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A multidão brasileira e os limites do lulismo

Por Silvio Pedrosa, em O lado esquerdo do possível

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As jornadas de junho: uma hipótese

As últimas duas semanas sacudiram o Brasil: ruas, praças e avenidas – o espaço público, por excelência – foram tomadas por multidões que, em ondas crescentes, se pluralizaram de tal forma a não mais possuir uma pauta definida ou mesmo identificável. Se durante a primeira semana, o Movimento Passe Livre conseguiu manter uma pauta clara e objetiva (a revogação dos aumentos das passagens dos serviços de transporte público em São Paulo em primeiro plano; e, como pano de fundo, a proposição do passe livre como deslocamento da agenda política relativa ao tema à esquerda), na segunda semana, a descabida e absurda repressão policial que a PM paulista, sobretudo, realizou, levou multidões cada vez maiores a tomar centros urbanos por todo o Brasil.

À emergência dessas massas, houve dois momentos de reação das esquerdas (tanto as partidárias, quanto as não-partidárias): primeiramente, como alguém que vê um sonho se realizar, o deslumbramento e o entusiasmo ativo em relação às centenas de milhares de pessoas que invadiam as ruas — finalmente chegara o ‘grande dia’, quando a esquerda poderia surfar na onda progressista da multidão e impor sua própria agenda política ao país, à revelia da correlação sócio-institucional de forças. Num segundo momento, entretanto, o rosto daquela multidão se desfigurou, as cores de suas bandeiras, antes vermelhas, ganharam tonalidades verdes e amarelas e grassou a rejeição pelos partidos — mormente os de esquerda, únicos à vista e ao alcance dos manifestantes –, as pautas antes claras e inequivocamente ‘de esquerda’ metamorfoseando-se em um mosaico de desejos e vontades (nem sempre ao gosto daqueles que sempre estiveram na rua, mesmo quando o ‘gigante’ sequer sabia que dormia).

O sentimento era (e ainda é) de perplexidade diante de uma emergência simplesmente miraculosa, sem qualquer previsão por perto de nenhum dos atores até então engajados na luta política. Diante de tal hesitação, este blog arriscará uma hipótese sobre as duas últimas semanas no Brasil, semanas que aceleraram nosso tempo histórico, entre o pânico e a esperança: a multidão que saiu às ruas não está insatisfeita com a situação do país dos últimos 10 anos (como é o diagnóstico-desejo da oposição partidária e midiática). Está insatisfeita com o país tout court, ou seja, em todos os seus quase dois séculos de existência. O que os manifestantes que vão às ruas desejam é, a um só tempo, mais e menos lulismo.

O que é o lulismo?

Por lulismo se convencionou designar, nos últimos anos, o conjunto dos fenômenos que conjugados caracterizam a economia política promovida pelo Partido dos Trabalhadores ao longo da década em que esteve à frente do governo federal. Segundo seu maior teórico, André Singer, o lulismo seria uma pactuação conservadora — destinada a minar a resistência do eleitorado mais pobre, menos inclinada a apoiar programas de transformação social de cariz mais radical e acelerado — cujo objetivo seria promover um reformismo fraco, gradual, na sociedade brasileira.

Tal economia política caracterizou-se pela manutenção do enquadramento neoliberal da política econômica levada a cabo por FHC (juros altos, superávits primários sucessivos e câmbio flutuante) e, ao mesmo tempo, pela promoção de inflexões à esquerda: política de valorização real do salário mínimo, instituição de programas de transferência de renda (cujo caso mais bem sucedido é o Bolsa Família), uma política cultural gerida a partir de perspectivas inovadoras, a democratização via cotas raciais e sociais, bem como por programas de bolsas de estudos, do acesso ao ensino superior, oferta de crédito para setores mais pobres da população através de mecanismos como o crédito consignado, entre outras.

Os resultados eleitorais, sociais e econômicos são bem conhecidos. Em 2010, Lula foi capaz de eleger uma sucessora desconhecida do eleitorado brasileiro — sua então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. E os indicadores do país em termos de criação de empregos formais (19,5 milhões somados os governos Lula e Dilma), redução da pobreza extrema e mesmo da desigualdade de renda fizeram a década do PT no poder ser denominada pelo IPEA como a década inclusiva, a desigualdade, segundo o índice de Gini, recuando para o mais baixo patamar histórico desde as primeiras estatísticas disponíveis (da década de 1960).

Dilma e os limites da governabilidade lulista

Os resultados apresentados acima, entretanto, não vieram a um preço politicamente baixo: a pactuação conservadora exigiu — além do próprio rebaixamento do programa histórico do PT, bem menos moderado — inúmeras concessões e o termo ‘governabilidade’ virou lugar comum no discurso de petistas dos mais diversos matizes. Era necessário que demandas e bandeiras históricas da esquerda brasileira fossem engavetadas temporariamente ou mesmo negligenciadas abertamente para que o pacto de classes não fosse ameaçado.

Enquanto o governo Lula conseguiu arbitrar soluções criativas para os impasses da coalizão bastante heterogênea de governo (em cujas fileiras se podem encontrar da FIESP ao MST e de organizações feministas e LGBTTs a líderes evangélicos conservadores) — a despeito de realizar avanços sempre dentro de limites bastante estritos –, em parte graças ao período de bonança econômica, em parte por uma gestão política mais eficiente, o governo Dilma (cuja base parlamentar é ainda maior) se mostrou incapaz de inventar novas possibilidades para a luta política nos limites da institucionalidade — sua ‘coalizão baleia’, nas palavras de Wanderley Guilherme dos Santos, só foi capaz de ‘parir sardinhas’. Limitando-se a gerir um limiar mínimo de diferenciação ante a oposição neoliberal, no governo Dilma se assistiu a retrocessos como a cessão da presidência da CDHM da Câmara dos Deputados a um pastor evangélico racista e homofóbico, a ampliação das alianças à direita (como a nomeação de Afif Domingos para a Secretaria da Micro e Pequena Empresa — cargo que ele divide com o de vice-governador de São Paulo em chapa com… Geraldo Alckmin, do PSDB!) — e o convite para nomear para a Secretaria de Educação Básica do MEC uma ex-ministra de FHC, notória neoliberal, entre outras coisas (para um texto mais detalhado sobre o desastre da governabilidade durante o mandato de Dilma conferir outro texto do blog). Tudo isso sem que se assistisse a inflexões à esquerda — salvo por medidas burocráticas importantes, sem maior apelo (mesmo a redução dos juros a patamares históricos se revelou insustentável nos últimos meses)– , que permitissem equilibrar e apaziguar o interior da coalizão.

Num arco mais longo, o fisiologismo da política brasileira, muito bem instalado no chamado ‘presidencialismo de coalizão’, permaneceu intacto, o quê somado aos frequentes casos de corrupção — devidamente amplificados pela mídia oligopólica — desgastou ainda mais o sistema representativo. Os acordos de gabinetes pareciam não mais se importar com a opinião pública (a eleição para a presidência do Senado, mesmo com a pressão contra Renan Calheiros, seguiu o seu curso placidamente). Até que a multidão se levantou, demandando mais.

A composição social e os desejos da multidão

A multidão brasileira que emergiu nas ruas nas duas últimas semanas em ondas tão diversas quanto arrebatadoras pode ser ilustrada como uma boneca russa, em cujo interior encontramos novas bonecas menores. À primeira onda da multidão, cuja pauta era mais definida e, supostamente, mais progressista, seguiu-se uma onda que se incorporou àquela, com pauta mais difusa e plural e, para alguns setores da esquerda (até o presente momento) assustadoramente udenista e nacionalista, sendo capitaneada nas redes e nas ruas por militantes e organizações de direita e até fascistas. Mas quem, de fato, integra essa multidão?

Alguns sinais nos ajudam a localizá-la social e produtivamente. Tomados os estopins das revoltas em diversas partes — o reajuste dos preços das passagens de transportes urbanos — e as formas e mecanismos de mobilização — a internet — fica sinalizada a participação, sobretudo, da juventude urbana. Da mesma forma, os gritos por melhores serviços públicos de saúde e educação denotam uma juventude receosa ‘de não poder manter o padrão de vida da família e (…) de não ver realizada sua esperada ascensão social’, segundo Marcelo Ridenti, para quem se trataria de ‘uma massa de jovens escolarizados, com expectativas elevadas e incertezas quanto ao futuro, sem encontrar pleno reconhecimento no mercado de trabalho nem tampouco na política.’ Da mesma forma, a juventude também foi caracterizada, por Giuseppe Cocco, como integrante da ‘nova composição do trabalho metropolitano’, substituto de fato e de direito do engodo da ‘nova classe média’. Trabalhando ’diretamente nas redes de circulação e serviços da metrópole’, esses jovens sentem na pele a vida precarizada (alguns integram mesmo a geração ‘nem-nem’) das grandes cidades brasileiras. Algumas pistas para compreender o que a multidão desejaria ver concretizado num futuro próximo…

Em algumas notas sobre o assunto, nossa suposição era de que se tratava de uma multidão auto-organizada a partir das redes sociais, majoritariamente a-partidária e, mesmo, anti-partidária, cujo desencanto com a forma partido, acabou por responsabilizá-la pelo emperramento das instituições representativas brasileiras. Mais ainda, intuímos que o levante brasileiro expressaria a crise da representação política que grassa por todo o mundo e que já havia se apresentado em outras mobilizações, como na Espanha do 15-M e na recente revolta turca. Recapitulando o crescente emperramento das instituições políticas sob os limites da governabilidade lulista, não fica difícil entender o total descolamento existente entre os cidadãos e os partidos. Mas, além disso, é preciso notar que as formas e mecanismos de exercício dos direitos políticos remontam ao século retrasado. E convivendo com formas de comunicação em tempo real… o descompasso não poderia ser mais notável.

Acuada em um sistema representativo pouquíssimo oxigenado, a juventude brasileira — supostamente despolitizada até então — foi à ruas pelo direito à política e, mais ainda, pelo direito à outra política, menos amarrada nos conchavos interpartidários e elitistas, mais participativa. Da mesma forma, em situação precária diante da vaga neoliberal que exacerba o individualismo e lhes nega um futuro esperançoso, os jovens, bem como outros grupos (incluindo-se aí, por exemplo, os movimentos sociais por moradia), se articularam nas redes e foram às ruas pelo direito ao futuro fora do esquadro da mercantilização da vida.

‘Mais e menos lulismo’: à guisa de conclusão

A juventude precarizada que, majoritariamente, foi às ruas deseja mais e menos lulismo. Mais lulismo, pois ela é resultante do pujante processo de mobilidade social desencadeado no Brasil dos últimos dez anos, a primeira geração de milhões de famílias que chegam pela primeira vez ao ensino superior, a primeira geração incluída na chave do consumo de massas — porta de entrada para a cidadania efetiva –, ou seja, essa juventude conhece, em parte, os benefícios produzidos pelo governo de centro-esquerda que mantém a hegemonia eleitoral no país.

E também menos lulismo, porque, conhecendo a despolitização da última década — com pouquíssimos enfrentamentos políticos abertos — e o descolamento dos partidos em relação às massas, não enxerga horizonte de avanços com o passo cada vez mais lento do reformismo fraco, tônica do PT, principalmente, nos últimos três anos.

A surpreendente irrupção da multidão de jovens precarizados nas ruas, aliás, não poderia vir em melhor hora para o próprio Partido dos Trabalhadores que, cada vez mais enredado nos jogos de aliança e repartição do Estado brasileiro, já havia esgotado praticamente toda sua potência política transformadora, enquanto acumula retrocessos em diversas matérias consideradas bandeiras não-negligenciáveis da esquerda, como os direitos indígenas, LGBTTs, das mulheres, etc.. A transformação proporcionada pelo pacto lulista foi significativa, mas os meios empregados corroeram paulatinamente a capacidade de inovação, de produção do inesperado em política. O inesperado veio então ao encontro do Partido dos Trabalhadores, pedindo passagem.

Os filhos do lulismo sabem melhor que os pais (do lulismo) que só mais direitos, como a garantia do acesso a direitos constitucionais como saúde e educação e produção de direitos associados à mobilidade urbana, parte integrante do direito à cidade e associada às políticas culturais — disseminadas por Gil e Juca nos dois governos Lula –, bem como o incremento de formas participativas de política e a eliminação de graves distorções do sistema político e eleitoral brasileiro pode fazer o lulismo superar a si mesmo, oxigenando a política do partido e da esquerda do país.

À beira do colapso, o lulismo se vê na iminência de ter de se articular à potência política das ruas, onde os jovens gritam por mais e melhores direitos, como forma de constituição de uma nova agenda progressista para a próxima década: a década dos direitos. Que os pactos de governabilidade cedam o lugar, desloquem-se ao fundo da cena, e deixem o protagonismo para os pactos por saúde, educação, transporte, uma outra política, em suma, direitos… ao futuro. Para o lulismo e, para eles, seus filhos.

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