo depende da figura carismática do Lula. O Partido que deveria ser instrumento de progresso é estruturalmente conservador, sem nenhuma democracia interna, sem nenhuma vida: mais um cadáver político, como o PMDB, o PSDB, o DEM. Esse é e sempre foi (desde que o PT virou uma realidade eleitoral nacional) o único PT: “O PT realmente existente”. Podemos então fazer uma crítica e uma autocrítica: não termos suficientemente levado em conta essa realidade. Pessoalmente, penso nas críticas justas que intelectuais como Francisco de Oliveira ou Paulo Arantes faziam desde o início da década de 2000, ou mesmo antes. Precisamos reconhecer que eles tinham razão e anteciparam um apodrecimento que agora tem consequências nefastas não apenas para toda a esquerda, mas também para a própria ideia de esquerda.

Em seguida, temos a tal de “esquerda do PT“: a paralisia da esquerda do PT é realmente um fenômeno interessante e inquietante. Ela poderia agora cobrar, dizer que a crise do partido e esse desastre foram antecipados por ela, lembrar a tentativa abortada de renovação que o Tarso Genro fez em 2005. Que nada! Pelo contrário, a esquerda do PT não emite (e não admite) nenhuma crítica e se tornou um disciplinado auxiliar dos “donos” do partido. Se o “PT realmente existente” é eticamente corrupto, a esquerda do PT se corrompeu politicamente. O que aconteceu?

Podemos avançar três hipóteses:

(1) Quando chegou a hora de voltar ao deserto, as tradicionais críticas foram “pra gaveta” e todo o mundo enfileirou em defesa do… emprego, do cargo, do espaço institucional etc. Isso é bem irônico: a DS continua chamando a nomenclatura dos intelectuais antiglobalização para defender Lula e Dilma, mas os caciques lulistas, logo que enxergam uma possibilidade, abandonam o barco com malas e cuias, como foi o caso do prefeito de Canoas [Jairo Jorge] (no RS, que foi para o PDT) ou aquele de Niterói [Rodrigo Neves] (no RJ, que foi para o PV).

(2) A esquerda do PT não tem mesmo nada a propor. Para além de genéricas críticas às reformas “de Temer”, a esquerda do PT não sabe que reformas propor. Pior, não sabem o que dizer sobre o desastre macro e microeconômico da Nova Matriz Econômica implementada por Dilma e Mantega, a não ser dar espaço retórico à doxa neokeynesiana dos velhos economistas da Unicamp ou de alguns jovens uspeanos.

(3) Enfim, se tornou explícito que a esquerda do PT estava totalmente refém daquela síndrome que, desde Esopo até La Fontaine, passando por Fedro, a sabedoria popular chama de “a mosca do coche”: a esquerda do PT era apenas a mosca no coche do Lula: sem ele, está perdida.

Talvez seja essa silenciosa realidade de sua própria inexpressividade que reproduz a inexplicável lealdade da esquerda do PT ao aparelho corrupto do “PT realmente existente”, assim como muitos faziam com o socialismo realmente existente. Aliás, tudo aparece claramente no apoio que o PT realmente existente e a esquerda do PT manifestam à ditadura do Maduro na Venezuela, se lixando totalmente pela fome imposta aos pobres venezuelanos por um regime autoritário e inepto (há sempre uma CIA da vida para explicar). Enfim, como sempre, deve ser um mix das três explicações.

Não é o lulismo remanescente que bloqueia a retomada das lutas, mas esse dispositivo frentista que torna a crítica impotente

Isso nos leva à terceira dimensão do “governismo“, a nebulosa das Frentes, oriundas do “voto crítico“. Essa nebulosa é paradoxal, pois junta posições que teoricamente deveriam ser opostas. Mas o paradoxo é apenas aparente. Nessa nebulosa — que nos era próxima, parte dela eram (ou são) amigos e amigas — se encontram aqueles que desde junho de 2013 insistem dizendo que o levante foi fascista (por exemplo, Tarso Genro ou Fernando Haddad) e aqueles que dizem que junho foi, sim, algo novo, mas sistematicamente fecham com o PT e o governismo… diante das ameaças “conservadoras” às “conquistas” dos governos petistas.

As duas posições são contraditórias, porém complementares. Uma complementariedade totalmente paradoxal que mostra que a nebulosa frentista é um movimento político natimorto. Aqueles que diziam que junho era fascista (Tarso) e que o MPL era terrorista (Haddad) nos mostram que, mesmo tendo mantido distância do cinismo lulista, perderam totalmente a capacidade de apreender os processos de produção da subjetividade, ou seja, das lutas e dos movimentos sociais. De tanto tempo que passaram nos palácios e nos ministérios, acabaram acreditando que o Brasil virou mesmo uma Suíça, onde seria muito estranho que uma indignação generalizada se manifeste pelo país.

Aqueles que reconhecem que junho era um movimento autêntico e ao mesmo tempo sistematicamente aderiram a todas as narrativas falsas do marketing governista (desde a campanha eleitoral criminosa de 2014 até a mentira do “golpe“) se colocam na posição de “querer explicar” à esquerda o que a subjetividade seria. Esses entendem que no Brasil a questão não é “por que manifestam?”, mas “por que não manifestam?” e ao mesmo tempo ficam com medo diante da radicalidade do protesto e precisam do cercadinho da “esquerda” para dar seus “conselhos”.

Assim, a Frente, que seja aquela do Brasil Popular e ou o Brasil Sem Medo, não tem e não vai ter dinâmica nenhuma: não porque é contraditória, mas porque o paradoxo que a constitui é na realidade um tremendo dispositivo de destruição política: a subjetividade que Tarso e Haddad não entendem é realmente destruída pelos que dizem que a entendem e a levaram (e continuam a levar) para o rebanho governista. Para construirmos algo novo, precisamos desconstruir esse dispositivo. Não é o lulismo remanescente que bloqueia a retomada das lutas, mas esse dispositivo frentista que torna a crítica impotente.

IHU On-Line – Como o senhor reagiu à carta de Palocci ao PT?

Giuseppe Cocco – A Carta do Palocci confirma que ele está abrindo uma outra fase política da relação do PT com a questão da corrupção, algo que me fez logo pensar o que aconteceu na Itália, quando as colaborações judiciárias (na esquerda armada) viraram também arrependimentos políticos. As cartas de “dissociação” que muitos intelectuais italianos assinaram desde as prisões são parte disso e foram ainda mais eficazes no desmonte – para o bem e para o mal – da esquerda radical daquela época. Palocci, pelo visto, decidiu fazer as duas coisas e mostrou que tem “bambus”, porque pode revelar os bastidores da escolha que Lula e o PT fizeram de usar a vitória política e eleitoral diante do escândalo do mensalão não para enfraquecer a política patrimonialista e predatória contra a qual o PT nasceu, mas para generalizá-la: não reindustrilizaram o país, mas a corrupção. Usaram o apoio que muita gente lhes deu em 2005 (eu em particular, com um manifesto pela radicalização democrática), se lixando totalmente para o que dizíamos do ponto de vista da democracia e do programa: a incompetência e o autoritarismo da Dilma foram a cara do “Lula realmente existente”. O apoio que muitos amigos e amigas que assinaram o manifesto que eu escrevi em 2005 (quando eu escrevia com Negri na Folha de São Paulo: “Lula é muitos”) continuaram a dar ao Lula e ao PT é, na melhor das hipóteses, “naïf” e transformou  o que era um erro de análise política (dizer que Lula era muitos foi errado, pois Lula trabalhava pelos poucos, os Eikes, os Temer, os Odebrecht e irmãos Batista) em cumplicidade política com a falência da esquerda (com consequências potencialmente nefastas, entre as quais a emergência eleitoral do fascismo).

IHU On-Line – Como entender a total falta de autocrítica do PT? E da esquerda?

O levante de junho permitiu ver como funciona hoje a sociedade de controle, entre poder e resistência

Giuseppe Cocco – O problema do PT não é o de não fazer autocrítica ou se seu marketing é cínico e falso, mas de funcionar. O mecanismo fundamental que o faz funcionar continua sendo o do voto crítico, dessa destruição da subjetividade produzida pelos “professores da diferença”. Quem destruiu (e destrói) a subjetividade foram e são eles. O PT não sabia fazer isso. Antes de junho, de maneira errada ou correta, podia-se dizer que o PT no governo permitia (ou não era um obstáculo) a produção de subjetividade da diferença: votar ou não no PT era relativamente indiferente às lutas (embora no Rio de Janeiro já desde a posse de Eduardo Paes em 2009 fosse claro que o PT era um agente fundamental de um projeto de destruição da potência dos pobres).

Depois de junho, ficou claro que o PT era inimigo dessa diferença e que a reeleição da Dilma era explícita e efetivamente uma derrota de todas as singularidades de luta que junho havia unificado. Os “professores da diferença” — uma parte por nunca ter tido uma real experiência de movimento, outros por transformar suas paranoias em análise política — aderiram ao processo de totalização autoritária turbinado pela grana do marketing do PT. Quem deu conteúdo a essa totalização desastrosa, aquela que se reuniu no TUCA para aplaudir a Dilma no segundo turno, e circulava nas ruas mistificada sob as tocas Ninja, do Fora do Eixo, foram os professores que se dizem da diferença e que, na hora “h”, esqueceram tudo que escreveram sobre Foucault, Deleuze, Guattari, Agamben e até o Comitê Invisível e se foram de volta ao cercadinho protetor da totalidade petista, uma totalidade miserável.

O levante de junho permitiu ver (e todo o ciclo que vem das primaveras árabes, mas que poderíamos fazer remontar até 1989, ao “occupy” Tiananmen) como funciona hoje a sociedade de controle, entre poder e resistência. O capitalismo e o controle hoje conseguem organizar a produção dentro da circulação, não mais unificando nas fábricas e outras instituições disciplinares o que foi “partido” (proletarizado), mas modulando continuamente os fragmentos: a precariedade do proletariado se mantém. Mesmo quando esse é mobilizado, ele vira um “precariado”. Diante disso, a esquerdamarxista e não (lacaniana por exemplo), desde Harvey até Zizek, passando por vários Boaventuras, depois do flerte com Habermas — ficou achando (desde os anos 1970) que tudo isso era um produto da ideologia da pós-modernidade, que era preciso defender o moderno e sua produção (dialética) de totalidades: o Estado contra a Globalização, a Classe Operária contra o Capital, a economia real contra as finanças fictícias.

O capitalismo contemporâneo funciona como um grande dispositivo de “assemblar” os fragmentos produzidos pelo jogo das novas e velhas totalizações: assemblages sempre efêmeras, just in time, e flexíveis, enxutas como a lean production

Mais de 40 anos depois e após a China Comunista ter virado a última megafábrica do mundo, temos algumas evidências: a pós-modernidade (e o neoliberalismo) não é uma ideologia, mas a condição material de um capitalismo que não precisa mais homogeneizar os fragmentos (os pobres, os precários, os migrantes, os índios, os “excluídos”) dentro da disciplina para organizar a produção. A sociedade de controle é organizada por modulações contínuas dos fragmentos: o proletariado passa a trabalhar sem perder sua precariedade, o pobre é mobilizado continuando a morar na favela, o índio é valorizado nas suas reservas, o excluído é incluído continuando a ser excluído.

O capitalismo contemporâneo funciona como um grande dispositivo de “assemblar” os fragmentos produzidos pelo jogo das novas e velhas totalizações: assemblages sempre efêmeras, just in time, e flexíveis, enxutas como a lean production. Isso não significa que o poder não produza mais totalidades. Pelo contrário, as antigas totalidades (“modernas”) continuam vigorando para produzir aquelas pós-industriais: assim, a permanência do “direito do trabalho” foi (e é) funcional ao não reconhecimento do trabalho que acontece fora dessa “totalidade”: é a permanência desse horizonte do direito do trabalho (sindicalismo pelego, sistema corporativo, proteção social excludente) que acaba destruindo as capacidades de luta dos novos sujeitos; a reforma trabalhista só vem para ratificar o que já aconteceu. Diante disso, a esquerda, na sua grandíssima maioria, ficou defendendo a construção de suas próprias totalidades: a Classe Operária (o esquerdismo), o Estado Neodesenvolvimentista (o pragmatismo). Esquerdismo e pragmatismo se encontram justamente sempre nisto: um querendo organizar como classe o que o outro quer organizar como trabalho mesmo: a mobilização operária que transforme os fragmentos em classe. Por isso são sempre as duas faces da mesma moeda.

Agora, esses 40 anos de implementação da globalização neoliberal foram também 40 anos de lutas e resistências em que os pobres, os índios, as mulheres, os negros, os homossexuais, os sem teto e os sem terra mostraram que a fragmentação é apenas a outra face, aquela das singularidades que, justamente, lutam e resistem enquanto tais, sem se deixar homologar nem como fragmento, nem como totalidade. Essas singularidades que resistem e às vezes chegam a constituir Zonas Autônomas em alguma floresta Lacandona ou numa Vila Autódromo, em uma Aldeia Maracanã ou num Norte Comum, querem e precisam virar de temporárias a permanentes, ou seja, produzir as instituições de sua singularidade, algo que nas redes de internet passou a ser chamado de Common (e foi injustamente apropriado por uma nostalgia generalizada pelo Comunismo e agora por algo como um neoleninismo).

Todas essas microrresistências, para conseguir enfrentar os dispositivos de controle, precisam mesmo se unificar e, nessa unificação, se perdem, viram “macro”: como se perdem sistematicamente no sindicalismo, como se perderam no PT, como se perdem no sem número de ONGs mercenárias produzidas pelo duplo mecanismo estatal e privado do mecenato social (a mais cínica das quais tem a ironia de definir como “fora” seu projeto de estar “dentro” do eixo do poder), ou no aparelho de movimentos identitários que só acontecem nos gabinetes dos palácios.

O milagre de junho de 2013 foi que essas microrresistências se juntaram e conseguiram enfrentar essas totalizações. Porque se juntaram contra as totalizações da representação que as microrresistências conseguiram enfrentar a fragmentação e constituir-se como singularidades

O poder homologa as microrresistências construindo-se como “plataforma” de funcionamento dos fragmentos. As microrresistências esbarram nessas plataformas, que podem ser o Uber ou a Copa da Fifa, o Airbnb ou as Olimpíadas, as Rede Sociais ou as ONGs proprietárias. O milagre de junho de 2013 foi que — por um momento que durou muito tempo — essas microrresistências se juntaram e conseguiram enfrentar essas totalizações. Foi porque se juntaram contra as totalizações da representação que as microrresistências conseguiram enfrentar a fragmentação e constituir-se como singularidades. O PT e a esquerda em geral — menos no Rio onde a cumplicidade com o esquema do Cabral e do Paes já era explícito e constrangedor — não eram visados, mas ainda assim se sentiram ameaçados pela clareza que tinham de ser aparelhos de totalização.

Em junho, não era mais o dispositivo de assemblar fragmentos que funcionava, mas aquele do agenciamento de resistência das singularidades irredutíveis. O que o governismo conseguiu fazer, a começar pela repressão do movimento contra a Copa e depois com a multiplicação das narrativas paranoicas (voto crítico, golpe e fora Temer), foi restaurar o processo de totalização, a construção do “povo de esquerda”: todos juntos contra a Marina e o Aécio (para na realidade eleger o Temer), todos juntos contra o Golpe (para na realidade manter o Temer!).

Foi isso que exaltou as dinâmicas de fragmentação e tornou as mobilizações incompreensíveis, a não ser por parte da nova direita: a restauração de junho foi mesmo o fato de que cada singularidade, cada microrresistência voltou a ser um fragmento em luta contra outro fragmento: todo mundo brigando com todo mundo.

As redes sociais, que tinham funcionado como incrível mecanismo de participação, passaram a rodar pelo avesso: o regime Fake do casal Santana e os linchamentos poluíram as dinâmicas do compartilhamento, e o empoderamento de um monte de gente sem nenhuma experiência real de luta alimentou a máquina paranoica de binarização, jogando no lixo as capacidades de luta. O “lugar de fala” virou o passe-partout, a pedra virtual de um sem número de linchamentos reais.

Aqui estamos!

Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova, mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne), doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes. Coordena a coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).

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