Por Silvio Pedrosa
A história do funk enquanto gênero musical e movimento cultural no Brasil é atravessada pela história das favelas e das relações que estas estabelecem com a cidade em geral. Como se sabe, as favelas são um fenômeno da urbanização do Rio de Janeiro (segundo o censo de 2010, cerca de 22% da população da cidade vive nelas) e desde o início de sua história, ainda na passagem do século XIX para o século XX, elas foram classificadas como um problema de várias ordens (sanitário, policial, moral, político e cultural). O preconceito contra a favela pouco a pouco se estabeleceu e identificou como preconceito contras seus moradores.
Quando o funk emergiu enquanto gênero musical e movimento cultural, a partir sobretudo da década de 1990 no Rio de Janeiro, rapidamente se chocou contra essa história secular de preconceito, racismo, estigmatização e criminalização. Os bailes foram associados à arrastões e proibidos no “asfalto”, ficando restritos às favelas controladas pelas facções de tráfico de drogas. MCs e empresários envolvidos com o funk foram investigados e até presos. E até mesmo uma CPI foi criada para investigar o movimento e seus bailes em 1999.
Desde então, conquanto a história de preconceitos e criminalização não tenha cessado, o funk foi paulatinamente incorporado à vida nacional (sendo gravado por grandes nomes históricos da música brasileira como Caetano Veloso e Roberto Carlos) e seus artistas, como a cantora Anitta, catapultados às primeiras posições das paradas de sucesso globais e passou a figurar nas listas de nomeados e premiados nos prêmios mais importantes da música internacional, como por exemplo o Grammy.
Nos últimos dias essa história de racismo, estigmatização e criminalização ganhou mais um capítulo. Após o afastamento de gestores escolares em função de uma apresentação equivocada de um grupo artístico filmada e tornada pública numa escola municipal da Cidade de Deus, instalou-se um clima de pânico moral em relação ao funk nas escolas municipais. Uma outra gestora acabou então afastada por um vídeo em que dança com os alunos da creche que até então comandava. Não há nada de obsceno nos seus movimentos e o vídeo circulado por políticos e militantes do conservadorismo nas redes sociais tem apenas dez segundos.
Sobre o caso dessa gestora de uma creche de Costa Barros, o secretário de educação, Renan Ferreirinha, publicou um vídeo no qual promete combater aquele tipo de comportamento. No mesmo vídeo, Ferreirinha diz que o projeto da prefeitura para a educação é muito claro e envolve três objetivos principais: ampliação do número de vagas em creches, ampliação do modelo de escola em tempo integral e modernização das instalações das unidades escolares.
Todos os objetivos são bastante acertados e necessários. O problema é que eles são decisões administrativas e pouco tocam no aspecto principal da questão: a relação estabelecida entre as escolas e os territórios nos quais elas se encontram. Como é muito provável que o secretário e sua equipe saibam, o desencontro entre a burocracia educacional que trabalha nas escolas e os alunos das classes populares que moram nos subúrbios e favelas da cidade é apontado na literatura pedagógica e sociológica como um dos grandes gargalos das melhorias de aprendizagem e desempenho (seja no Brasil, seja em outros países). Gestores e professores de classe média e formados para atuarem sob certa ilusão universalista — que acaba retirando a singularidade do público de sua atuação profissional — acabam se chocando (em diversos sentidos) com seus alunos e os territórios onde eles vivem.
Um desses muitos choques guarda relação com o funk e sua presença na cultura popular das favelas, periferias e subúrbios da cidade. É impossível não estabelecer algum tipo de relação com as manifestações culturais dos territórios onde se atua. A gestora da creche em Costa Barros dançava com seus alunos quando foi filmada, o quê indica que ela estabelece um relação positiva e reflexiva com a cultura do seu território e provavelmente está mais preparada para atender o seu público de acordo com a literatura especializada e a compreender as configurações socioculturais do lugar em que funciona sua unidade.
O pânico moral difundido pelo conservadorismo protagonizado por vereadores e outros agentes militantes da criminalização e estigmatização das favelas exigiu seu afastamento, já mirando as eleições municipais do ano que vem. O secretário e sua equipe decidiram ceder diante da repercussão, afastando gestores em nome de uma disposição moral que não é socialmente unívoca. Seria interessante que voltam-se atrás e iniciassem um debate sobre os (des)encontros entre as escolas e seus territórios, antes de reagir de maneira punitiva na esteira do pânico moral difundido por quem não se choca com aulas interrompidas pelas operações policiais e os corpos que são vitimados nas favelas. Sete deles foram de crianças em 2023 até agora. Que os corpos (em sua maioria negros) dançando se tornem menos chocantes que os corpos (também infelizmente majoritariamente negros) assassinados. Seria um pequeno passo para enfrentar a barbárie em que vivem os pobres no Rio de Janeiro.