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Junho 2013: a insistência de uma percepção

Agradecimentos [i]

Alexandre F. Mendes[ii]

Introdução   

Nos últimos dias do ano de 2013, um jornalista do programa Roda Viva indagou ao sociólogo Francisco de Oliveira o que teria marcado aquele turbulento ano: as manifestações de rua, a prisão de alguns acusados do Mensalão, ou algum outro assunto que ele achasse relevante. Oliveira respondeu que 2013 seria lembrado pela morte do líder político sul-africano Nelson Mandela, justificando: “é o que fica de uma vida exemplar, enquanto os outros assuntos tendem a ser comidos pelo tempo e, um pouco, pela banalidade do mal, como dizia Hannah Arendt”[iii].

A resposta não só é inesperada, como revela duas características que podem servir como o nosso ponto de partida: a) de um lado, ela aponta para um ceticismo, uma desconfiança que acompanhou as análises de Junho de 2013, desde o início, e que tem a ver com a possibilidade de pensarmos um novo possível; b) de outro, mesmo no caso de reconhecimento da força de Junho, ela nos indica que o tempo exercerá o seu papel inexorável de restauração, condenando-o à irrelevância dos assuntos episódicos e sem maior importância.

No livro Mil Platôs (1980), referindo-se a Maio de 1968, Deleuze e Guattari constataram que é comum que pessoas muito velhas ou muito limitadas percebam o acontecimento melhor que os mais avançados e experientes especialistas da política. É que elas enxergariam com mais rapidez e sensibilidade as mutações sociais, os fluxos desviantes, as novas exigências coletivas, justamente, por não estarem tão presas aos segmentos duros da macropolítica, com suas grandes clivagens e racionalidades ordenadoras[iv].

Em 1968, elas tiveram a capacidade de reagir melhor que muitos políticos, militantes partidários, sindicalistas e pessoas de esquerda em geral que, “destituídos da máquina dual que fazia deles interlocutores válidos”, continuavam afirmando que as condições ainda não estavam dadas, que não havia organização e que aquele levante não fazia qualquer sentido.

Ultrapassar as máquinas duais do pensamento

O propósito desta breve apresentação é, em primeiro lugar, compreender como o campo de possibilidades aberto por Junho de 2013 acaba desaparecendo em análises que, conscientemente ou não, retomam máquinas duais, citadas por Deleuze e Guattari, produzindo, ou (i) uma sobreposição que julga os levantes de acordo com o conflito entre grandes trincheiras, ou (ii) um corte que impede o mapeamento de intensidades que ainda circulam. Em segundo lugar, pontuaremos algumas direções movediças lançadas por Junho de 2013, ainda presentes na atualidade, que desafiam o pensamento binário em razão do seu caráter ambíguo, múltiplo e flutuante[v].

A primeira forma, no campo analítico, de fazer-desaparecer Junho de 2013 é condená-lo a um embate dualista entre duas grandes coalizões, a rentista e a produtivista. É a fórmula de André Singer (que poderia ser estendida também a Jessé Souza). Nessa linha, o movimento de Junho de 2013, apesar de sua heterogeneidade inicial, teria levado à intensificação das “forças liberalizantes” que culminaram no fim do pacto inclusivo que estava sendo pavimentado pelo lulismo, seja através do tempo longo do reformismo fraco (Lula) ou da aceleração do ensaio desenvolvimentista (Dilma). Os levantes de 2013 são condenados a servirem de cavalo de batalha das forças do neoliberalismo e das finanças, caindo no lado errado da trincheira, da disputa entre coalizões no interior do lulismo, culminando no impeachment de 2016 (SINGER, A. 2012; 2013; 2016).

A segunda forma de fazer desaparecer 2013, já numa tradição bem mais crítica ao lulismo, determina uma nova ruptura, nos anos subsequentes dos levantes, que apagaria as dimensões de revolta social presentes no momento da irrupção. É o caso de Ruy Braga, que corretamente percebeu em suas enquetes operárias que no interior da suposta pacificação lulista proliferavam insatisfações sociais relacionadas à precarização do trabalho, às novas formas de espoliação urbanas e ambientais e aos grandes projetos ligados a Copa e Olimpíadas. No entanto, embora Junho tenha determinado uma ruptura com relação às formas de regulação e acumulação do lulismo (pós-fordismo financeirizado), a passagem para um novo regime de espoliação social determina uma nova clivagem que separa a rebeldia do precariado, de um lado, e as classe médias golpistas, de outro. O pós-Junho é marcado, então, pelo signo negativo de novas espoliações, golpes parlamentares e de novos “autoritarismos econômicos e políticos” (BRAGA, R. 2012; 2017).

A terceira forma, por fim, na linha de autores que trabalham a centralidade da subjetivação política, Junho de 2013 não teria logrado constituir um corpo político, sendo condenado a vagar como uma alma ou um “assombro” a espera de uma materialização. Junho aparece como “força bruta de negação”, como “uma explosão bruta da revolta” (Safatle), que foi derrotada pelas forças de reação, perdendo-se em fragmentações, lógicas identitárias e arcaísmos. Para Pelbart, Junho teria sido desprezado, apagado, esquecido pelo governismo à época e cooptado pela oposição, se mantendo, hoje, apenas como um “espectro” diante de uma sucessão de golpes sem fim (SAFATLE, V. 2012; 2014; 2017; PAL PELBART, P. 2018).

Com efeito, seja por sua adesão à trincheira neoliberal, pela derrota frente ao novo regime de espoliação social, ou por constituir espectro destituído de corpo, Junho de 2013 é remetido a novos dualismos que impedem um mapeamento que seria do tipo rizomático: aquele que segue as direções movediças, as sucessões de instabilidades, as novas conexões heterogêneas e flutuantes que se desdobram do acontecimento[vi]. Seríamos capazes de nos manter em um terreno tão ambíguo e instável? Poderíamos reabrir o nosso juízo, a nossa avaliação, não para ter mais um ponto de vista sobre Junho, mas para considerar que Junho de 2013, ele mesmo, lançou uma série de pontos de vistas e uma visão do intolerável que reclama uma nova sensibilidade?

Direções movediças e agenciamentos flutuantes

Então, quais direções movediças poderiam ser apontadas? Primeiro, que há um esgotamento definitivo do modelo que opõe desenvolvimentismo e neoliberalismo, tendo Junho atacado a dupla implicação ad infinitum entre as chamadas coalizões produtivistas e rentistas (como nos mostra o caso da Petrobrás)[vii]; segundo, que não houve qualquer ruptura em 2016 no regime de acumulação, e sim uma tentativa fracassada de gerir a crise através do aprofundamento de vetores que já estavam estabelecidos anteriormente (reformas, ajustes, alianças políticas indiscriminadas etc.)[viii]; terceiro, que do ponto de vista dos levantes, a corrupção não é um assunto secundário ou moralizante, mas expõe o modo de organização das novas relações entre público e privado (nos moldes analisados por Francisco de Oliveira desde o Ornitorrinco[ix]) e os seus terríveis impactos nos espaços de decisão (daí a relação incontornável, embora com desdobramentos limitados e imprevisíveis, entre Junho de 2013 e a Lava Jato[x]); quarto, que o consórcio oligárquico público-privado, reorganizado nos últimos anos, continua impondo à população a conta de um modo de governo baseado no saque generalizado e, por isso ressoa, de 2013 a 2018, o grito: “nós não pagaremos essa conta” ; quinto, que a nova visão do que nos é intolerável se recusa a ser controlada pelas velhas polarizações forjadas no sistema político (PT x PSDB), e também pelas novas, aquelas que se apresentam no pós-Junho de forma ainda mais mistificada, na forma de guerras culturais e de narrativas; sexto, que no ato de recusa das armadilhas dualistas que desejam restaurar Junho, foi criado um terreno político difuso e heterogêneo, altamente mobilizado, multi-organizado e com inteligência coletiva própria, que busca materializar a nova distribuição do sensível produzida por Junho de 2013.

Encontrar brutalmente o que tínhamos diante dos olhos

Bastou que os levantes se renovassem a partir de condições reais da própria existência – a emergência da luta dos caminhoneiros por todo o Brasil – para mostrar, mais uma vez, como os modos de governar a nossa vida se tornaram obsoletos e incompatíveis com o espaço-tempo já aberto desde Junho de 2013 (e não só a relação com o sistema político, mas também com a cidade, o transporte, o ar que respiramos, a nossa alimentação etc.). Na dinâmica viva do acontecimento, também os novos dualismos que tentaram reorganizar o pós-Junho passaram a soar já antigos e até irrelevantes (a retroalimentação cultural dos grupos de direita e de esquerda, o falso jogo entre oposição e situação no sistema político, a divisão entre golpistas e golpeados – todos incapazes de fazer frente à fratura provocada pelos novos levantes).

É, portanto, o esforço em afirmar uma nova percepção já conquistada (aquilo que já vimos e não queremos deixar de ver) que marca a insistência do agenciamento político instável, flutuante e sem coordenadas prévias que emergiu em Junho de 2013. É ele que, a cada nova investida, recusa as máquinas duais que tentam domar e se sobrepor ao acontecimento. Seria o caso de pensar se não estaríamos diante da profecia de Francisco de Oliveira, às avessas: é Junho que parece comer incansavelmente o tempo, devorando com ele as velhas trincheiras que tornam a ação política impossível.

Bibliografia:

BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012.

________ . Rebeldia do Precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo, 2017.

CAVA, Bruno. A terra treme. Leituras do Brasil de 2013 a 2018. Rio de Janeiro: Annablume, 2016.

COCCO, Giuseppe. Korpobraz: por uma política dos corpos. Rio de Janeiro: Mauad, 2014.

________. “O levante de junho atacou o hardpower brasileiro”. Entrevista concedida ao IHU online, em 27 de setembro de 2017. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/572064-o-levante-de-junho-de-2013-atacou-o-hard-power-brasileiro-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco Acesso em 21 de abril de 2018.

DELEUZE, G; GUATTARI. “Mai 68 n’a pas eu lieu”. In: LAPOUJADE, D. (Org.). Deux régimes de fous et autres textes. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. ;

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.

________. “O momento Lenin:. In: Novos estud. – CEBRAP,  São Paulo ,  n. 75, p. 23-47,  julho de  2006.

SAFATLE, V. “Les limites du modèle brésilien : les nouveaux conflits sociaux et la fin de l’ère Lula”. In: Revue Les Temps Modernes. Brésil 2013: L’année qui ne s’achève pas (Dossier), n. 678, 2014.

________. “Um problema de imagem”. In: MARINGONI, Gilberto; MEDEIROS, Juliano (Orgs.) Cinco mil dias: o Brasil na era do lulismo. São Paulo: Boitempo, 2017.

SINGER, André. Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das letras, 2012.

________. Brasil, junho de 2013: classes e ideologias cruzadas. In: Novos estudos CEBRAP, n. 97. nov. 2013.

________. “A (falta de) base política para o ensaio desenvolvimentista”. In: SINGER, A; LOUREIRO, I. As contradições do lulismo: a que ponto chegamos? São Paulo: Boitempo, 2016.

PELBART, Peter Pal. Por que um golpe atrás do outro? In: Revista Peixe Elétrico, publicação de 06 de fevereiro de 2018. Disponível em:

https://www.peixe-eletrico.com/single-post/2018/02/06/Por-que-um-golpe-atr%C3%A1s-do-outro Acesso em 17 de abril de 2018.

Notas:

[i] Este texto reflete integralmente a apresentação de trabalho realizada na “Jornada de estudos Junho 2013, o ano que não acabou? Balanço e perspectivas em torno dos cinco anos da Jornada de Junhos no Brasil”, organizada pela Associação dos Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na França (APEB-FR). O evento ocorreu nos dias 1o e 02 de junho de 2018, na Maison des Initiatives Étudiantes, Paris, França. Aproveito a oportunidade para agradecer aos organizadores e a todos que contribuíram com questões e apontamentos sobre o texto.

[ii] Prof. UERJ, participa da Rede Universidade Nômade.

[iii] Para o programa completo, cf. https://www.youtube.com/watch?v=fF-hGyhr0-8 Acesso em 25 de junho de 2018.

[iv] Conferir também: DELEUZE, G; GUATTARI. “Mai 68 n’a pas eu lieu”. In: LAPOUJADE, D. (Org.). Deux régimes de fous et autres texte Paris: Les Éditions de Minuit, 2003.

[iv]i Para tentativas exitosas de desenvolver esse ponto de vista, conferir as propostas de Pedro Dotto, em Junho de 2013: o acontecimento, In: CAVA, B; COCCO, G. (Orgs.). Amanhã vai ser maior: o levante da multidão no ano que não terminou. São Paulo: Annablume, 2014, pp. 283-293, de Bruno Cava em A terra treme; leituras do Brasil de 2013 a 2016. São Paulo: AnnaBlume, 2016. pp. 11-74, e Murilo Corrêa em Introdução à filosofia black bloc, disponíveis aqui: https://dev.integrame.com.br/tenda/o-18-de-brumario-brasileiro/ ; https://dev.integrame.com.br/tenda/introducao-a-filosofia-black-bloc/. Acesso em 25 de Junho de 2013.

[v] Desenvolvo este tema com mais profundidade no livro Vertigens de Junho, atualmente no prelo.

[vii] Uma forte antecipação desta crítica se encontra em: COCCO, Giuseppe. Korpobraz: por uma política dos corpos. Rio de Janeiro: Mauad, 2014.

[viii] Para este propósito, conferir o último dossiê temático da Revista Lugar Comum, intitulado “O golpe entre aspas”, disponível em: https://dev.integrame.com.br/lugarcomum/51/ Acesso em 25 de junho de 2018.

[ix] É importante reconhecer que Francisco de Oliveira foi um dos primeiros que enxergou, no vácuo da crise das tradicionais classes sociais e já no momento de constituição do governo petista, a formação de uma “nova classe no capitalismo globalizado de periferia”, constituída por sindicalistas e membros partidários que ascenderam ao controle de exuberantes fundos públicos, como aqueles de previdência, de poupança obrigatória ou de vinculação legal. A partir desses fundos, os próprios modelos de restruturação produtiva (privatização, fusões, aquisições, venda de participações etc.) são financiados criando o paradoxo de uma desconstrução do mundo do trabalho arquitetada por um conselho dirigidos por sindicalistas preocupados com taxas de rentabilidade sendo que, depois viemos a saber, também em fazer caixa para as campanhas eleitorais. Para Oliveira, se o PT executa o programa de PSDB não é por um simples equívoco ou má compreensão, mas pela proximidade material que se formou em termos de nova classe social: “de um lado, técnicos e intelectuais doublés de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e, de outro, operários transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT” (OLIVEIRA, F. 2003). Por sua vez, no post-scriptum do artigo O momento Lênin, elaborado após o estouro da crise do Mensalão, Francisco de Oliveira afirma que a existência de um circuito de corrupção no governo petista era algo extremamente previsível tendo em vista a nova conformação periférica entre o público e o privado e teria uma consequência “catastrófica” para a esquerda em geral. Para uma análise semelhante no âmbito da América Latina, em especial sobre a formação de “elites” advindas da burocracia sindical e sua relação com a apropriação de fundos públicos, conferir: MACHADO, D. ZIBECHI, R. Cambiar el mundo desde arriba: Los límites del progressismo. La Paz: CEDLA, 2016.

[x] Sobre este ponto, conferir: COCCO, Giuseppe. “O levante de junho atacou o hardpower brasileiro”. Entrevista concedida ao IHU online, em 27 de setembro de 2017. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/572064-o-levante-de-junho-de-2013-atacou-o-hard-power-brasileiro-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco Acesso em 21 de abril de 2018.

 

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