Sem Categoria

Badiou, o comunismo, a revolução

Resenha de BADIOU, Alain. A Hipótese Comunista. Trad. Mariana Echalar, ed. Boitempo, São Paulo, 2012 [2008], 152 páginas.

Alain Badiou é um dos últimos intelectuais franceses de sua geração ainda em atividade. Ele pertence a uma leva de pensadores radicais que emergiu no pós-guerra francês, escamoteada sob na Academia, estreitamente ligada ao fenômeno do estruturalismo, e diretamente engajada na reinvenção do léxico revolucionário diante do fracasso do socialismo real – à luz da experiência radical do Maio de 68 -, o que implicou em uma crítica à forma partido, às organizações típicas da esquerda e a qualquer forma de estatalismo.

Ao contrário de Foucault, Deleuze ou Guattari que se distanciaram de vez da tradição filosófica do Ocidente, Badiou, no entanto, permaneceu fiel a ela dentro de seu polêmico maoísmo militante e ou no que concerne sua filosofia do evento (isto é, uma ruptura na disposição normal dos corpos e das linguagens tal como ela existe para uma situação particular [p.138, op.cit.]).  Nela ainda se faz uma opção pela dialética, pelos universais e pela verdade militante.

A Hipótese Comunista tem por centro de gravidade uma tarefa audaciosa: nela, Badiou busca reinserir a palavra maldita comunismo no léxico da esquerda e, para tanto, ele desenha um plano interessantíssimo, que começa pela indagação o que é fracassar? – uma ontologia dos fracassos da esquerda e das formas de fracassar -, passando pela afirmação da contemporaneidade do Maio de 68, um exame da Revolução Cultural chinesa, e depois da Comuna de Paris, para desembocar, finalmente, na ideia de comunismo – o que marca seu posicionamento favorável a Platão e seu legado, o qual aproxima do comunismo, distanciando-se mais ainda dos seus pares.

A exemplo do igualmente polêmico Slavoj Zizek, Badiou entende que é preciso não jogar fora o bebê junto com a água do banho no que toca à análise do socialismo real, se afastando dos muitos anarquismos e autonomismos que emergem da crítica ao sovietismo. Badiou está bem próximo ao pensamento de Zizek, pela via de Lacan, embora pouco disposto a reinventar Hegel [como ele próprio admite na nota de rodapé das páginas 135-6] e sem o mesmo talento ou disposição para o polemismo pop.

 Badiou se propõe a fazer de A Hipótese Comunista não uma política ou uma filosofia política, mas sim um livro de filosofia. A via que ele escolhe – e talvez explique sua publicação pela coleção estado de sítio, da Boitempo – está compreendida dentro do intenso debate que divide as esquerdas no mundo atual – que a despeito da gravíssima crise em curso no capitalismo, não assiste à emergência de nenhuma alternativa sólida ao modo de vida e política vigentes -, colocando-se no campo daqueles que ainda mantém os pés fincados nos universais e ainda nutrem uma certa relação com a dialética e certas formas (mesmo escamoteada) de ontologia negativa.

O que certamente salta aos olhos na obra é a defesa de Badiou ao maoísmo, mas é preciso pensar isso para além do absurdismo liberal ou de uma abordagem ideal-moralista de história e política: em um primeiro momento, o maoísmo ocupa seu lugar, com algum êxito, na França do pós-Guerra diante da crítica ao modelo soviético que ele encarnava – cujos problemas eram bastante claros para intelectualidade local por conta da reprodução de disfucionalidades parecidas no Partido Comunista Francês. Badiou, naturalmente, vem dessa tradição.

Ainda que ele não esteja errado em enfatizar certas vantagens do maoísmo, sobretudo sua distância crítica em relação ao stalinismo, ele vacila na análise – e ele não deixa de admitir isso -, pois por mais que a fase derradeira do líder revolucionário chinês seja marcada pela percepção das insuficiências da forma Partido e da busca de alternativas fora dele, Mao jamais se pôs definitivamente contra ela – e da forma Estado, por tabela – assim como a Revolução Cultural esteve longe de, ao menos como proposta teórica, ser um ponto de inflexão efetivo na subjetividade ou na “superestrutura”.

Nesse sentido, Badiou, pelo bem de sua honestidade intelectual, é obrigado a admitir esses pontos, além de citar suas próprias mudanças de posição ao longo do tempo, embora no mesmo parágrafo em que refuta a via da forma partido seja o mesmo em que ele refuta o anarquismo, ainda que de forma pouco clara e confusa: “Sabemos hoje que toda política de emancipação deve acabar com o modelo do partido, ou dos partidos, afirma-se como política ‘sem partido’, mas sem cair na figura anarquista, que nunca passou de crítica vazia, cópia ou sombra dos partidos comunistas” (p.90). Certamente, Badiou incide em uma crítica vazia sobre a suposta crítica vazia que pretende refutar, embora esse seja só um equívoco lateral da obra.

Esse aparente beco sem saída sobre o maoísmo explica-se facilmente, no entanto, pelo rápido exame da maneira como Badiou coloca a sua problemática: Pouco importa o fracasso histórico, o suposto fracasso real da Revolução Cultural, o que nos interessa, à luz de uma perspectiva revolucionária, é o simbolismo que a permeou e a constituiu como premissa central – uma vez que ela é um evento mais do que simbólico como qualquer peça da história, mas também consciente da instância simbólica e pronta a operar de forma revolucionária dentro dela; assim, a questão torna-se o que podemos tirar da Revolução Cultural e operacionalizá-la ideologicamente para uma transformação efetiva.

À luz de Lacan, Badiou refuta o realismo pela máxima de que o real não é redutível ao simbólico e a ideia entra como instrumento imaginário de mediação entre ambas as instâncias, sendo a ideia comunista “a operação imaginária pela qual uma subjetivação individual projeta um fragmento de real político na narração simbólica de uma História” [p.136-7].  Uma ideologia, uma ciência das ideias, torna-se elemento fundamental par uma prática revolucionária, uma vez que a prática apenas autoevidencia uma verdade militante, mas não a constitui.

Eis aí a crítica da aclamação dos líderes na forma de crítica ao culto à personalidade, o que consiste talvez em uma das objeções mais originais já feitas a Nikita e sua condenação ao stalinismo – que, na visão de Badiou, deveria ser combatido no campo simbólico por suas práticas terroristas e não por fora dele, em nome de um dito realismo que apenas serviu ao conservadores dali por diante. Posição que, no entanto, não significa qualquer adesão de Badiou ao stalinismo, mas sim da maneira como ele foi abjurado, uma vez que ele representava um fracasso justamente pela sua forma de intervenção rudimentar – enquanto em HC o fracasso de Mao é político, o de Stalin é absoluto, a ideia stalinista não é fecunda, ao contrário da de Mao.

Do ponto de vista teórico, trata-se de uma argumentação muitíssimo bem construída, mas sempre é possível fazer uma objeção de princípios. A primeira e mais importante é que o leninismo-lacaniano de Badiou, a exemplo do de Zizek, insiste  que o real é insibolizável, cujo efeito prático leva, na discussão política, a representar o realismo como uma construção impossível e não-fecunda a serviço do mando (não faça, não é real): o entrave do socialismo real está no realismo, o abandono dos símbolos gerou essa esterilização e o movimento comunista deu com os burros n’água no século 20º justamente por uma paixão pelo real; em sentido contrário, podemos perguntar o qual o problema com o real e por que tanta indiferença diante dele?

Colocar o fracasso soviético na conta do(s) realismo(s) é uma aposta arricada, uma vez que o comunismo aparece como ideia também na União Soviética, basta lembrar do próprio hino soviético de 1944, sob Stalin, e a “победе бессмертных идей коммунизмаo” [vitória das ideias imortais do comunismo] que ele anunciava em seu refrão. Ainda que nos refiramos à arte russa controlada pelo Estado, e usada para fechar vazio resultante da eliminação das vanguardas revolucionárias, como “realismo socialista” até que ponto aquela realidade correspondia ao comum da vida soviética e não seria, ela mesmo, a representação iconográfica – portanto, gloriosa – da vida soviética ideal como o Estado vermelho gostava – e precisava – representar? Ao refutar um Kandinsky ou um Maiakovsky em prol da arte dura e panfletária de elogio ao regime, não estaria o Estado soviético exercendo o teste da cópia e do simulacro, uma operação perfeitamente platônica?

Não existe, portanto, tanta novidade na tese de Badiou. O problema está mal colocado porque assumimos como dogma algo perfeitamente questionável: falamos muito de símbolos e pouco da libido e, também, apenas pelo fato do real ser usado como elemento cerceador da prática dentro de um discurso ideológico – e para que mais serviria a ideologia? – temos de abandoná-lo e advogar que será pela via ideal, e da ideologia? O que eu quero dizer é que a articulação entre real e simbólico precisa ser repensada para além dessa interpretação de Lacan. Do contrário podemos acabar confundindo uma ficção com uma mentira – do ponto de vista extramoral, naturalmente.

De repente, uma narrativa como a que Badiou propõe da Revolução Cultural chinesa, em seu recorte, pode terminar por eliminar partes que interessam na compreensão de seu fracasso e que nos serviriam para evitar outro do mesmo quilate: temos de nos prender tanto assim aos símbolos de uma narrativa e torná-los mais importantes do que os resultados empíricos de sua realização prática? Dizer que cultural, em chinês, é também “relativo à civilização” [p. 77] o que poderia justificar, no plano das ideias, a abertura para as perseguições e violência na sua execução é um equívoco, inclusive pela própria formação da palavra em mandarim.

Cultura diz-se wénhuà [文化] (do texto), enquanto civilização é wénmíng [文明] (que decorre do texto), isto é, não resta muitas dúvidas em mandariam que o segundo trata-se de um produto do primeiro, e que etimologicamente, os chineses não têm o problema que nós ocidentais temos em diferenciar os dois termos (que são passíveis de confusão sim no nosso português ou no francês de Badiou, embora à base da teoria, tenhamos resolvido essa indeterminação terminológica, sendo o primeiro o material materializante e o outro o material materializado). E é Wénhuà Dàgémìng [ 文化大革命] como os chineses se referem à  Revolução Cultural.


A tese do real insimbolizável pode esconder uma versão redutora dessa instância, destinada a manter teoria e prática irremediavelmente cindidos como na filosofia clássica, com o resultado prático de ignorar todo o virtuosismo e a exuberância presente no sensível da experiência humana; ideias são chaves formidáveis para o conhecimento, mas são abstrações e, portanto, terrivelmente anestésicas e anestesiantes se não operadas na imanência: e a distinção entre a ficção e a mentira – o não verdadeiro intencionalmente narrado com fins estratégicos – é precisamente sensível e empírica: sem ela podemos confundir o que é próprio da narrativa histórica e o que lhe é desvio destinado a servir ao poder – como a história das grandes personalidades e da outorga, em caráter benemerente, do tirano aos súditos como forma de apagar a memória da resistência (e toda memória é afetiva, convenhamos).

Se a tirania, como sabemos desde Spinoza, se exerce por meio de um jogo de imagens – pela ideologia, como se dirá mais adiante -, talvez fosse o caso de combatê-la dentro do seu campo, com sua linguagem, como propõe Badiou, mas será que isso não é um erro semelhante ao que ele próprio insistiu por tanto anos, ao advogar em favor da forma Partido? Ou será que não seria o caso de assumirmos um real e uma realismo enquanto elementos constitutivos, abertos à experiência sensível e afetiva? Seja como for, só é possível narrar de forma a dominar por meio das abstrações e formas vazias organizadas, e  não há forma melhor de fazer isso do que pela ideologia. E mesmo que a intenção seja inserir na ficção histórica o real da política, até que ponto isso precisa ser articulado por meio de imagens?

São muitas questões, evidentemente, mas elas expõem a fragilidade de certos itens colocados por Badiou. Se o que vemos não é o mundo ele mesmo, mas sim a sua projeção imagética, isso não quer dizer que não haja distinção entre a imagem, a miragem e a ilusão produzida pelo ilusionista. Para além da crítica obtusa dos novos filósofos ao culto à personalidade, é preciso distinguir que a adoração de líderes como Gandhi ou Mandela – o que torna seu nome a consubstancialização da multidão de militantes, insurretos e combatentes anônimos que lutaram por suas causas – é diferente da glorificação, por obra do Estado-Igreja, dos nomes próprios de Mao ou Stalin. Diferenciar isso não é fazer a cama para conservadores deitarem, longe disso.

Desde Shakespeare – de Julio Cesar, precisamente – sabemos que todo político tradicional é antes de tudo ele mesmo e sua imagem, o que não quer dizer que haja formas e formas de construção dela – algumas, totalmente tirânicas e o fascismo, bem como o socialismo autoritário também, estão aí para nos provar.

Mesmo nos casos de um Gandhi ou de um Mandela, a subsunção desse militante a um nome próprio glorioso “como prova de que ele pode contrariar sua finitude” [p.142] é uma questão falsa: a potência dele é justamente seu anonimato circunstancial, o que não permite que seja objeto de uma ordem pela impossibilidade de ser identificado, além de que, ser engolfado por esse nome próprio – ou a necessidade de sê-lo – alude ao salvacionismo tirânico tradicional quando a insuficiência perfeitamente humana – sua mortalidade ou limitações práticas – é apresentada como um problema que pode ser resolvida pela submissão ao eterno ou eternizante. Preciso viver eternamente, mas não posso, não é precisamente a grande armadilha da angústia heideggeriana?

Não seria justamente o problema da democracia representativa o fato dela dizer, o tempo todo, que somos incapazes de realizar algo que dizem que temos – ou poderíamos fazer não fôssemos tão pouco – e que, por isso, precisamos eleger pre [glorificar] um candidato [salvador]? Por que, em vez de contrariar nossa finitude fazendo-nos representar no Líder, não a assumimos como forma de a tornar desimportante diante da intensidade do nosso ser: não vivo eternamente em quantidade, mas isso não importa porque não preciso viver para sempre.

De fato, colocar o comunismo como ideia e como hipótese de um horizonte de eventos talvez explique sua defesa da suposta potência da esperança, como visto em São Paulo, mas isso deixa uma questão em aberto, pois precisamos lembrar que Badiou, com razão, aponta na presente obra o financismo como parte constituinte do capitalismo vigente e não como um elemento que lhe é anômalo – a conta que fica sem fechar é a seguinte: acaso os banqueiros conseguem exercer seu mando apenas pelo temor que provocam ou será que a esperança não está ali como parte da dupla-hélice da economia da dívida, aliás, antes mesmo do temor da sanção pela inadimplência? Que potência teria a esperança senão a de deslocar o centro de gravidade do nosso ser para uma promessa de futuro, tirando de nós a única coisa que temos, isto é, o nosso aqui-agora.

Um comunismo é o exercício prático do comum – e este habita o aqui-agora -, ele não é uma ideia ou uma hipótese, ele é real e sua redução ao ideal gera o perigo do seu desvinculamento perpétuo da realidade, cujo ônus prático é a insensbilidade pelas consequências práticas de uma ação. Isso não tem nada ver com vitimismos e auto-indulgências, mas sim com empatia: ideias aceitam tudo, a prática e a experiência não. Há uma série de outras questões, contudo, o caminho da emancipação nos parece não um “podemos, logo devemos” e sim um dizem que não devemos fazer, mas podemos.

Hugo Albuqueque, originalmente publicado no Descurvo

X