Como parte das ações que implementam o projeto de sucesso “Porto Maravilha” na região portuária do Rio de Janeiro, a produção cultural vem sendo invocada. Dizer “região” ou Zona Portuária pouco qualifica esse terreno/território e, para colaborar na porosidade da percepção desse espaço podemos listar quais são os registros de que dispomos, pensar que modos de vida, que narrativas fugidias, que histórias percorrem as ruas, que resistências, … e como essas produções constituem esse local. O objetivo deste artigo é, sinalizando o modelo econômico e de gestão que utilizam dois museus em construção na área, compreender como eles contrastam com ações que poderiam fomentar, mais diretamente, a produção cultural já existente ali. E por isso, analisar como o fomento à produção cultural mais crítica ocorre trazendo enfrentamentos necessários para a própria produção, ou seja: para a(s) arte(s), o que chamo de “alucinações produtivas”.
O projeto Porto Maravilha vem sendo realizado por uma Operação Urbana Consorciada (OUC), um modelo de negócio do tipo Parceria Público Privada (PPP) que facilita uma série possibilidades para empresas privadas no trato do espaço e de serviços públicos. Contudo, organizações sociais têm resistido ao modelo implementado, criando diversos comitês, grupos, e fóruns de discussão para garantir os direitos dos moradores e trabalhadores sobretudo quanto à ocupação do território e o direito à moradia. As ações do projeto “maravilha” já forçaram primeiro a desestruturação seguida de expulsão de duas ocupações de moradores – entre elas a Zumbi dos Palmares, então a maior ocupação da cidade do Rio de Janeiro; e atualmente ameaçam e expulsam centenas de moradores do Morro da Providência.
A produção cultural, e/ou o turismo cultural, por sua vez, tem sido usada nos discursos da macropolítica como ferramenta de apaziguamento de diferenças, de porta de entrada para empreendimentos econômicos e tem sido promovida como elemento neutralizador indireto das ações severas da prefeitura do Rio de Janeiro, em sua maioria levadas a cabo pelas forças policiais do estado (como a remoção de casas para a construção do teleférico no Morro da Providência). Um exemplo da contradição atual que vivemos é: se os imóveis desocupados na região podem ser usados para a produção cultural, no caso da Fábrica Behring (“comprada” a punho por Eduardo Paes), porque não se garante também a moradia em prédios desocupados, como é designado por lei federal?
A implantação do Porto Maravilha realiza uma privatização deste terreno e agrega, em uma onda atrasada e “não vanguardista” porque se pauta sobre projetos de revitalização como das docas do sul do Rio Tamisa, em Londres, e o Porto Olímpico em Barcelona. Em ambos batalhas sociais foram travadas pelas populações locais que habitavam as regiões e que foram expulsas pelos planos de revitalização. Contraditoriamente, tais planos também apagaram qualquer vestígio dessas vidas, ainda que afirmem seu valor de consumo sobre a tradição destas histórias e práticas (como em Londres, onde se “vende” o modo de vida criando apartamentos de luxo onde antes estocava-se alimentos).
Já podem ser vistos na Praça Mauá os dois grandes museus (o Museu de Arte do Rio (MAR) e o Museu do Amanhã, no píer Mauá) que conduziriam para a região uma população de consumidores de cultura, entretenimento e informação. Contudo, pode fazer parte dessa tarefa ativar a produção de diferentes expressões e quebrar o discurso uníssono de que a “degradação” da região ocorre por conta dos seus próprios atuais moradores e trabalhadores. Para tal, na “revitalização da região”, o reconhecimento da produção cultural local poderia ser um dos motores primeiros.
A dita “degradação” da área é implementada indiscriminadamente no discurso do atual prefeito Eduardo Paes de maneira a construir terreno para a especulação imobiliária. Alguns moradores da região afirmam que a área carecia de investimentos, e o “abandono” seria esse, abandono de políticas públicas, que tem sido retomadas nas mãos na iniciativa privada. A especulação imobiliária, que acontece em todo o Rio de Janeiro, ali tomou corpo com a venda de Certificados de Potencial Adicional Construtivo (CEPACs), em 2011, cujos compradores não apareceram e a Caixa Econômica Federal, que administra o FGTS, foi a grande compradora, assumindo a responsabilidade de um investimento que beneficia prioritariamente o capital privado e as empresas ligadas ao turismo.
Para a produção cultural o modelo que parece vir colado ao da especulação é o da “indústria criativa”. O termo surge no pós-guerra europeu cujas características sociais, culturais e econômicas são bem distintas de nossa realidade. Conhecidos genericamente por “equipamentos culturais”, os Museus da região vêm sendo implementados nessa mesma “onda”, visto que não tem nenhuma relação com o território (ousei sugerir uma vez que se fizesse na região o “Museu da Prostituição”) e existem para promover o lazer (“leisure”). Os cerca de 170 milhões investidos por renúncia fiscal da Fundação Roberto Marinho são um valor discrepante frente a qualquer investimento na região que de fato colabore na manutenção do cotidiano das comunidades afetadas também na área da cultura – considerando a diversidade de iniciativas e produtores culturais que polinizam a região. Quanto a isso, foi feito um mapeamento recentemente por um grupo de pesquisadores, que criou o “Guia do cidadão da Zona Portuária”, uma listagem de instituições culturais e religiosas, serviços públicos, escolas, etc. sob coordenação da socióloga Maria da Silveira Lobo.
Com o real “descolamento” entre território e equipamentos culturais implementados, resta saber que tipo de produção cultural, social, educativa vai ocupar essas instituições. O que nos apresenta um problema a mais: na grande maioria dos casos os profissionais que passam a atuar nesses espaços não tem qualquer relação política com o território, e produzem a programação ou políticas de “inclusão” ou de instrumentalização da população local, num programa educativo pouco crítico com o passado recente dessa revitalização. A dificuldade é, na verdade, operar uma arte que seja ela mesma ruptura, que provoque alucinações produtivas, assumindo as rachaduras de uma degradação real, da arte e da cultura elas mesmas.
A produção cultural, sua realização artística, precisa cuidar para não entrar num modelo forçado de capital/cultura que se efetiva por meio de um modelo compra e venda, e caindo muitas vezes em práticas e discursos apaziguadores e neutralizadores. Sem dúvida, as paixões e os delírios que conduzem a produção artística e mobilizam acontecimentos precisam ser equacionados com os modos de sustentabilidade econômica, e é aí que os desafios são rapidamente abandonados.
Na membrana da arte em relação com a cultura se abrem possibilidades de produção sígnica, de intercâmbio de linguagem e modos de acontecimento mais ricos – permeabilidade que depende da disponibilidade daquele que participa de uma realidade comum, ou como um cartógrafo (contemporâneo) entremetido no terreno. O encontro com o terreno constitui o(s) território(s) onde passam a fazer sentido as singularidades e as diferenças, as lutas pelos direitos e os modos próprios de manifestar-se. Há uma diferença grande entre a produção do território e não “para o” território.
O trabalho do coletivo Catadores de Histórias, formado por Fabiane Borges e Rafael Adaime que acompanhou a luta pela moradia e os moradores de rua no centro de São Paulo no auge das ações para limpar o terreno e revitalizar o centro entre 2002 e 2005 é muito interessante para pensar a realidade da Zona Portuária. Fabiane Borges descreve no seu livro “Domínios do demasiado” que em certo ponto ela mesma começa a ver-se e transformar-se numa moradora de rua que “não tem funcionalidade social, que atrapalha, que atravanca os canais internos do corpo citadino colossal como se fosse uma merda trancada no reto, para depois ser escoada nos canos subterrâneos.” A cidade é feita, então, desses corpos que são, para ela “o negativo do corpo incluído”. (1)
A ruína provocada pela destruição do existente (a expulsão, a demolição) para projetar o novo é uma imagem que está em o “Caráter destrutivo”, de Walter Benjamin (1931). Como seus tantos conceitos severa e inteligentemente complexos “o caráter destrutivo conhece apenas uma divisa: criar espaço; conhece apenas uma atividade: abrir caminho.” Poderia ser como Fabiane Borges percebe: a presença de corpos antiantropocêntricos que desafiam o signo máximo do pensamento antropocêntrico: “a cidade, que outrora contraiu o sentido de ambições civilizatórias, hoje escancara os significantes da sua impotência.”
No entanto a ação do estado se disfarça de uma “harmonia”, como expõe Benjamin. Aplicando ao nosso terreno, o que os movimentos e produtores culturais que atuam na região não precisam é desta harmonia que se constrói por cima da destruição. E sim do reconhecimento do seu próprio “legado”, de sua história e de sua resistência. Pode a arte corroborar nesse processo? Não sem aportar à sua maneira as alucinações que a permitem ser o elemento desprogramador, dialógico, revolucionário à sua maneira, enfrentando os mesmos desafios que a população local enfrenta, e não entrando na lavada “maravilha” que se cria como imagem, na verdade, insuportável.
—
Este texto é uma versão atualizada do texto: “A Arte de provocar ruínas: especulações na Zona Portuária”, publicado originalmente em Revista Global n.º 14 (http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=697)
NOTAS
(1) http://catadoresdehistorias.wordpress.com/ e “Domínios do demasiado: por uma ontologia sem cabimento”, São Paulo, Editora Hucitec, 2010.