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A Constituição do Comum – Antagonismo, Produção de Subjetividade e Crise do Capitalismo

Resenha de Barbara Szaniecki

Neste semestre, junto com Talita Tibola, como disciplina na pós-graduação da Esdi/UERJ, propus aprofundar a relação entre design e política e, como tema mais específico, a possibilidade de estreitar as relações entre “commoning” e “buen vivir” por meio do design. Fizemos uma seleção de livros e propusemos pra turma de mestrandos e doutorandos. Inicialmente preocupada pelo fato dos conteúdos extrapolarem bastante o campo do design, fui surpreendida pela firmeza na leitura por parte da galera. Um das leituras mais desafiadoras até agora foi A CONSTITUIÇÃO DO COMUM de Alexandre Mendes e Bruno Cava Rodrigues. Sem tempo para fazer uma resenha séria, arrisco algumas linhas tortas…

A proposta tem tudo a ver com o momento atual. Já na introdução, o “comum” a ser constituído é inserido num contexto de lutas que remontam à insurreição Zapatista de 1994, atravessam os protestos por uma alterglobalização e chegam até o mais recente ciclo de 2010. Foi um ciclo ocupações de praças e parques: Praça Tahrir no Egito, Parque Gezi na Turquia, Puerta del Sol na Espanha, Occupy Wall Street nos EUA que se refletiram nas ruas multitudinárias de Junho de 2013 no Brasil. Cada um dos eventos é singular e, ao mesmo tempo, compartilha com os outros questões como um contexto de crise socioeconômica e, sobretudo, uma total incapacidade da representação política de dar contas das demandas. Na maioria dos casos, a política da multidão foi sufocada. No caso do Brasil, não foi diferente e a asfixia da insurgência serviu ao menos para indagar se a produção econômica e a constituição política do comum encontrariam espaço em governos que se aferram a um desenvolvimentismo articulado entre o Estado e o capital nacional.

É num cenário geral de crise, incluindo a ambiental, que a noção de comum volta a despertar interesse. Há consenso entre muitos autores sobre o papel do ensaio “Tragédia do Comum” de Garrett Hardin na percepção do “comum” como problema. Com efeito, nesse texto de 1968, Hardin indica a impossibilidade de se gerir os commons (ele foca nos bens e recursos, outros autores estendem os commons às relações sociais e a seus resultados) de forma sustentável. Não haveria alternativa viável à propriedade e gestão privada do capitalismo ou pública do socialismo. Sempre segundo Hardin, o commonism ou, em outros termos, a ética do compartilhamento, estaria fadada ao fracasso. Contudo, a proposta dos autores, Mendes e Cava, não caminha no sentido de mostrar sua sustentabilidade e sim de demonstrar que o comum foi continuamente afastado, evitado. Primeiro pela “arte de governar liberal” e, mais tarde, pela “arte de governar neoliberal”. A inspiração vem da leitura de Michel Foucault.

No primeiro momento, as práticas comuns desaparecem com a emergência de uma “sociedade civil” onde prevalece o homo oeconomicus. O conceito de sociedade civil aparece exatamente com a intenção de articular o privado e o público de modo a regular os interesses egoístas desse homem e, ao mesmo tempo, evitar o risco do comum. Num segundo momento, todas as formas de relação e cooperação social são convertidas em fonte de acumulação capitalista. Os autores mencionam então as últimas análises de Foucault sobre os processos de subjetivação quando se dá a passagem para as tecnologias de si e do comum. E afirmam, então, que “trata-se de perceber como as ‘lutas pela subjetividade’ passam a ser consideradas como centrais na atualidade, e possibilitam a constituição de sujeitos a partir de uma autonomia com relação aos dispositivos biopolíticos e disciplinares.”

Aqui, tivemos de fazer uma pausa na leitura. Todos percebem o quanto todas as nossas relações sociais são rapidamente apropriadas pelo capital – um exemplo é o facebook –, mas também como as lutas são capturadas e, de certa forma, “capitalizadas” por partidos ou governos. Ora, diante disso, que diferença faz afirmar, por exemplo, que a resistência é primeira com relação ao poder? Diante disso, que diferença faz afirmar que a resistência é criadora e não mera resposta ao poder?

O capítulo seguinte traz leituras marxistas da “tragédia do comum” vai mostrar o quão centrais se tornaram essas “lutas pela subjetividade”. Contudo, antes de mais nada, é preciso entender a atualidade do conceito de acumulação primitiva do capital numa perspectiva heterodoxa, isto é, entender que ao contrário do que o nome sugere, não se trata de um violenta expropriação inicial sucedida por uma lógica de exploração, e sim de uma violenta expropriação contínua. Para Rosa Luxemburgo, a continuidade da expropriação explica a necessidade do capitalismo de se expandir continuamente em direção a um mundo não-capitalista.

Se Luxemburgo se dedicou a uma teoria marxista do imperialismo, David Harvey se dedica à teoria critica do neoliberalismo e apresenta o que denomina de “acumulação por desapossamento”. Uma contribuição, com certeza, a um entendimento do entendimento da acumulação no capitalismo contemporâneo mas que, por outro lado, encontra seus limites quando sugere que “a acumulação por desapossamento é efeito da crise e não o centro de um antagonismo que produz a crise.” Ou seja, Harvey acompanha certas leituras marxistas que entendem que as lutas só surgem como conseqüência da crise e não como principal causa das transformações do capital, o que entendemos, a partir de Foucault, como primado da resistência sobre o poder. Também vacila diante da horizontalidade dos processos e do não cercamento dos recursos e relações.

Na sequencia, Mendes e Cava apresentam as análises do coletivo Midnight Notes que “reconhece a primazia das lutas no desenvolvimento do capitalismo e suas crises, contudo, assim como Harvey, não reconhece a centralidade da ‘produção biopolítica’ como especificidade da arte de governar neoliberal.” Nessa vibe, o coletivo traz uma contribuição importantíssima que é uma taxonomia dos commons assim como os modos de cercamento a cada um desses tipos, os enclosures do neoliberalismo, mas parece ficar preso a ela. Ou seja, a produção do comum é quase reduzida à produção de bens e recursos sem ser percebida como produção das subjetividades necessárias às lutas por esse comum. Lutas pela produção do comum contra sua expropriação econômica e lutas pela constituição do comum contra a captura política.

Os autores retornam então à leitura dos Grundisse (MARX, 1857 publicado em 1939) para explicitar a noção de “acumulação primitiva subjetiva e social do capital”. SUBJETIVA E SOCIAL. Mais de um século e meio depois, a visão do barbudo de uma “subsunção real da sociedade pelo capital” se concretiza. Ela se traduz em Foucault numa “biopolítica” entendida como o governo sobre todas as dimensões da vida e não apenas restrita ao âmbito do trabalho. Ora, o que fez Foucault em seus cursos sobre a biopolítica e o que fez Negri em Marx além Marx foi valorizar a capacidade de não apenas inverter as relações de poder como de inventar outras relações. A história do poder pôde então ser vista, SEM MEDO, pelo que ela realmente é, isto é, “uma continuidade de operações que o capital e o Estado colocam em ação contra uma contínua ruptura” (NEGRI, 1978).

O que é triste de ver hoje é essa incapacidade das subjetividades de promoverem rupturas, presas que estão às narrativas de um poder monstruoso que é o capitalismo de Estado, um Janus bifronte composto por neoliberalismo e neodesenvolvimentismo que faz com que o comum das lutas continue a ser tido como tragédia. É a “subsunção real da subjetividade pelo capitalismo de Estado”. Ora, voltando às perguntas que motivaram essas linhas: diante disso, que diferença faz afirmar que a resistência é primeira com relação ao poder? Diante disso, que diferença faz afirmar que a resistência é criadora e não mera resposta ao poder? A diferença é a resistência. Só isso. Tudo isso.

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