Por Nick Srnicek, no Disorder of things, em 3/10/14 | Trad. Aukai Leisner
A esquerda se considera incapaz de pensar adequadamente a economia. Isso é um grande erro. Nick, da London School of Economics e coautor do Manifesto aceleracionista, explica por que e apresenta um pequeno painel das alternativas.
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Com a maior crise econômica desde a Grande Depressão lentamente se desdobrando, uma das consequências mais surpreendentes foi um não-evento: a escassez de teorizações de alta qualidade em grupos de esquerda. Isso apesar da oportunidade que a crise abre para economias alternativas, e apesar do dilema econômico em que se encontram os países desenvolvidos: endividados demais para o estímulo e enfraquecidos demais para políticas de austeridade. Esta distância entre austeridade e estímulo aponta para a insuficiência de um e outro e, no entanto, poucos começaram a pensar seriamente a necessidade de alternativas adequadas.
A resposta da esquerda à crise econômica tem sido, ao contrário, focar, na maior parte das vezes, em reações fragmentadas contra as políticas governamentais. O movimento estudantil veio como uma resposta à cobrança de mensalidade e mudanças na política governamental de subsídios a estudantes de baixa renda; o movimento pelo direito de manifestação veio como uma resposta ao tratamento truculento da polícia; e os partidos de esquerda sugeriram apenas uma versão mais moderada das políticas existentes do governo. O projeto de construir um sistema econômico completamente diferente foi contornado, em favor de protestos de menor escala. Há uma crítica generalizada, mas pouca construção.
É forçoso reconhecer, no entanto, que a esquerda não está totalmente órfã de teorizações econômicas de alto nível. Na verdade, o problema mais específico é que os poucos fazendo tal trabalho são uma pequena minoria e geralmente estão marginalizados dentro da cena da esquerda. A atenção e o esforço dos principais intelectuais da esquerda (pelo menos no Reino Unido) são dispensados a questões sociais, raciais, de direitos, e identitárias. Todas importantes, sem dúvida, mas não há atenção equivalente devotada a questões econômicas.
A atual literatura acadêmica de esquerda sobre a economia é um pouco melhor. Seguindo Alex Andrews, esse corpo de trabalho pode ser resumidamente separado em três tendências gerais:
1. Marxistas – Tendem a operar de modo crítico. Fornecem a melhor análise das condições do capitalismo no campo da esquerda. Mas quando se trata de discutir a potencial economia e organização de uma sociedade pós-capitalista, a análise é bastante débil. Isso se deve em parte ao fato de que a economia foi historicamente associada com um economicismo vulgar (coisa que o marxismo não é), vinculado ao estalinismo. E tem a ver em parte, é claro, com a ideia que a democracia do movimento dos trabalhadores gestaria por si uma economia pós-capitalista.
2. Realistas críticos – A escola “pós-autista”, Tony Lawson e o grupo da ontologia social de Cambridge fazem uma crítica forte à economia neoclássica; mas, sejamos honestos, isso é igual a pescar em balde. Ao contrário da economia convencional que nunca fala de metodologia, eles só falam de metodologia.
3. Keynesianos – Não têm uma análise de classe, uma perspectiva política ampla, nenhuma compreensão de por que o keynesianismo falhou politicamente, ou de como é, na verdade, o outro lado da atual crise.
Como observou Alex Andrews, nenhuma das abordagens é por si suficiente. No entanto, ainda mais preocupante, eu estive presente em alguns eventos onde se dizia que a esquerda não precisava se ocupar com tais questões agora. Ao contrário, argumenta-se que tudo de que precisamos é fazer a revolução (como se as revoluções fossem uma ruptura clara com o passado, em vez de uma complexa mistura de diversas forças sociais). A pressuposição implícita nessa resposta é que uma vez que seja aberta à esquerda a possibilidade de criar uma nova sociedade, as respostas surgirão de maneira espontânea. Talvez o processo de tomada de decisões consensuais – contra toda evidência – traga uma resposta sofisticada!
Mas o risco de depender de tal “poder popular” irrefletido está em que, quando a oportunidade se apresenta para efetivar a mudança, os atores envolvidos retornam à ideais habituais simplesmente porque não conseguem imaginar uma alternativa. Essa é uma crise de imaginação, mas também – e mais significativamente – de limites cognitivos.
Pouquíssimos se deram ao trabalho de elaborar um sistema econômico alternativo. E, como resultado, permanecemos mergulhados no realismo capitalista – incapazes de pensar além das coordenadas socioeconômicas estabelecidas pela onipresente imaginação capitalista. Slavoj Zizek tem sido uma exceção popular neste sentido, ao defender consistentemente a necessidade de se pensar ” o dia depois de amanhã”. No entanto, poucos parecem ter atendido a seu chamado, e ele próprio parece tê-lo ignorado.
Dando as costas à economia
Há três principais razões para a negligência com a economia nos círculos contemporâneos da esquerda. Em primeiro lugar, há a contínua adesão a uma forma de política popular – evitar o pensamento sistêmico e abstrato, em favor de formas de ação imediatas e que fazem uso do corpo. Ser ferido por um policial num protesto torna-se um símbolo de sucesso, ao mesmo tempo que desloca o confronto de estruturas incorpóreas para indivíduos concretos. No entanto, o sistemas que determinam os desdobramentos econômicos são complexos e abstratos, tornando-os distantes da experiência cotidiana. Nós experimentamos os seus desdobramentos, mas somente com um recuo significativo. É muito mais intuitivo para os indivíduos protestar e ocupar lugares, do que traçar cadeias de causalidade e desvelar espaços mais abstratos de disputa (por exemplo, exigência de capital de reserva dos bancos). No entanto, os últimos são mais efetivos no longo prazo, embora bem menos entusiasmantes. (Isso levou alguns a enunciar um trilema para os protestos entre: agir com efetividade, agir sem riscos, e agir com emoção).
Outra parte da explicação para a carência de análise econômica tem que apontar para a guinada dos anos 1980 nas cenas teóricas e ativistas. Em vez de continuar a ler Saffra, Hilferding, Baran e Sweezy, uma geração de estudantes cresceu com foco maior nas questões de políticas identitárias e da crítica pós-estruturalista da subjetividade e do desejo. Não se trata de diminuir as conquistas dos estudos culturais, mas simplesmente apontar que a área se tornou o caminho dominante para a maioria dos estudantes durante este período. Aqueles com uma forte sensibilidade de esquerda estavam envolvidos nesse meio, e os custos de oportunidade decidiram que isso se daria em detrimento do ensino de economia. Este fato conduz à terceira, e mais importante, explicação. Embora muitos estudantes tenham crescido em uma era dominada pelos estudos culturais, poderíamos ainda esperar que a recente crise trouxesse uma mudança significativa nos círculos da esquerda. Seria de se esperar uma onda massiva de militantes de esquerda subitamente interessados em economia e no trabalho de erudição que o tema requer. Contudo, na maior parte das vezes, essa mudança ainda não veio. Me parece que, como resultado do ensino de estudos culturais, grande parcela da esquerda se considera incapaz de pensar adequadamente a economia.
Podemos fazer demandar genéricas sobre cortes e austeridade, mas peça a um militante de esquerda para analisar as consequências de uma mudança nas garantias dos bancos da Eurozona e a maioria ficará perdida. Assim, a terceira grande explicação para a escassez de reflexões econômicas nos círculos de esquerda é que não temos a base teórica adequada para confrontar as nuances e sutilezas da economia moderna. Isso é, para dizê-lo de maneira simples, um grave erro. Ademais, um que não pode ser resolvido da noite para o dia.
Assim, há um enorme buraco no interior da esquerda contemporânea, apesar de haver também espaço para colaboração. São bolsões de trabalhos interessantes sendo desenvolvidos. Da teoria monetária moderna (MMT) à economia de complexidades à economia ecológica à Participatory economics, juntamente com antropólogos como David Graeber, e jornalistas econômicos como Doug Henwood e Paul Mason, trajetórias de pensamento inovador ainda estão sendo lançadas.
Teoria monetária moderna
Entre as versões mais moderadas da economia de esquerda, a teoria monetária moderna propõe uma via para conduzir o capitalismo para tanto a estabilidade de preço (a meta padrão dos monetaristas) quanto o pleno emprego (a meta clássica dos keynesianos). O capitalismo keynesiano finalmente tropeçou nos anos 70, quando confrontado com o problema duplo da inflação e desemprego crescentes. As prescrições padrão para resolver esses problemas estavam em contradição, deixando paralisados os keynesianos. Surgiram então os monetaristas, que se ocuparam da estabilização do preço – uma política que, desde então, tem sido o objetivo norteador dos bancos centrais. A meta do pleno emprego ou foi abandonada, ou redefinida para simplesmente o que é “natural” para um regime de preços estável (normalmente 4-6% de desemprego).
A Teoria monetária moderna (TMM) começa sua propostas por uma visão alternativa da natureza do dinheiro. O dinheiro, segundo esta teoria, não deriva sua legitimidade nem do fato de ser impresso pelo governo (a visão do dinheiro como decreto), nem de ter seus lastro em alhuma espécie de material (a visão do padrão-ouro). Em vez disso, o dinheiro tem valor porque é aceito pelo estado como pagamento de impostos (uma leitura fundada em Adam Smith, John Maynard Keynes, Hyman Minksy, entre outros).
A isso, é combinada uma descrição de como os gastos governamentais funcionam em economias modernas. Contrariamente à metáforas populares da política a respeito dos gastos governamentais serem análogas a gastos com habitação, os dois são imensamente diferentes – pela razão dupla de que os governos podem criar dinheiro e também pode impor obrigações tributárias à sociedade. A metáfora do cartão de crédito dos gastos governamentais é, portanto, uma representação completamente falsa de como os bancos centrais e o dinheiro moderno funcionam.
Em primeiro lugar, o governo financia as suas ações não através de vendas de títulos ou impostos de renda, mas pela criação de dinheiro. A visão tradicional que vê o governo como tendo que levantar dinheiro por meio de impostos e títulos é exatamente o oposto do que acontece. O governo não tem necessidade de levantar dinheiro; ele simplesmente o cria. Quando se combina esse fator à cobrança de impostos, a demanda de dinheiro gerada pelo governo cresce. Então, ao invés do dinheiro vir da sociedade ao governo e então ser gasto, a verdadeira operação do moderno sistema monetário é o governo criando/gastando dinheiro (o processo é simultâneo) que é destinado à sociedade, que é então parcialmente retornado na forma de impostos. Este fato, como os defensores da TMM constantemente alertam, é simplesmente a descrição de como funciona o moderno sistema monetário.
As soluções de políticas que surgem a partir desses insights são bastante chocantes para nossa era, obcecada pela austeridade. Contrastando com a atual ortodoxia “senso-comum”, a TMM argumenta que as dívidas do governo são uma coisa natural, e são na verdade necessárias para o funcionamento azeitado da economia moderna. Um orçamento balanceado é, na verdade, uma meta deflacionária que leva as economias à estagnação.
Ao invés de manter a estabilidade dos preços pela desaceleração ativa das economias e criando desempregos no processo, Randal Wray defende que o oposto é verdadeiro: a estabilidade de preços pode e deve derivar de políticas de pleno emprego. O governo, escreve ele em seu livro de 1988 Understanding modern economy, deveria agir como o “empregador em última instância”, capaz e disposto a contratar qualquer um que queira trabalhar por um salário mínimo estabelecido. Isso não apenas garante emprego a qualquer um que o deseje, mas também estabelece um estabilizador de preços semelhante ao padrão-ouro, gerando assim estabilidade nos preços. Numa era de austeridade, portanto, as várias versões da TMM defendem maior endividamento do governo e um maior número de trabalhadores no setor público como solução para a crise econômica atual.
Economia participativa
Outras alternativas foram ainda mais longe em sua tentativa de repensar a economia. Parecon (abreviatura de “Economia participativa”, em inglês) é talvez a mais famosa e a mais bem formulada alternativa desse gênero. Em oposição às economias de planejamento centralizado do século 20, a Parecon propõe uma economia não-capitalista centrada na auto-organização do trabalhador e do consumidor.
O vislumbrar de uma economia alternativa é estabelecido sobre a retirada da propriedade dos meios de produção da sociedade e a partir da criação de conselhos de trabalhadores e consumidores funcionando em várias escalas (de organização de bairros até as de nível nacional). Estes conselhos de trabalhadores decidiriam democraticamente sobre o que produzir, como produzir, quais as condições de trabalho, e assim por diante. De maneira similar, conselhos de consumidores fariam decisões democráticas quanto ao que comprar – parques e equipamentos de playground para o bairro, infraestrutura básica para cidades e regiões etc. Com a propriedade privada excluída, a alocação de recursos de uma tal sociedade seria determinada não por lucros individuais, mas por e para coletividades em todos os níveis.
Os empregos, neste sistema, seriam substituídos por complexos de empregos, em que indivíduos assumiriam papéis de trabalho diversos ao longo de uma semana de trabalho. Esses complexos de trabalho tentariam compensar as várias dificuldades e recompensas de funções específicas, de modo que todos contribuiriam com uma parcela relativamente igual no esforço demandado. Como resultado, a recompensa pelo esforço individual – a maneira mais igualitária de remunerar os indivíduos – seria virtualmente igual através da sociedade, assegurando assim igualdade de oportunidades. Indivíduos que nasceram em famílias mais abastadas não se dariam inevitavelmente melhor, nem aqueles mais afortunados na loteria genética.
Em oposição à TMM, a Parecon fornece uma abordagem mais compreensiva para a economia e uma ênfase na autorregulamentação democrática em todos os níveis da sociedade. A TMM, por outro lado, aponta para soluções técnicas para o desemprego e a estabilidade de preços, o que coaduna bem com os valores da esquerda. Ambas as teorias apresentam alternativas sérias à ordem existente.
O problema com essas tentativas existentes de pensar alternativas não é, portanto, que elas não tenham ido longe o suficiente. Ao contrário, o problema é que elas permanecem separadas e independentes umas das outras. O esforço de grupos como o TMM de repensar o potencial dos bancos centrais, o projeto da economia da complexidade de entender porque ocorrem as crises financeiras, juntamente com as ideias econômicas de matriz anarquista e socialista e seus insights sobre a razão de ser da economia, deveriam estar combinados numa grande discussão na esquerda. Isso, me parece, só será possível se a esquerda em geral for mais informada sobre questões econômicas e parar de ceder esse terreno aos acadêmicos do realismo capitalista.
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OBSERVAÇÃO
1. Devo esclarecer desde o início que a esquerda aqui referida exclui o amplo grupo keynesiano que vai de Paul Krugman, a Christina Romer a Matthew Yglesias. Enquanto são considerados de esquerda nos EUA, tais pensadores seriam melhor definidos como situados no centro moderado. O termo esquerda aqui, ao contrário, faz referência a um grupo majoritariamente não-keynesiano – normalmente com tendências marxistas, mas mais amplamente interessados no pós-capitalismo.
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Nick Srnicek é doutorando em relações internacionais na London School of Economics. É também autor de vários livros, entre eles The speculative turn, em coautoria com Alex Williams, com quem também publicou o Manifesto aceleracionista [traduzido pela UniNômade].
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Resumo
Neste breve artigo, cujo esboço aparece em seu blogue, Nick Srnicek apresenta o grave panorama da escassez de reflexões econômicas no campo da esquerda contemporânea. Após apontar o problema e traçar sua raízes históricas e seus desdobramentos presentes, o autor traça um resumo das principais correntes que pensam alternativas à economia neoliberal, desde grupos que defendem o endividamento estatal como regulador de preços e estabilizador da economia até aqueles com projetos pós-capitalistas radicais, apregoando a dissolução da propriedade privada dos meios de produção e a criação de cooperativas de produtores e consumidores. Por fim, o autor conclui que as questões econômicas deveriam ter maior prioridade na agenda da esquerda, e que as alternativas propostas deveriam combinar-se para enriquecer esse debate tão negligenciado quanto urgente.