Informação instantânea em descontrole
A velocidade de informação que corre nas ruas, atravessa as redes e retorna às ruas, visto a possibilidade da pessoa produzir e compartilhar algo instantânea e continuamente, formando um sistema de ampliação do raio de alcance da informação semelhante à ondas, que faz, em questão de segundos ou minutos, que a informação atinja pessoas de outros países, por exemplo, é um dos principais fatores que tem propiciado a maximização da avalanche de vídeos, fotografias, textos e sons. Nota-se, nos protestos do chamado “Outono Brasileiro”, os vários formatos que possibilitam o encontro (e o desencontro) da informação – smartphones, notebooks, megafones (inclusive o formato de megafone humano), etc -, fazendo parte da cultura de redes que têm se instaurado de forma mais efetiva com esse extrapolar dos agentes ativos nas ruas e como eles têm sido um mecanismo de ampliação de repertórios de politização, de descontrole da informação, muitas vezes sem cortes e edições, para que o respaldo e a legitimidade possam ser alcançadas.
A interação entre estes agentes nas relações de tomada de decisão é potencializada pelo “efeito rua”, o que proporciona o encontro de diversos acervos de vivências e conhecimento, gerando uma troca intensa e que, só é efetiva, por ocorrer no espaço onde todos enxergam como comum, onde todos reconhecem elementos disparadores; a rua nos leva a agir.
Por ser um lugar onde o indivíduo se reconhece, através de um mapeamento afetivo – mas não só por ele – feito no decorrer de sua vida, ela é a reunião dos elementos disparadores de cada um, criando assim, um potencial mobilizador enorme e democrático, por trazer para uma mesma causa, pessoas que possuem posicionamentos ideológicos (ou até mesmo práticos) diferentes, além de conexões ímpares com a rua, o lugar comum.
Afinal, uma das disputas de discurso gira em torno do “momento do despertar”, e nisso, alguns atiram no alvo do “nunca estivemos dormindo” – um barco que inclui movimentos sociais e estudantis, setores de base de partidos e coletivos da cidade – e outros no “acordamos!” – onde se identificavam os “despolitizados”, trabalhadores em geral, etc. É fato que não há lideranças, que a Multidão está nas ruas; mas é preciso atentar para outra ótica: Tudo o que hoje está às claras de forma incisiva, sempre esteve presente nas ruas, não é algo de agora, os indivíduos sempre discutiam, sempre debatiam, sempre reclamavam.
Por mais que tudo fosse numa forma contida, interna e “entre paredes”, algo que nunca deixou de se processar foi a discussão sobre a sociedade e a política nas ruas, em cada boteco, em cada lanchonete, redes de fast-food, filas de banco, plataformas de metrô e trem, e por aí vai. Não me proponho analisar o porquê do “boom”, ou quem são os manifestantes, o que querem ou qualquer categorização desta escala; meu intuito é simplesmente problematizar a rua como uma rede que potencializa encontros, discursos, desejos e como isso ocorre a partir da informação descontrolada que vai sendo repassada, remixada e compartilhada, formando pontos de conexão entre grupos e indivíduos, inclusive antagônicos.
A rua é uma rede, que é estendida até a web, para que as trocas, encontros e articulações aconteçam. Arrisco a dizer que o potencial é tão alto, que mesmo com toda a complexidade da cidade, a partir da ação de alguns, os outros conseguem se reoperar e realizar a reinserção na rua a partir da parte da avalanche informativa que conseguem captar. Assim, diversos rizomas vão aparecendo, é o centro em todas as partes.
Visível o quê?
O “efeito rua” que é provocado pelo que chamo de poder territorial imaterial – um conceito que se caracteriza pela soma do auto-poder individual e o território do imaginário, intangível, que se encontra nos vetores que conectam os indivíduos e os acompanha pra além do espaço cotidiano, muitas vezes sem que eles se percebam nessa condição – vem se instaurando nesse momento sociopolítico brasileiro, extrapolando as análises anteriores aos protestos e levando gentes a busca e produção de informação e empoderamento de indivíduos que anseiam por visibilizar sua subjetividade de alguma forma, mesmo que precária; uma nuvem que não paira na consciência das pessoas, mas que se introjetou, tornando o movimento em Multidão, a otimização da alteridade entre os cidadãos, o ser com o outro.
É um novo momento, são necessárias novas chaves, e a criação colaborativa de algo que dê conta desse novo momento. A sociedade nas ruas se reconhece nas suas diferenças, mas é a rua que a leva ao encontro, formando o Monstro – termo utilizado para caracterizar a gama de subjetividades que se revelam conjuntamente – que, por sua vez, se “materializa” e ganha corpo na Multidão – formada pelos sujeitos que expressam suas subjetividades e desejos – a partir da rua, onde se situa a inteligência orgânica e inorgânica, onde está o global e o local, que entram e saem do real. Assim, percebe-se que a voz não é uníssona.
Neste processo de reconhecimento da rua – como uma rede que possui vozes diversas e está sendo mais incorporada como o local de encontro que captura todos – a questão da visibilidade do indivíduo, inclusive no que se trata das disputas mais recentes em relação a uma suposta tentativa de novo Golpe Militar por parte dos setores mais conservadores – agora já superada e tendo atenções voltadas diretamente para a PM, o caso Amarildo e o governador do Estado do Rio, Sérgio Cabral – vem de forma consistente.
O legado dessas movimentações da Multidão ainda não é visível, mas como indicador, o surgir de outras movimentações periféricas e descentralizadas, fomentando uma atuação das pessoas para dentro de seus territórios, e a partir deles, é de suma importância. O que seria isso, se não um reconhecimento tácito da importância da rua, neste processo de busca por um modelo/método que contemple os diversos grupos, coletivos, instituições, sindicatos, partidos e corpos a partir do seu desejo por visibilidade?
A rua é de todos e de ninguém, é um experimento de Soviete, onde o dissenso e a tensão estão presentes. Talvez, apenas talvez, seja uma das novas configurações na Cultura de Redes, que também caminha, de certa forma, por um sistema onde a representação não dá mais conta sozinha e o escopo da participação entra de forma latente, gritando por horizontalidade; porém, que formato de participação capturaria e organizaria essas questões? A representação precisa ser extinguida? Há de se pensar num formato que conjugue participação e representação?
Nisso, chegamos à questão: Seria o ir massivo às ruas, apenas a expressão de um desejo por visibilidade, ou de a implementação de uma ação a partir da conferência de visibilidade? E ainda que o fosse, isso, de alguma forma, faria parte do processo de subjetivação em direção a participação democrática direta? É preciso repensar aquilo que queremos tornar visível?
A partir desses questionamentos, me parece que a rua indica seus nós, trazendo mais complexidade aos rizomas formados e um trânsito de sujeitos que vão em direção ao que mais os atravessa, porém sem deixar outros tópicos ao léu. A mídia NINJA (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) tem papel direto na questão da visibilidade, tanto em relação à truculência da PM quanto às outras pautas.
A potência das ruas
A Multidão tem apresentado toda sua inquietude e vontade de mudança a partir das ruas e do que leva consigo. Daí saem os cartazes, pixes e outras maneiras de mostrar sua insatisfação com a conjuntura atual do país e o caminho que tem sido direcionado pelo Estado.
É importante se notar a quantidade de discursos que têm brotado a partir da força motriz que a rua tem conferido pela rede que, agora, saiu, mais do que nunca do Online e se revela ainda mais incisiva no Offline – principalmente por não haver controle de contéudo, o que se torna ainda mais atrativo e dá uma sensação impactante. A disputa de discursos é tão monstruosa, que gera atitudes para além do mero embate intelectual, como pôde ser visto principalmente no último 20 de Junho, em diversos momentos, durante a caminhada à Prefeitura do Rio, onde grupos contrários a presença de bandeiras de partidos entraram em conflito físico e verbal com manifestantes partidários.
Como tem sido observado por alguns estudiosos e pesquisadores de diversos âmbitos, aqui, incluindo intelectuais orgânicos e os que “acordaram”, a potência das ruas está na possibilidade e liberdade de se encontrarem e levantarem, num mesmo espaço-tempo, pautas como: “Contra PECs”, “Fim da Corrupção”, “mais investimentos para Saúde e Educação”, “Fora Feliciano”, “CPI dos Transportes”, “Reforma Política”, “Mobilidade Urbana”, etc.
É importante notar que diversas ações, visando a manutenção desse potencial percebido da rua, têm sido implementadas e estão gerando produção de pensamento e informação, sistematização de pautas, problematização de propostas, agregação de indivíduos, entre outros benefícios, se assim podem ser chamados.
O “efeito-rua” tem provocado e impulsionado a Multidão a buscar novas formas de produção e ação. A rua é o que pode ser chamado de clímax, de “sensação do encanto”, ao que as ações cotidianas que vêm acontecendo periodicamente com diálogo hiperativo são os processos e fluxos.
A rua-rede captura todos e os leva em direção aos signos do poder estatal, onde alguns são o estopim do ataque, como ocorreu com a “tomada” da ALERJ e os protestos na Prefeitura e Palácio da Guanabara. A rua leva a Multidão ao embate com o simbólico, e isto atravessa o imaginário dos cidadãos de tal forma, que leva a arte, a música, o carnaval, a religião, para o lugar comum da rua e vice-versa, pois volta introjetado nos indivíduos para as escolas, casas, condomínios, igrejas, etc.
Quem é louco faz arte, quem é sério combate.
Nós somos os R$ 0,20
Dois processos se dão simultaneamente: uma disputa pela cidade e outra pela subjetividade. Os vinte centavos já caíram há muito tempo, o que foi a “gota d’água”, já foi basicamente esquecido no fluxo intenso da rua, mas continuamos sendo esses vinte centavos que se tornaram outras pautas atravessadas pelos dois processos citados acima.
A disputa pela cidade se acirrou e acelerou, a rua fomentou o devir-revolucionário dos sujeitos que por sua vez, têm se organizado – ou procurado espaços – para disputar um projeto de cidade e em menor escala, de território e subjetividade. Porém, essa disputa passa principalmente pelos personagens da estrutura representativa que estão buscando capturar os indivíduos para implementação de sua cartilha – um bom exemplo, foi uma propaganda do Partido Verde, referindo-se diretamente a um tipo específico de manifestantes.
A rede-rua atraiu todos ao seu redor, sendo a justificativa para tentativas de atos de Império por parte do Estado – referindo-se aqui, principalmente, ao governo estadual e municipal carioca -, do desejo de alcance da soberania pelos partidos e de direito à cidade aos cidadãos (implicando diretamente à uma gestão participativa destes).
Neste fluxo, a disputa pela subjetividade parece ser o alvo principal, onde ao capturá-la, a disputa pela cidade fica cada vez menos acirrada ao passo que há menos subjetividades opositoras. Não importa aqui, quem sairá “vencedor”, mas o papel da rua como potencializador de todos esses acontecimentos, onde processos antes encarados como lentos, foram acelerados; principalmente após à tamanha concentração de novos conteúdos a partir do acontecido na rua. Bons exemplos, são a discussão da Desmilitarização da PM e o papel dos partidos.
Todos esses pontos foram suscitados a partir dos vinte centavos, que assim como as outras pautas, também têm a ver com a coletividade, mesmo que trazidas a partir de discursos diferentes na rua. Quando se diz que nós somos os vinte centavos, é reproduzir o discurso de que incorporamos os elementos da rua, que são coletivos, em nossa subjetividade. Somos aquilo que queremos e cada grupo assume funções, que por vezes se confundem e, em outros momentos, se distinguem.
Choque (de ordem) x (Somos Todos) Vândalos
O que é a ordem? O que representa a ordem nas ruas? Quem são os vândalos? O que eles representam nas ruas? Foucault trabalha a questão da ordem como uma imposição do sistema supostamente soberano e legal sobre quem está dentro dele; quem não cumprir as diretrizes da ordem que foi imposta – e não negociada – sofrerá sanções.
A PM e Choque nas ruas cumpre esse papel da representação da ordem, de forma radicalizada, onde à todo custo, buscará manter todos sob a égide do controle social estatal. Os manifestantes passaram, nesses tempos atuais, por duas categorizações:
– Todos são vândalos e precisam ser contidos. (posição tacitamente apresentada pela PM e Choque, a partir do tratamento e forma de atuação nos confrontos, tendo cometido excessos como prender um cidadão que afirmou que uma santa não gostaria daquilo, entre outros casos)
– Os vândalos são aproveitadores que querem instaurar o caos e atrapalhar a reivindicação do povo (posição explicitamete defendida por parte dos próprios manifestantes, muitos dos quais estão pela primeira vez expressando seu repertório de conhecimento político, ou por aqueles que defendem uma forma de protesto no moldes de Ganddhi, algo que não tenha confronto, por mais que haja ataque por parte das forças opressoras)
Nas ruas, encontramos, no meio de toda a energia que é expressa por ambos os lados – um que não reconhece mais o modelo de ordem imposto, e um que busca cumprir a missão dada para que a permanência do status quo dominante se perpetue – o desejo amplo de produzir um encontro que gere impacto na conjuntura atual, tanto para um formato de domesticação do povo, quanto para um formato que caminhe em direção à criação de novas chaves de conexão entre as pessoas e a política democrática brasileira.
Uma faísca e o estopim ocorre, o confronto daqueles que já são vandalizados juntamente com os que se solidarizam por entenderem assim contra os que, apesar de vandalizados também, inclusive no próprio (des)treinamento que recebem, representam o rolo compressor que tensiona empurrar todos às suas casas, impôr toque de recolher tácito, domesticar os que estão incomodados; afinal, o choque de ordem, reconhece a necessidade de pôr todos nas suas devidas caixas, emparedados, para que a potência de encontro e luta que a rua proporciona não seja catalizada e direcionada pelos que buscam um novo caminho para a desigualdade arraigada em nossa sociedade.
Ressignificação das coisas
Por último, creio ser de importância trazer à problematização, como a rua nos proporciona situações que provocam a nossa ida até uma reoperação dos elementos que encontramos, reconhecendo-os algumas vezes, na rua com os que possuímos num momento específico.
A necessidade na rua provoca diversos atravessamentos que mobilizam a mente e o corpo do sujeito em direção a solucionar de forma prática, e quase instantânea, por meio de uma gambiarra, o problema proposta ali, naquele território. Nos protestos, se percebe, ou não, o devir-morador-de-rua que existe em todos e como ele é importante para a sobrevivência ou, minimamente para a disputa entre o sistema vigente e o sistema que insurge da chamada “voz das ruas”.
Nisso, deixo um pequeno inventário inicial de tudo que recebeu certa ressignificação durante os protestos, além de tantos outros itens que os cidadãos experimentaram e não estão representaos aqui. A potência da rua precisa ser reconhecida para além dos muros da sociedade (des)legitimadora no agora, no instante.
[por um inventário potencial da rua]
– Camelôs
– Moradores de rua
– Calçadas
– Esquinas
– Feiras
– Pixes e Grafittis
– Faixas
– Homens-sanduíche
– Profissionais
– Estudantes
– Panfletários
– Construções
– Tapumes
– Celulares
– Orelhões
– Pedras
– Garrafas
– Óculos de Natação
– Etc
Tudo acontece na rua, tudo acontece na rede, tudo que está na rua faz parte da rede e vice-versa.
REFERÊNCIAS:
HARDT, Michael. NEGRI, Antonio. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2005.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 2007.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – A História da Violência nas prisões. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.
LATOUR, Bruno. Reagregando o Social – Uma Introdução a Teoria do Ator-Rede. Salvador: EDUFBA, 2012.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?. São Paulo: Editora 34, 1992.