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Dez críticas ao Realismo Pedestre

Bruno Cava

Para os realistas, não há guerras justas ou injustas, legítimas ou ilegítimas, legais ou ilegais. O jus ad bellum e o jus in bello não passariam de concreções de relações de força quando transpostas ao plano do direito internacional. Pretensões de direito exprimem mais a posição relativa da força de cada ente no interior do sistema, do que a sua posição referida a um justo acima das partes ou da situação concreta. O direito apareceria antes como instrumento complementar para o mais eficiente exercício da força e a melhor promoção de interesses, do que como ferramenta para a realização da justiça entre as partes. Esta é um transcendente moral que somente entra nos cálculos de maneira utilitária, não passando da versão contemporânea de uma velha hipocrisia, outrora codificada como justiça divina ou direito natural das gentes.

Com a recusa de diferenciar as guerras em termos valorativos, neutros quanto à axiologia, os realistas prosseguem o teorema com o seguinte corolário: como não há justos e injustos, na “dura realidade da vida”, a única distinção que faz sentido consiste em falar em vencedores e perdedores. Não importa estar certo, o que não traz consequências duradouras, para a história importa vencer ou ser derrotado. A paz dessa maneira comparece não como o outro da guerra ou a sua negação, mas como o resultado precário de uma vitória pregressa. A paz parecerá sempre justa para os vencedores, que podem usar a força efetuada para impor a aparência da justiça, enquanto a injustiça será a interpretação lógica reservada aos perdedores, que vão ressentir-se e preparar a vingança.

Nesse esquema, a paz é em si instável, pois invariavelmente havia sido alcançada mediante o desfecho de um conflito de forças e nunca pela realização de valores ou pela vitória da justiça. De maneira que a paz se confunde, na “dura realidade da vida”, com uma trégua durante a qual todos os contendores já devem estar se preparando para a próxima guerra. A paz é a suspensão temporária da guerra e não suprime a operação das mesmas forças que se digladiam na guerra aberta. A paz é a normalização da guerra, a sedimentação das relações de força conquistadas pela imposição do mais forte. O fundo latente de toda paz é a reabertura do período de guerra, em geral envolvendo um acerto de contas, devido à mudança das posições relativas dos entes e, em consequência, a pretensão por um quinhão maior da partilha. Quer dizer, no realismo, a esfera do direito de cada qual equivale ao tamanho da força desencadeada pelo ente, ao que ele pode aspirar pelos meios da guerra e demonstrar virtude em abocanhar.

Apesar de reivindicar uma oposição teórica e política a Immanuel Kant, em especial quanto aos desenvolvimentos cosmopolitas e jus-internacionalistas elaborados em “Zum ewigen Frieden” (1795), o pressuposto filosófico dos realistas duros é neokantiano até o osso. Porque as molas teóricas partem da premissa dualista que guilhotina o mundo em dois hemisférios, de um lado os fatos, do outro o direito e a moral, separando-os irremissivelmente entre os âmbitos da ontologia e da deontologia. Os entes do sistema interestatal operariam na lógica de interesses materiais e relações reais de poder, isto é, eles funcionariam no plano dos fatos, das forças, dos entrechoques físicos de energia (ontológico). Já o direito, a moral, os ideais e mais em geral os valores existiriam num outro plano, deontológico, num âmbito transcendente em relação ao primeiro. É impossível deduzir normas universais e máximas éticas a partir da realidade das forças desencadeadas na arena global, de maneira que tais normas universais só podem ser tecidas depois, como manto acobertador dos interesses concretos por trás. Não há verdade absoluta nem cultura universalizante, então cada ente pode representar para si o grau de justiça ou legitimidade, sua própria concepção do que seja poder legal, guerra justa ou caráter democrático, sendo tão mais bem sucedido em propagar seus próprios pontos de vista quanto mais poderoso for.

Portanto, cabe aos realistas não se deixarem guiar pela hipocrisia objetiva das ideias, valores e normas, vendo além do Véu de Maya o funcionamento físico das forças em jogo. Nada no plano dos valores e normas determina a natureza das forças, servindo a elas como apêndice e não bússola moral. O âmbito ontológico é passível de ciência e descrição, eminentemente materialista, enquanto o âmbito deontológico ou axiológico se pauta por escolhas valorativas e predisposições culturais, reino dos idealistas e juristas.

Este o primeiro bloco de argumentos.

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O segundo bloco envolve uma apreensão da história da modernidade ocidental. Durante a Renascença, aos poucos a civilização europeia se foi libertando de concepções mágicas ou dogmáticas, abrindo-se à ciência material das coisas, ao método de conhecimento fundado na evidência empírica e na matematização dos processos naturais. Isto permitiu aos naturalistas renascentistas, inspirados longinquamente pela “Física” aristotélica, a cindirem fato e direito, suspendendo o juízo sobre os ensinamentos tradicionais quanto à ordenação do mundo para vê-lo com olhos livres, testá-lo, remodelá-lo, experimentá-lo. Isto também afetou a ciência política, levando ao recorte epistêmico do Quinhentos que, nos almanaques de pensamento político, se explica pela cisão entre política e moral, entre a lógica do poder e a busca do bem comum (o que em Tomás de Aquino, por exemplo, apareciam como matrizes indissociáveis).

Sempre conforme os realistas, tais mestres originários da política moderna se colocaram a serviço de príncipes e repúblicas, o que elevou o grau de autoconsciência dos poderes nacionais emergentes quanto às condições de exercício e expansão de suas próprias forças em relação ao entorno. No chavão, o livro mais citado como exemplo desta dobradiça, claro, é “Il Principe” (1513/1532), que teria explicitado com todas as letras o realismo amoral, desvinculando a práxis de fundamentos éticos. Todo esse movimento do pensamento na Renascença ressoa com a afirmação gradual de estados nacionais centralizados, pari passu com o desenho do sistema interestatal europeu. Bem aconselhados e munidos de teorias realistas, os príncipes deixam para trás concepções “atrasadas” do poder, ainda calcadas na religião (Agostinho, Tomás de Aquino) ou no direito natural clássico (dos estoicos latinos a Hugo Grotius).

O desencanto da percepção na origem do estado moderno teria desvencilhado os Novos Príncipes, como passam a ser chamados, dos antigos escolhos das práticas políticas. Elevando-os assim ao conhecimento direto da economia das forças, aprimorando a qualidade das estratégias, o que a seu passo retroalimentou a dinâmica de centralização dos estados e da competição entre eles, em circuito virtuoso de teorias e ações de estado. Nos manuais de filosofia política, é o capítulo sobre a era da Razão de Estado, a partir da segunda metade do Quinhentos, inicialmente por escritores italianos pós-maquiavelianos como Guicciardini, Botero ou Zuccolo.

Mas de onde vem a enunciação dos interesses nacionais? Porque em cada nação, as diversas elites concorrem entre si e representam diferentes interesses visando à conservação e à expansão de suas riquezas e negócios. Tais interesses podem ser contraditórios e divergentes. No entanto, na mesma medida em que o poder soberano se afirma sobre os antigos proprietários, as elites adquirem consciência da necessidade de competir com as elites de outras nações. Mas se a visão delas é tática, o príncipe vai servir-lhes de olhos estratégicos, voltados ao planejamento de longa duração. Cabe à instância integrativa da forma-estado subsumir a diversidade de interesses das elites no que seria o interesse nacional, aquele que, no seu conjunto integral, permite maximizar a projeção de poder político e econômico dessas elites mesmas diante das elites dos demais estados nacionais. É a simbiose entre estado nacional e nova classe em ascensão dos negociantes. Os estados-nações na modernidade se tornam assim instrumentos epistêmicos, pontos focais para a enunciação do interesse nacional, atuando como comitês gestores e planejadores em nome das elites internas (mesmo por vezes contrariando-as). Impulsionam a projeção do poder no espaço interestatal de concorrência, aonde passam a desaguar as principais tensões distributivas e competitivas.

Voltando à guerra, o que ela se torna nessa passagem? Não mais um meio de propagar a religião ou a vontade divina (guerra santa, supostamente em Agostinho), ou meio civilizatório de extensão do direito natural em relação aos bárbaros (guerra justa, em Cícero), mas um recurso para o fortalecimento do estado nacional, interna e externamente. Para os realistas, a ordem internacional é antes de qualquer outra coisa a resultante física dos embates de forças e da correlação entre os entes, seus entrechoques e alianças. Ceteris paribus, o direito internacional público e as instituições de governança global não são mediações eficazes para a construção da paz, pois estaríamos removendo de foco a natureza concreta do processo. Para os realistas, seria ingenuidade achar que se poderiam encontrar pontos de convergência de direito ou por princípio, bem como submeter os estados-feras a mediações pós-soberanas. Seria preciso enxergar além da cortina colorida dos valores professados e ver a “dura realidade da vida” dos interesses nacionais que estão sempre detrás das declarações valorativas, inclusive das declarações pós-soberanas.

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Agora, o terceiro bloco de argumentos realistas “hard-bitten”.

Quando, eventualmente, um estado-nação poderoso consegue sobrepujar todos os demais em sua trajetória expansiva de poder (militar, monetário e suave/cultural), ele muda de Liga, operando o milagre da conversão da água suja em vinho. É que, como ele se impôs com tal superioridade acima dos demais, reuniu os requisitos para exercer o poder de maneira conglobante, a ponto de transfigurar a representação de seus interesses nacionais particulares como sendo o interesse de todos. Sua posição relativa notável se faz representar como posição axiológica absoluta, medida das medidas e pedra angular do sistema interestatal. Criticando o que seriam teóricos da escola liberal de Relações Internacionais, para os realistas isto não significaria a obtenção da Paz Perpétua, sob a tutela de um árbitro supremo, pondo fim à história da modernidade, enquanto história do sistema interestatal de soberanias concorrentes. Não. Para os realistas, este será um período de guerra internalizada, um estado de paz superficial e cínico, tensionado pela explosão de ressentimentos de todas as ordens por parte dos que, na prática, subsistem no sistema como derrotados. Inconformados pelo status inferiorizado, ressentidos por possuírem aquém do quinhão pretendido, aguardam a hora propícia para dar o troco.

A ordem internacional de valores não passaria, em todo caso, da enunciação dos interesses de um determinado grupo de elites nacionais entrincheirado numa forma-estado que se apresenta como forma universal. Noutras palavras, é a hegemonia na ótica dos realistas: a conquista vem reforçada pela dominação valorativa, o poder duro (militar, econômico) pelo suave (cultural), colocando o âmbito deontológico (o valor dos valores) para trabalhar a serviço do ontológico (a dominação de fato). O estado-nação hegemônico ou simplesmente Hegemon não se satisfaz apenas exercendo a dominação, ele vai redobrar o predomínio para dominar também a esfera do direito, da moral e dos valores — tudo para reproduzir e perenizar a sua condição hegemônica.

Quando, todavia, a posição privilegiada do Hegemon é ameaçada por uma alteração significativa nas correlações de força, uma que coloque o grau de sua superioridade em xeque, quando surgem rivais ou quase-rivais, aí ele estremece e se vê constrangido a sair do armário. Violentamente. Nesse momento, dizem os realistas, sucede uma crise orgânica da hegemonia estatal, na qual as fissuras da autorrepresentação dos interesses nacionais do Hegemon se alargam. Começa a falhar a apresentação mesma aos demais como representante do interesse de todos. É a hora mais agônica, na qual os rearranjos e reacomodações das posições relativas dos entes no sistema interestatal rangem, geram fagulhas, encerrando a trégua e alastrando guerras quentes.

Isto se dá por razões estruturais que forçam os estados a guerrear para assegurar posições de direito que correspondam às posições de força ajustadas. Eles são movidos por condicionantes de longa duração que somente podem ser conhecidas quando se olha por uma lente realista, capaz de enxergar os determinantes históricos e políticos das ações e decisões na conjuntura. Pois não há outro modo de desfazer a paz dos vencedores senão pela irrupção franca da beligerância por parte dos que haviam sido derrotados ou que assim se consideram no presente. Tal realidade convulsiva implicada nos momentos críticos de ascensão e queda de Hegemons remontaria, para alguns, desde a Paz de Vestfália (1648), que pôs fim às terríveis guerras religiosas na Europa. Para outros, sempre teria sido assim na história política. Inclusive esse esquema conferiria inteligibilidade à Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), quando se teria dado a substituição da hegemonia fundada no poder terrestre-agrícola da pólis de Esparta pela hegemonia de poder marítimo-comercial de Atenas. A dita “Armadilha de Tucídides”, segundo uma interpretação — bastante em voga ante a ascensão da RPC, porém não-convincente, — da obra magna do historiador ateniense.

Como se sabe, na nossa conjuntura de 2022, os realistas diagnosticam os Estados Unidos como o Hegemon em crise da vez, no capítulo da modernidade conhecido por Declínio do Império Norte-Americano. A Rússia e a China surgem nessa reciclagem da velha tese declinista como os principais contestadores da paz americana. A primeira para renegociar os termos da derrota na Guerra Fria e a segunda, num horizonte muito mais alargado e ambicioso, para rediscutir o primado conquistado pelo Ocidente na modernidade como um todo. Em ambos os casos, a proposta de uma reordenação do sistema é entendida como afronta por parte das elites e teóricos alinhados com o Hegemon.

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Levando em conta a exposição acima de grumos argumentativos da escola realista, em linhas bastante gerais e esquemáticas, esboço abaixo dez parágrafos críticos do por que esse motor de descrições e prescrições não funciona no mundo real. Ou melhor, funciona desde que adotemos um certo ponto de vista ou valor norteador.

1) Essa concepção expansiva do poder é tautológica. O poder parece ser uma energia que se move por si mesma, como um tipo de flogisto ou quinto elemento. Por mais que alguns tentem articular a emergência na modernidade do sistema interestatal à do sistema capitalista, e associar a tendência expansiva do poder à compulsão estrutural pela expansão do capital, ainda assim, a concepção continua tautológica. Tanto o poder soberano quanto o capital que o animaria operam como sujeitos principais da história e, portanto, principais agentes da mudança ou da conservação.

2) Além da concepção tautológica, ainda se incorre na concepção homogênea do poder. Por um lado, há uma recusa saudável dos maniqueísmos, ao não cogitar de estados-nações certos ou errados, em guerras justas ou injustas, legítimas ou ilegítimas etc. Isto é válido até certo ponto, o problema é a extremação da crítica ao absolutismo valorativo nos levar ao polo simétrico do relativismo, onde vale o absoluto da escolha subjetiva. Ao criticar critérios de transcendência moral como hipocrisia e falsificação histórica, critica-se qualquer critério que seja, qualquer valor e mesmo a criação de valores, submergindo destarte num lusco-fusco indiferenciado que perde de vista aquilo que se pretendia estudar como objeto primordial da teoria: a natureza mesma do funcionamento do poder. O problema do realismo não é que se preocupa demais com o poder, mas sim que não se preocupa o suficiente, amassando-o numa farofa. Do fato da guerra não admitir um fundamento ético último, não se pode deduzir que não exista uma ética emergente nas guerras e em seus vários tipos (guerra popular assimétrica, guerra de independência, guerra colonial, guerra híbrida etc) ou nas maneiras de iniciá-la e terminá-la.

Talvez falte uma leitura atenta de Foucault para sair da dureza truncada do realismo.

3) Falando nisso, os autores históricos usualmente invocados como referências relevantes do realismo, se lermos com atenção as obras e não compiladores preguiçosos, vamos ver como… não é bem assim. Deveríamos antes falar de uma interpretação realista de autores que, à luz do que escreveram, não aceitariam ser achatados como teóricos idealistas da “guerra santa” (Agostinho) ou teóricos realistas da “amoralidade da política” (Maquiavel). Já que citei, vou discorrer sobre esses dois casos apenas.

4) No primeiro caso, em “De Civitate Dei” (426 d.C.), a guerra justa é atrelada à necessidade de defender a cidade mundana, jamais sendo justificada em si mesma. Agostinho não é um fanático beligerante, longe disso, sua obra transpira de uma preocupação consistente com a liberdade humana e a união dos povos diferentes. É de uma vulgarização sem quartel reduzir um filósofo tão sofisticado, teórico do fundamento utópico da empresa católica, à apropriação que dele foi feita por uma parte da doutrina da Igreja na época da Contrarreforma. No mesmo livro, podemos ler linhas do tipo: “Enquanto esta Cidade Celestial está em peregrinação na terra, ela convoca todos os povos e assim reúne uma sociedade de estrangeiros, falando todas as línguas”.

É verdade que, em última instância, há um telos transcendente na peregrinação agostiniana pela terra, em que a guerra justa se insere no quadro envolvente da batalha escatológica contra o Mal. Mas é preciso interpretar sistematicamente, pois o Mal em Agostinho está indexado à decadência do Império Romano do Ocidente, dequela sociedade hierárquica, opressora, encimada por uma aristocracia corrupta. De modo que, para Agostinho, “grandes impérios são apenas projeções megalomaníacas de pequenos ladrões”. Num mundo em crise, a concepção de poder de Agostinho não deixa de ser pessimista, e amiúde se tem a impressão que o poder corrompe na medida de sua acumulação, porém essa mesma obra brilha de lampejos revolucionários quando fala nas relações entre cidade divina e terrestre. O reino dos justos é uma construção material de êxodo, o reino deslizante dos irmãos em Cristo, da igualdade perante os céus, mas trazida à terra.

5) Com relação à vulgarização da obra de Maquiavel pelos maquiavélicos, uma tradição de 500 anos, é melhor não anotar easy points citando a infinidade inesgotável de passagens e raciocínios do filósofo florentino nos “Discorsi” (1515, 1 ed. de 1531), antídoto contra o maquiavelismo rasteiro dos teóricos da Razão de Estado, também durante a Contrarreforma. Peço apenas ao leitor fazer o exercício de ler “O príncipe” de trás para frente, começando pela exortação à libertação das cidades italianas em relação às sucessivas invasões imperiais (França, Sacro-Império, Espanha). Todo o esforço operístico maquiaveliano, quando tomado em seu conjunto, se inscreve no escopo de guerras de independência das repúblicas e pequenos principados no auge do Renascimento.

Sua teoria se acopla à busca por resistir aos poderes imperiais, para levar a Renascença ao plano das instituições cívicas e republicanas. Permitindo desse modo que o povo devenha príncipe (e o príncipe devenha povo), na dupla luta contra os poderes soberanos e por uma nova soberania condicionada pela incipiente democratização do poder. Nada poderia ser mais distante da obra de Maquiavel do que uma leitura realista vulgar na qual as guerras são projeções de poder dos estados que agiriam sem escrúpulos, mobilizando todos os meios disponíveis em prol da expansão e autoafirmação.

6) A concepção de poder não é apenas tautológica e homogênea, como estadocêntrica. Os realistas são apaixonados pelos mapas geopolíticos e pelos estados com suas fronteiras e territórios. É uma fascinação pelas linhas soberanas. Nisso, essa escola falha como descrição e como prescrição.

O marco para a consagração do princípio da soberania nacional se deu em Vestfália, em 1648, quando foi formalizado o sistema interestatal. Uma solução encontrada pelos poderes europeus dinásticos para conter os transbordamentos da modernidade que vinham desde baixo e se manifestavam na proliferação de jacqueries, revoltas urbanas e movimentos milenaristas como de Thomas Müntzer. A consolidação do princípio soberano foi uma resposta à eclosão de ímpetos tumultuários, na esteira das liberações desejantes ao longo da Renascença e da Reforma. Porém, esse agenciamento contratumultuário do Congresso de 1648 não venceu de uma vez por todas, mas normalizou a repressão das forças sociais insubordinadas na forma do exercício do poder soberano de maneira concertada com os outros poderes soberanos. A isonomia formal dos estados-nações nasceu como isonomia na contrarrevolução. Eis aí o que não aparece na hipermetropia estadocêntrica: a dinâmica bastante material, a força bastante concreta, do tumulto subjacente que continuou agindo, para dizê-lo com Marx, como uma marmota pelas entranhas do sistema interestatal.

É essa luta muitas vezes nas sombras — de classe, segundo Marx — que confere inteligibilidade aos acontecimentos e deslocamentos da história, e não a luta entre estados, um fenômeno derivado e de segunda mão (nem por isso desimportante). Não se trata de apenas justapor aos atores estatais o que seriam atores não-estatais e instituições internacionais, em nome da complexidade e do refinamento de uma teoria, em linhas grossas, correta. Porque a teoria está errada desde seus pilares. Não é um problema de falta de complexidade, que poderia ser remediado com a sofisticação dos constructos conceituais. Ela falha no básico das descrições, ao subjetivar os estados (ou na versão mitigada, os capitais/burguesias nacionais), assumidos como sujeitos principais da história mundial.

7) O longo amanhecer da formação dos estados nacionais, um processo que começa na Idade Média, relega ao segundo plano as dinâmicas concomitantes da densificação das trocas, dos êxodos e das revoltas de novo tipo que levaram ao colapso do feudalismo. Sim, de fato, as Cruzadas foram um momento decisivo da evolução militar e monetária dos estados europeus atlânticos. Contudo, há uma história mais importante ocorrendo nos entremeios, ligada à reabertura do comércio no Mediterrâneo, ao desenvolvimento dos instrumentos bancários e comerciais de débito e crédito extraestatais ou mesmo antiestatais, aos intercâmbios culturais propiciado pela reaproximação com Constantinopla, e à penetração das ciências árabes, como a matemática com zero, a astronomia e a transposição, através das traduções do grego, dos clássicos antigos, com destaque para a recepção de Aristóteles no século XIII.

Toda essa multiplicidade é achatada na teleologia da formação dos estados nacionais que seria o fato culminante e decisivo da passagem da Idade Média à Idade Moderna Inicial.

[Para um breve excurso sobre a gênese da moeda na Idade Média, para além da dicotomia estado x mercado, sugiro consultar o livro que escrevemos Giuseppe Cocco e eu, “A vida da moeda” (ed. Mauad, 2020).]

8 ) A concepção de poder dos realistas não é apenas tautológica, homogênea e estadocêntrica, como também e sobretudo idealista. Aqui é o mesmo problema da maioria das escolas filosóficas neokantianas, que igualmente guilhotinam os domínios de fatos e de valores. Uma premissa fundante dos realistas é que eles se veem como consequência de uma escolha. Funciona assim: eu escolho ser realista, como poderia ter escolhido ser liberal, construtivista ou, whatever, da escola inglesa de RI. Escolho ser realista e vou convencer o máximo de pessoas, digamos, da esquerda, a serem também realistas, pois é melhor para compreender o mundo e, num segundo momento, decidir como melhor agir nele. É como se tivéssemos diferentes lentes possíveis para enxergar o mundo e competisse optar por aquela que nos seja mais adequada para os objetivos que nos propusemos. Que facilidade! Como se fosse uma camiseta que eu escolho vestir, assim como poderia escolher outras. Ou então, de modo eclético, usar alternadamente várias camisas, para poder enxergar o mundo de várias formas…

9) Isto desvela o contraintuitivo idealismo do realismo, a Idealpolitik na base da Realpolitik, que aliás é o mesmo problema de fundo de neokantianos e alguns positivistas. Se os ideais, os valores e a moral habitam um plano deontológico/transcendente que nos separam em relação à “dura realidade da vida” (animada por interesses materiais e relações reais de força), nos afastando de um diagnóstico esclarecido sobre a história e o funcionamento do mundo, por que eu escolheria a escola realista em primeiro lugar, a partir do quê? O que é que nos permitiria acordar do feitiço pervasivo do mundo das representações secretadas pelos poderes, para podermos furar a Matrix e optarmos por ver as coisas como elas realmente são? É arbitrário engolir a pílula vermelha e sair das ilusões, não é?

A resposta de alguns autores da escola (por exemplo, Mearsheimer, que está em alta nos círculos realistas) seria: o realismo trabalha a favor da estabilidade. É melhor escolhê-lo porque, vendo como as coisas realmente são, é mais fácil aceitar a realidade, que dói menos. O primeiro passo da ciência é identificar os fatos. Então, segundo Mearsheimer, este é o cabedal de metodologias para uma visão do todo que promova a segurança internacional, a segurança “geopolítica”. As guerras não poderão ser jamais eliminadas da equação, já que o estado natural de coexistência dos entes no sistema interestatal é o estado anárquico de guerras, bellum omnia omnes, derivado da competitividade intrínseca das disputas de poder. Mesmo nos períodos de pax imperial sob a tutela do Hegemon, haverá muitas guerras, diretas ou por procuração, que ele conduzirá ou homologará para evitar ou atrasar a perda da condição unipolar. Ainda que as guerras alinhadas aos interesses hegemônicos apareçam, por efeito estrutural, como guerras justas, legítimas ou humanitárias, visto que o critério de definição da justiça da guerra é dado indiretamente pelo próprio Hegemon, por meio de soft power.

Os realistas dirão, compreender a “dura realidade da vida” nos permite ao menos evitar guerras desnecessárias, se soubermos escutar as preocupações de cada ente do sistema em deter e manter o seu quinhão devido, o “direito” que é igual à esfera de força capaz de ser projetada. As relações interestatais podem assim ser melhor calibradas levando em consideração a posição relativa concreta de cada qual, inclusive quando houver contestação do Hegemon e da ordem internacional por ele secretada. É interessante como o realista morde o próprio rabo, pois a escolha pelo realismo é também a escolha de certos valores e certos ideais, quais sejam, a segurança dos estados, a estabilidade dos poderosos, a “justiça” dos mais fortes.

Mas indo além de Mearsheimer, poderia a teoria realista operar invertida? Seria possível uma versão às avessas, de esquerda, que opere não pela estabilidade, mas pelo tumulto? Não. Dentro dessas linhas, não mesmo. Porque, primeiro, quanto mais nos distanciamos do jogo de poder dos estados no sistema interestatal, mais as relações e dinâmicas de poder vão ficando opacas. Segundo, porque não se admite que o conhecimento e as teorias possam emergir das próprias lutas, numa criatividade imanente aos movimentos de transformação. Essa dupla insuficiência condena as teorias realistas, quando em seu pretenso uso de esquerda, a se livrarem da cobra, mas não do veneno, que segue paralisando o corpo teórico-político.

10) Do que encerro o percurso, apenas esboçado, com a consideração final que o realismo é mais uma Grande Narrativa, ainda que se ofereça como neutro em relação a ideologias. O problema não seria alguma simplificação extrema, a título de ferramenta descritiva e analítica, que poderíamos usar ao bel prazer, no feliz supermercado relativista. O problema não é esse, por sinal seria algo pouco problemático, o problema é a complexificação estéril de esquemas, explicações e premissas, que no fim das contas, devido à guilhotina epistemológica, podem ser manobrados arbitrariamente pelos realistas para reafirmar o seu mais caro valor: o Estado, em sua acepção vestfaliana.

Num entretempo histórico marcado pela multiplicação de revoluções e contrarrevoluções, e pela emergência de novos sujeitos antagonistas nas redes e nos fluxos da globalização, poderíamos renomear a escola realista pelo que ela realmente é: ala idealista do Partido da Ordem.

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