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Belo Horizonte e os ônibus sem catraca

“Busca-se passar a impressão de que o reajuste faz parte do sistema, que ele é uma necessidade técnica para que o sistema permaneça funcionando, e que se ele não for cumprido o sistema pode entrar em colapso, os empresários não investirão mais, e a cidade parará. Em outras palavras: o véu técnico encobre o caráter necessariamente político da tarifa.”

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Por André Veloso, no olho da rua

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A discrepância entre o custo do sistema e o quanto, como e quando se cobra por ele evidenciam que as decisões devem estar no campo político, não técnico. É uma questão de escolha: se nossa sociedade decidir que sim, o transporte é um direito e deve estar disponível a todos, sem distinção ou tarifa, então ela achará meios para tal. – Movimento Passe Livre, São Paulo. Folha de São Paulo – 12 de Junho de 2013.

Nos estudos de economia mineira, costuma-se utilizar a tese de que o “empresariado mineiro seria mais atrasado e mais débil do que o empresariado nacional” para se justificar o fato do famoso “atraso econômico de Minas em relação a São Paulo”.

Nada mais longe da verdade.

Os levantes que vemos agora em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre são uma reação imediata aos aumentos de passagem que ocorreram nos últimos dias (ou semanas) nessas cidades. É claro, não são levantes contra centavos, são pelo direito à mobilidade, ao ir e vir. E questionam profundamente a atual concepção de transporte (coletivo, público e privado), principalmente quem, como e quando esse transporte é financiado.

Mas, todos concordam, os levantes foram iniciados pelo aumento da passagem. Pelo fato de – de um dia para o outro – termos que pagar mais 20 centavos por um transporte truculento, superlotado, congestionado, que nos leva para um lugar que não queremos para fazer um trabalho no qual, em geral, não nos sentimos realizados.

Pois bem, novamente: nada mais longe da verdade afirmar que a elite mineira é inepta. A tradicional família mineira se traduz em uma elite extremamente astuta e perniciosa, agindo da forma mais silenciosa possível, como um mineiro comendo pelas beiradas.

Segundo o contrato de concessão dos serviços de transportes público em BH, licitado em 2008, a passagem de ônibus é reajustada de acordo com uma equação paramétrica que leva em conta os custos do transporte e os reajusta de acordo com a inflação registrada pelo IBGE e pela FGV (a equação está no fim deste texto, para quem quiser ver). Com um detalhe: pelo contrato, esse reajuste é publicado no dia 28 de dezembro e EFETUADO, TODOS OS ANOS, NO DIA 29 DE DEZEMBRO.

É quase desnecessário dizer que nesta época do ano a grande maioria da população belo-horizontina se encontra fora da cidade: além de ser fim de ano, grande parte de nós tem origem no interior do estado (em 1960, 70% das pessoas que moravam em BH não haviam nascido aqui).

A equação paramétrica e a data em que é feito o reajuste são dois elementos que fazem parte da construção do mesmo discurso feito pelas autoridades públicas e empresários para a população. Busca-se passar a impressão de que o reajuste faz parte do sistema, que ele é uma necessidade técnica para que o sistema permaneça funcionando, e que se ele não for cumprido o sistema pode entrar em colapso, os empresários não investirão mais, e a cidade parará.

Em outras palavras: o véu técnico encobre o caráter necessariamente político da tarifa.

Neste último sábado (08 de junho), o presidente da BHTRANS, Ramon Victor César, em fala realizada no X Congresso da Associação dos Usuários de Transporte Coletivo da Grande BH, deu a entender que a tarifa pode ser reajustada para cima, ainda neste ano. Além do reajuste anual, há uma revisão a cada 4 anos da tarifa, para averiguar se os reajustes foram “justos”. A grande multinacional Ernst & Young foi contratada para realizar essa revisão e, segundo esta, um dos fatores de desequilíbrio da atual tarifa é que os salários dos trabalhadores das empresas tiveram um reajuste maior do que o índice que mede o preço da mão de obra na dita equação. Ou seja, os empresários perderam parte de seu “diminuto” lucro, que, é claro, deve ser ressarcido à custa do usuário.

Lúcio Gregori, idealizador do projeto Tarifa Zero durante o governo de Luiza Erundina na cidade de São Paulo (1989-1993), costuma afirmar que a tarifa do transporte público funciona como um fetiche, como algo que encobre a verdadeira natureza do transporte público. O empresariado a vê como a única forma de remuneração de seu serviço, o Governo a vê como um instrumento de barganha política e a população costuma associá-la à qualidade do serviço, não conseguindo enxergar outra possibilidade que não seja a de pagar pelo ônibus no momento da sua utilização.

Apesar disso, o absurdo do sistema tarifário é evidente. Diferentemente de outros serviços públicos como saúde, educação e segurança pública, que são financiados por toda a população de maneira indireta, o transporte público é completamente financiado por quem se utiliza dele e no momento da utilização. A analogia é simples: imagine uma catraca na entrada de uma sala de aula, cobrando pelo custo de manutenção da sala e pelo salário do professor. Só quem pudesse pagar poderia ter aula. Ou ainda, uma catraca na entrada da ambulância e/ou dos leitos hospitalares. Por fim, imagine uma caixinha para o policial, toda vez que você chegasse em casa sem ter sido assaltado.

Essa lógica perversa faz com que os mais pobres, que são aqueles que não podem comprar uma moto ou um carro, financiem a mobilidade urbana dos mais ricos. E isso se torna um círculo vicioso. Quem puder escapar do transporte público, o fará rapidamente. Com mais motos e carros nas ruas, mais congestionadas ficam nossas vias e mais lento, ineficiente e custoso será o ônibus, que, portanto, irá aumentar sua tarifa para poder se financiar, levando mais pessoas a optarem pelo transporte individual.

Assim, como tem pautado o Movimento Passe Livre, devemos ir além da luta pela revogação de aumentos ou redução da tarifa: devemos questionar a tarifa em si. A primeira coisa a ser revista deve ser o contrato entre as empresas de ônibus e a prefeitura de BH, no caso municipal, e entre as empresas de ônibus e o estado, no caso da Região Metropolitana.

Esse contrato garante o monopólio da exploração dos serviços para essas empresas, que se constituem como verdadeiras máfias. O de Belo Horizonte foi feito em 2008 e dura até 2028, para 4 consórcios. O da Região Metropolitana é ainda pior: são 7 consórcios com exploração garantida de 2008 a 2038!

A possibilidade concreta do ônibus sem catraca em Belo Horizonte

É óbvio que o transporte público custa dinheiro. Para se possibilitar a revogação da tarifa nos ônibus de BH, simultaneamente a um aumento e melhoria de sua frota, propõem-se quatro fontes básicas de recursos, que constituiriam um fundo municipal de mobilidade urbana.

A primeira já está aí, são recursos que a PBH já possui, mas são mal direcionados.

O orçamento de 2013 da Prefeitura de Belo Horizonte prevê um gasto de cerca de 230 milhões de reais para o programa Corta-Caminho (VIURBS) da BHTRANS. Esse programa, de maneira geral, prevê uma série de intervenções viárias na cidade para desconstruir a lógica centro-radial de trânsito. Ou seja, desconstruir a necessidade de ter de passar pelo centro para chegar a qualquer lugar da cidade. Apesar de ser necessário, a prioridade dada ao programa é absurda, visto que este atende principalmente aos interesses dos automóveis privados. É por demais óbvio que a ampliação da malha viária, abertura de novas ruas e construção de viadutos não resolveu, não está resolvendo e não irá resolver o problema de mobilidade de BH ou de qualquer outra metrópole. A frota de carros belo-horizontina cresce 7% ao ano, e é simplesmente impossível comportar esse crescimento com uma ampliação da malha viária que chegue perto desse ritmo, sob pena de transformar a cidade em uma grande e única massa de asfalto.

Para se ter uma ideia das prioridades da PBH, o meio-passe estudantil recebeu apenas 4 milhões de reais no orçamento 2013, menos de 2% dos recursos destinados ao VIURBS. Ou seja, trata-se de uma questão de prioridades e controle do orçamento público, o que é claramente político.

A segunda fonte de recursos também já está aí. São os recursos em vale-transporte pagos pelas empresas a seus funcionários.

Com a instituição bilhetagem eletrônica (cartão BHBUS), esses recursos passaram a ser transferidos antecipadamente para as empresas de ônibus. Além disso, diferentemente dos antigos vales-transporte de papel da década de 1990, é quase impossível para o trabalhador utilizar o cartão BHBUS como “moeda”, vendendo sua passagem ou trocando por outros serviços. Assim, o que se propõe é simples: em vez de pagar às empresas de ônibus, na forma do cartão, o dinheiro da passagem de seus funcionários, as empresas com sede em BH pagariam esse valor ao fundo municipal de mobilidade urbana. Nenhum custo a mais para ninguém.

A terceira fonte de recursos provém diretamente da revisão do contrato de concessão das empresas de ônibus. Apesar de nós, sociedade civil, não termos acesso à planilha de custos das empresas, salta aos olhos que estas auferem lucros altos, mais altos que a média do capital em outros setores e com a vantagem de terem um monopólio. Sem entrar na discussão da municipalização ou não do transporte (que, é claro, é um debate que precisa ser feito), a mera mudança da forma de contratação do serviço (estabelecendo, por exemplo, valores anuais a serem pagos às empresas) já tornaria o serviço bem mais eficiente e barato.

Por fim, a quarta fonte de recursos provém de um IPTU progressivo, que estabeleceria uma equidade de fato no financiamento do transporte. Paga quem se beneficia do transporte público, e não quem utiliza. E, assim, paga mais quem pode pagar mais, paga menos quem só pode pagar menos, e não paga nada quem não pode pagar. Nesse sentido, bancos e o grande comércio e indústria poderiam entrar com a maior parte dos recursos.

A verdadeira mudança da Tarifa Zero

O que mudaria em Belo Horizonte se o ônibus fosse sem catraca, se fosse completamente gratuito?

A resposta: simplesmente tudo. Toda a lógica de se estar e transitar na cidade mudaria. Grande parte da população, que simplesmente não se conhece (e não conhece a cidade), se encontraria, teria acesso aos equipamentos culturais, ao centro da cidade, a outros e diversos rincões da cidade. Se locomover não seria considerado um suplício e não estaria ligado exclusivamente à lógica do trabalho.

Ter acesso a todos os locais da cidade, de maneira gratuita, mudaria a forma como nos apropriamos do espaço urbano, o modo como enxergamos e participamos de sua construção. Significaria, em última instância, uma nova dimensão de liberdade em nossa sociedade.

O acesso do povo à cidade tem se mostrado, muito mais do que o lucro, o verdadeiro medo de nossas elites governantes. E é essa a maior conquista que o Movimento Passe Livre nos deu: demonstrou que é possível e urgente sonhar e mudar esta cidade.

André Veloso é formado em Economia na UFMG e mestrando em Geografia pelo IGC/UFMG. Filiado ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), é a favor de uma vida sem catracas.

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