Por Bruno Cava, blogueiro e UniNômade, para o dossiê 50 anos do golpe (chamada aberta aqui)
Cinelândia, no Rio, 26/7/1979
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Não podemos jamais deixar que digam que a ditadura venceu. A ditadura perdeu. Foi derrotada, destituída, colocada de joelhos. E não perdeu por causa da conjuntura internacional. Não foram os choques do petróleo, nem as mudanças de panorama da guerra fria, nem qualquer movimento cíclico ou anticíclico da economia, que derrubou a ditadura. Ela tampouco caiu porque, desde o início, teria matado os filhos da classe média, incomodando os donos do capital. Ninguém morre de contradição e o capital não tem filhos. A ditadura poderia não ter acabado e poderia ter durado muito mais. Basta olhar nossos vizinhos.
A ditadura foi derrotada por causa da mobilização social. Foram as lutas na virada de 1970 para 80 que tornaram a ditadura politicamente insustentável. O dispositivo da crise foi apropriado e protagonizado segundo outra política: o PT, o MST, a CUT, o MNU, o movimento indigenista, participativista, sindicalista de novo tipo, movimentos estudantil, das mulheres e pela reforma urbana. Éder Sader, em seu Quando novos personagens entram em cena; experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-1980), é testemunha desse tempo de transformações na composição política das lutas no Brasil.
A derrota da ditadura foi também o naufrágio do nacional-desenvolvimentismo. O 2º PND, governado por E. Geisel, tinha reestruturado as bases da industrialização do país a partir de um estado planificador e centralizado. E conseguiu, ao término, dominar o inteiro ciclo do aço, da mineração à siderurgia, passando pela matriz energética. Contudo, ao contrário do que alguns dizem, o mais bem sucedido programa industrial do capitalismo de estado brasileiro não fracassou por causa do endividamento externo. Isso seria uma falsa explicação dentro de um regime capitalista. Neste, a dívida mede a confiança na capacidade de mobilizar o trabalho futuro e extrair fluxos de valor. Estar com débitos, em si mesmo, nada significa.
A ditadura faliu não porque tenha se endividado demais, o que nada quer dizer. Mas porque, com um pacto social desigual e autoritário, não conseguiu regular o trabalho na base do sistema produtivo. Falhou, assim, em responder às expectativas implacáveis do capital, que apostava num desenvolvimento além da métrica desenvolvimentista. A ditadura não conseguiu organizar o trabalho vivo. Não podia mesmo reorganizá-lo com base na lógica estatal e planificadora. Por isso, passou completamente ao largo das mutações que já relegavam o aço a segundo plano, diante da terceira revolução industrial e do ciclo do silício.
Nesse sentido, novamente, a ditadura foi derrotada. Ela não só faliu, como foi falida, diante de uma mobilização produtiva, em nível global, que solapava a própria lógica de valorização adotada pelo nacional-desenvolvimentismo, atrasado em tudo. A intensa mobilização social, o sindicalismo de tipo novo e a uma forte crítica à cultura estatista — na figura do socialismo real ou da raiz pecebista do marxismo brasileiro, — tudo isso convergiu para inaugurar no Brasil outro modelo abrangente de sociedade. O que o filósofo Marcos Nobre, em Imobilismo em movimento, chama de social-desenvolvimentismo, que vai culminar nas conquistas de direitos sociais dos últimos 15 anos. Os marcos desta opção político-econômica estavam presentes, em estado embrionário, na franja de inovação democrática dos movimentos da virada dos 1970 para os 80. A derrota qualitativa da ditadura, igualmente, pode ser explicada pela formulação coletiva doutra forma de mobilização e regulação do trabalho, além das insuficiências do nacional-desenvolvimentismo.
A derrota da ditadura forçou os donos do capital a continuar a dominação de classe noutros termos. Foi preciso frear as energias de transformação, amortecer o levante do trabalho, reestruturar os mecanismos de controle. É aí que nasce a “democracia racionada” (Lincoln Secco) ou a “república pemedebista” (Marcos Nobre): uma estrutura de classe que passa a exercer a violência mediada pela democracia formal, seu modelo jurídico-normativo, seu sistema político obcecadamente avesso ao dissenso, pronto para declarar tabu sobre qualquer questão estrutural — reforma agrária, reforma urbana, racismo, aborto, drogas, tributação.
Não é que, com a redemocratização pós-1985, vivamos uma aparência de democracia encobrindo a perseverança da ditadura. Mas, sim, que continuamos a viver a própria ditadura, agora entranhada na democracia representativa, uma ditadura molecularizada, convertida em princípio interno de reprodução das relações sociais desiguais, nos mais diferentes níveis (renda, origem, racial, gênero, sexualidade), por dentro da democracia representativa.
A ditadura perdeu, sim, isto é preciso dizer sempre. Mas no instante seguinte de sua derrota, passou a labutar para que a vitória das lutas se convertesse em vitória de Pirro. A maior artimanha da ditadura hoje é convencer-nos de seu próprio passado, enquanto continua a gerar efeitos no presente sem que possamos sequer nomeá-la. A maior artimanha da ditadura é colocar-se como o outro de nossa democracia limitada, até o ponto de ser invocada para sustentar os regimes de verdade de quem era e nunca deixou de ser a própria ditadura.
A Rede Globo, por exemplo, para quem liberdade de expressão é continuar veiculando a verdade da ditadura, que é a verdade do inquérito, a verdade arrancada de corpos baleados, eletrocutados, lacerados e sumidos — dos subversivos de outrora, dos Amarildos, Cláudias e Douglas de hoje. Liberdade de imprensa, na boca da Globo, é o mesmo que liberdade de torturar, matar e sumir com os corpos. A tortura é repetida diariamente nos jornais e telejornais, na fórmula ultracondensada dos fatos e notícias.
A memória viva da ditadura continua em disputa. De um lado, a verdade do poder, que é a guerra como violência organizada de classe contra pobres, negros, mulheres, manifestantes. De outro lado, a verdade gerada pela luta, o poder de constituir seu próprio destino apesar da estrutura desigual da sociedade brasileira. Tudo continua em disputa e a Comissão da Verdade não está mexendo num vespeiro por acaso.
Hoje, 50 anos depois do golpe, é preciso continuar afirmando as vitórias da mobilização social, mesmo diante de tantas derrotas anunciadas no noticiário. A luta não pode ser melancólica. Não temos o direito de apagar as histórias de alegria, criação e vida de luta dos que nos precederam. A vergonha diante das vítimas — diante delas e não por elas, quem tem de se envergonhar por elas é a própria ditadura, seus torturadores, chefetes, apoiadores e meninos de recado — nos impõe uma ética pertinaz e dissensual, um imediato agir político contra todas as formas pemedebistas e figuras da pacificação.
A mobilização social e produtiva continua atenta e forte, como se pode ver nos rolezinhos, no levante de 2013, nas muitas culturas afirmativas de resistência que se espraiam pelas cidades. A ditadura hoje se vê constrangida a conviver com os primeiros brotos do social-desenvolvimentismo. Não pode sair do armário com tanto despudor e desenvoltura, como em 1964. Precisa invocar a pacificação, precisa amalgamar-se com modelos de inclusão social, com o lulismo e com o PT, que com ela se relaciona cada vez mais organicamente, em nome da estratégia.
Mas as soluções arbitrais que definem o pacto classista hoje estão sob contestação em múltiplos frontes, tirando a tranquilidade de gabinetes e palacetes. A ditadura está novamente ameaçada. Está com medo, e com medo perde as estribeiras revelando-se em suas ramificações empresariais, financeiras, televisivas, jornalísticas, acadêmicas. Então é isso, a tarefa se repõe. Temos de derrotá-la de novo. Quantas vezes for preciso, vamos derrotá-la.
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Bruno Cava é graduado e mestre em direito pela UERJ, escreve no quadradodosloucos.com.br e outros sites, autor de A multidão foi ao deserto (2013, AnnaBlume).