Por Plateforme d’Enquêtes Militantes
A primavera de 2018 foi aberta por um novo processo de mobilização social, potencialmente importante pelo número de setores envolvidos, pela posição ocupada por alguns deles na esfera da produção, pelas questões continentais suscitadas e por sua inscrição no contexto das relações de força europeias. No calor das primeiras manifestações massivas dos.as ferroviários.as, das dinâmicas de resistência sindical, da entrada de outros setores na luta e da ocupação de várias universidades em todo o país, gostaríamos de indicar algumas propostas de análise.
Conjuntura atual
Após a derrota do verão de 2016, a vontade de consolidar os nós de auto-organização em alguns espaços não chegou ao fim, mesmo considerando a insistência das centrais sindicais em apenas se limitar à estratégia centrada na defesa das garantias e direitos sociais subsistentes. A mobilização contra os decretos referentes à segunda Lei Trabalhista revelaram, de um lado, sua incerteza tática (por exemplo, perante as tentativas de apropriação política por parte de Mélenchon) e, de outro, dificuldades relacionadas ao conflito de rua experimentadas pela linha de frente das manifestações (onde a ritualização repetitiva parece ter tomado o lugar da eficácia, principalmente diante da reconfiguração do dispositivo repressivo).
Por conseguinte, o poder parece ter conquistado uma espécie de “carta branca”: posteriormente aos decretos, as agressões governamentais se multiplicaram sem qualquer constrangimento, sob a forma de uma verdadeira ofensiva geral. A Lei Trabalhista 1 (que significa aprofundamento da precarização do mundo do trabalho e ataques dirigidos contra os sindicatos e contra os salários) e a Lei Trabalhista 2 (desmantelamento dos direitos sociais e ataque contra o salário indireto) preparam o terreno para operações mais focalizadas que integram o mesmo pacote: diminuição do subsídio de aluguel (APL), redução drásticas nos contratos de trabalho subsidiados (onde o empregador recebe um estímulo financeiro que reduz o peso da contratação), fiscalização dos desempregados para que sejam mais “ativos” na busca de emprego, revisão administrativa das aposentadorias, reforma do modo de ingresso na universidade (estimulando a hierarquização e a seleção), nova legislação restritiva sobre o direito de asilo e amplo projeto de privatização do setor público.
Trata-se de um programa que deriva não apenas das aspirações de Macron com relação à liderança europeia, mas que responde ao mesmo tempo às expectativas neoliberais. Como a França está atrasada com relação à maioria de seus vizinhos europeus em termos de esfacelamento das conquistas sociais, desmontar um dos últimos resíduos do movimento operário tradicional e, portanto, do Estado Keynesiano, possibilitaria a Macron: 1) se promover como novo modelo político diante de seus aliados europeus; 2) acelerar, em seguida, a desestruturação geral, uma vez admitida a caducidade dos sindicatos nos setores outrora mais protegidos.
O combate iniciado por Macron contra os.as trabalhadores.as do transporte férreo poderia ser equiparado a um all in, lembrando os conflitos dos anos 1980 entre a administração Reagan e os pilotos de avião, ou entre Thatcher e os trabalhadores das minas. A luta referente ao estatuto jurídico dos condutores de trem e ao futuro da empresa pública que gere o sistema férreo (SNCF), constitui, nesse sentido, um ponto de virada com relação ao período que nos seguirá: o desfecho, seja ele qual for, levaria a uma mudança profunda nas relações de força em escala europeia – a derrota sendo determinante para o sucesso do projeto neoliberal; a vitória podendo abrir um novo ciclo de mobilizações.
Perspectivas de luta
O clima de efervescência social que perdurou de modo intermitente desde junho de 2016, contribuiu para a construção das condições materiais e organizacionais do movimento que há algumas semanas começa a se expressar. Elas, atualmente, conduzem à articulação de duas dinâmicas complementares: eficácia imediata da oposição ao governo e trabalho de construção, no médio prazo, de terrenos de autonomia, isto é, espaços para a experimentação de contra-instituições não soberanas e anticapitalistas.
A mobilização que se configurou soube enfrentar, nas últimas semanas, dois obstáculos: os ataques de milícias fascistas contra as ocupações, e os tipos de instrumentalização midiática e administrativa relacionadas à situação. A continuação do conflito por meio de sua auto-organização, permitiu ao movimento superar tais apropriações, produzindo uma inversão no conjunto de informações que é capaz de construir uma narrativa potencialmente hegemônica, especialmente através do recurso a imagens e a intervenções/falas anônimas. Trata-se aqui de uma ruptura salutar com a formação sistemática de líderes que foi observada nos movimentos precedentes.
A necessidade de agir na direção de uma proliferação e uma conexão dinâmica entre os diversos focos de luta – mais do que no sentido de uma abstrata “convergência” de todos os conflitos sociais – é atualmente evidente. Mas o desafio que as presentes manifestações enfrentam continua a ser ampliar cada um desses polos, articulando-os as suas necessidades específicas e a seus potenciais de proliferação. Elas passaram a confrontá-lo, ao que parece, pela prática ampliada e informal das pesquisas-intervenção – uma forma de copesquisa difusa que é encontrada nas recentes e permanentes conjunções entre estudantes, ferroviários.as, trabalhadores.as dos hospitais e da logística – e que estão sendo conduzidas, por exemplo, a partir da Comuna de Tolbiac (campus Sorbonne) ou nas assembleias gerais que se reúnem nas estações de trem.
É que a manifestação dos ferroviários – levando em conta o seu impacto econômico e suas repercussões gerais – desencadeia uma dinâmica que ultrapassa os limites corporativos, alimentando outros focos de lutas entre os.as trabalhadores.as ou nas universidades. O tecido que é assim composto nos lembra que as diversas medidas fazem parte de uma mesma governança, a saber: que não haverá destruição completa dos direitos sociais sem reforma meritocrática da educação nacional, nem flexibilização do mundo do trabalho sem uma certa gestão das fronteiras e, por conseguinte, da força de trabalho migrante. No espaço dos diferentes encontros que mencionamos, a prática da copesquisa confirma, em especial, uma potencialidade que deveríamos intensificar: a produção de um saber político apto a fortalecer a organização das lutas e sua coordenação horizontal. Os ferroviários, por exemplo, conhecem o funcionamento da rede, e sabem quando, onde e como atingir a malha para melhor bloquear ou desestabilizar todo o conjunto do transporte férreo. Uma saber prático poderia então ser forjado com condições de se transformar em uma fonte de iniciativas e de ações. Quanto às ocupações universitárias, elas já fornecem um apoio material às diferentes greves e operações de bloqueio, contribuindo assim para romper com a estratégia de isolamento dos.as trabalhadores.as conduzidas pelo governo.
Em direção a uma greve social
A combinação das dinâmicas mencionadas desenha para as próximas semanas um horizonte de socialização da greve: uma greve social que consiste em uma pluralidade de sujeitos em greve e uma multiplicidade de práticas de luta. Nesse contexto, a logística (ou seja, o setor de circulação e deslocamento de mercadorias e pessoas) parece determinante. Os ferroviários são certamente o alvo principal do governo, e a subjetividade em luta mais forte e mais organizada. Mas a logística não se limita apenas às linhas ferroviárias: ela se estende nas diversas ramificações das metrópoles produtivas, através das avenidas, das autoestradas que conectam umas às outras, os portos e aeroportos, os entrepostos de distribuição etc.
O devir social da greve pode, portanto, se expressar pela generalização da prática dos bloqueios, da amplificação das assembleias, da interrupção do fluxo do tráfego de pessoas e de mercadorias: em resumo, como uma greve logística da qual se trata ainda de encontrar uma vertente positiva, um conjunto de práticas afirmativas e imediatas de auto-organização que ela poderia aplicar nos moldes das ocupações universitárias.
Além disso, a crítica do ensino que emerge nas ocupações, bem como a participação nas lutas do precariado existente na universidade, demostraram que ela não é um santuário de um pretenso trabalho intelectual separado claramente do trabalho manual. A universidade já está, na verdade, imersa nas redes logísticas da metrópole – ainda mais intensamente nos casos dos campus situados nas periferias – e representa o lugar de formação dos sujeitos precários. As universidade ocupadas e autogeridas, polos de afirmação de subjetividades em ruptura, estão inclinadas, sob essa perspectiva, a se constituir como centros de acumulação de forças e pontos de partida de ações de bloqueio: lugares de concentração difusa da mobilização. A greve social se transformaria aqui em uma greve positiva, afirmação e autogestão da vida comum. A sabotagem à aplicação técnica da seleção (via plataforma Parcoursup), discutida nas assembleias de estudantes e de precários, se refere também à possibilidade concreta de passagem de uma simples oposição à reforma a uma prática-outra de universidade, aquela aberta e crítica: uma universidade do comum, para além do público e do privado.
Em suma, se os bloqueios e as ocupações constituem atualmente as fortalezas que estão sob risco de serem sitiadas, os.as trabalhadores.as passam a buscar o apoio dos ocupantes para melhor defendê-las. Trata-se, portanto, de fazer transbordar bloqueios e ocupações no interior das metrópoles e de suas redes, de sabotar todas as formas de seleção e estratificação em um mesmo movimento de afirmação.
Trad. Uninômade
Originalmente publicado em Plataforme d’Enquêtes Militantes – Disponível em: http://www.platenqmil.com/blog/2018/04/09/freed-from-desire–pour-un-printemps-de-greve-sociale
Versão em italiano disponível em: https://www.dinamopress.it/news/freed-from-desire-primavera-sciopero-sociale/