Foto de Marcelle Benedita
Por Renan Porto – publicado inicialmente em https://babilepton.wordpress.com/2018/04/06/para-lembrar-que-queremos-mais/
Quando fui para a primeira marcha da Marielle tive uma esperança que há muito tempo não sentia: a de que fazer política, pensar política, falar sobre política, fossem atividades novamente densas e carregadas do desejo de ultrapassar e enterrar a mediocridade que pesava sobre essas mesmas atividades; afirmar uma mudança real; pensar já a partir de um outro horizonte de possibilidades com outros problemas e outros conflitos que tocam mais diretamente a forma como o poder se exerce no seu limite sobre o corpo: a violência.
Aquela primeira marcha provocou uma ambiguidade nos debates posteriores sobre ela que me pareceu interessante. Isto me dava a perceber uma carga de virtualidades que vibravam entre nosso silêncio e o nosso grito. A vibração de um murmúrio do tempo, que queria dar a ver sua passagem, sussurrando que as coisas já não eram mais as mesmas. Há muito tempo não via manifestações em que não éramos posicionados de antemão, que já não pudéssemos sentir o cansaço de ter visto tudo e tudo nos soar como o peso de um passado morto, que não lembrava nada além de si mesmo. Não, o que me assombrava naquela noite era o peso de um passado vivo. Um passado que insistia em me apresentar o futuro como diferença. E esta diferença naquele dia nos foi apresentada como o terror.
Podíamos ser ambíguos em nossas conversas sobre o caráter de composição das ruas, as forças que se apresentavam ali, a ausência da polícia militar concomitante a ausência da violência, os rumos que tudo iria tomar, etc, mas uma coisa não cansava de pousar suas asas sobre nossa memória: o terror. E diante dele não pestanejávamos. Nós afirmamos a presença do terror e a política o apresentava agora de forma crua.
Mas foi justamente diante do terror que sentimos a força de não termos um rosto, de sermos muitos foda-se ao lado de quem fosse, mas contra o terror. Mais do que medo, sentimos que talvez agora realmente a ferida fosse tocada, que podíamos apertá-la contra si mesma até ela nos dar a sua cor mais podre.
Nada mais intolerável que a execução de uma mulher negra da favela, o apagamento de sua presença pública, a interrupção de sua ascensão, que era também a ascensão de outro povoamento da política, com a irrupção de outros corpos e racionalidades que jamais couberam na mediocridade de nossa democracia. E era justamente isso que sentimos naquela noite: nossa democracia sequelada. E que não cansa de ser sequelada, mas que insiste em ser mais do que uma forma de estado: ser uma forma de movimento que só se faz quando nossos corpos se movimentam. Era este movimento que a rede mafiosa que nos governa queria estancar.
Mas o quanto nos é intolerável agora tal acontecimento? Por um momento tomou nossa atenção a configuração das redes de circulação do tráfico, das milícias, das máfias e facções, das armas, das balas, do sangue negro que essas balas fazem jorrar e do seu rosto mais pudico: o Estado. Não demorou muito para que voltássemos a lamuriar o futuro como fracasso. E então o terror volta a nos submeter a sua lógica de pensar, sentir e sonhar. Que alguém tenha que nos salvar e que não sejamos capazes de nos salvar juntos uns aos outros. Que nossa esperança se limite a distribuir o terror longe de nós. Que ele fique lá onde jamais ameaçou a democracia: nas favelas, nas aldeias, nos quilombos, nas ribeiras, nos presídios. E para isso acatamos os possíveis que nos estão dados pelo círculo de horror que nos governa. Não outras e outras Marielles, mas a mediocridade do menos pior.