Por Rafael Zanatta, no e-mancipação, republicado no dossiê UniNômade 50 anos do golpe
Rua Maria Antônia, São Paulo
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Independentemente da disputa sobre o momento exato do golpe (civil) militar de 1964 — se ocorrido no dia 31 de março com a mobilização das tropas militares de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, ou se concretizado na madrugada do dia 02 de abril com o anúncio de Auro Moura Andrade de que a Presidência da República estava vaga –, nos últimos dias, o Brasil parou para pensar sobre as causas e consequências do regime de 21 anos que derrubou o governo de João Goulart e arrasou a jovem democracia brasileira.
A presidenta Dilma Rousseff, que foi presa e torturada por sua militância em grupos adeptos à revolução armada, fez um discurso firme na segunda-feira (31/03) sobre a importância de nos debruçarmos sobre a história do país e darmos voz às narrativas sobre o que aconteceu no passado, tendo em mente a preocupação de consolidarmos o projeto democrático firmado em 1988. Em sua fala, Rousseff destacou o papel da Comissão da Verdade — que tem por finalidade “apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988” (cf. ‘Oito achados da Comissão da Verdade‘) — e o empreendimento coletivo de dar voz à história.
Cinquenta anos atrás, na noite de hoje, o Brasil deixou de ser um país de instituições ativas, independentes e democráticas. Por 21 anos, mais de duas décadas, nossas instituições, nossa liberdade, nossos sonhos foram calados. Hoje, nós podemos olhar para esse período, olhar justamente do ponto de vista dessa obra específica, mas que mostra toda a capacidade e o envolvimento de todas as instituições num clima de democracia. Nós podemos olhar para este período e aprender com ele, porque nós o ultrapassamos. O esforço de cada um de nós, o esforço de todas as lideranças do passado, daqueles que vivem e daqueles que morreram, fizeram com que nós ultrapassássemos essa época, os 21 anos. (…) Embora nós saibamos que os regimes de exceção sobrevivem sempre pela interdição da verdade, pela interdição da transparência, nós temos o direito de esperar que, sob a democracia, se mantenha a transparência, se mantenha também o aceso e a garantia da verdade e da memória e, portanto, da história. Aliás, como eu disse quando instalamos a Comissão da Verdade, a palavra “verdade” na tradição ocidental nossa, que é grega, é exatamente o oposto do esquecimento e é algo tão forte que não dá guarida para o ressentimento, o ódio, nem tampouco para o perdão. Ela é só e, sobretudo, o contrário do esquecimento, é memória e é história. É nossa capacidade de contar tudo o que aconteceu.
Debates e seminários: a superação de leituras simplistas
Para os historiadores brasileiros, as últimas semanas foram intensas. Diversos seminários aconteceram nas principais capitais, tendo como foco o debate sobre as possíveis leituras do golpe militar (ver relatos de seminários no Rio, Recife, São Paulo e Porto Alegre). Em alguns casos, foram feitos Hangouts sobre o golpe, como o realizado pelo O Globo. Outros eventos basearam-se em discussões com professores que foram perseguidos, como o Seminário 1964, realizado pelo Cebrap, que contou com a presença de José Arthur Giannotti e Fernando Henrique Cardoso.
Para os historiadores, o principal desafio consiste em evitar simplificações e “visões romantizadas” sobre o passado. Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio da Janeiro (UFRJ), publicou em 15/02 um texto esclarecedor sobre o tema, destacando a importância de pesquisas robustas sobre esse evento-chave do Brasil e a vantagem do distanciamento histórico, cinquenta anos após 1964:
O distanciamento histórico é essencial para que possamos abordar questões delicadas, temas tabu. Talvez se possa dizer que o maior avanço da historiografia recente consista nessa busca de objetividade: hoje podemos nos lembrar de que setores significativos da sociedade apoiaram a derrubada de João Goulart. Jovens pesquisadores têm dado grandes contribuições: Aline Presot comprovou que as Marchas da Família com Deus pela Liberdade expressaram efetiva insatisfação das classes médias urbanas, não resultando apenas da “manipulação” propagandística. Mateus Capssa mostrou que alguns estudantes apoiaram o golpe de 1964. Por tudo isso, o golpe de Estado, outrora chamado de “militar”, tem sido melhor designado como “civil militar”. Historiadores como Daniel Aarão Reis e Denise Rollemberg têm chamado a atenção para isso. A serenidade possibilitada pelo recuo temporal e a grande quantidade de novas fontes documentais nos permitem antever um futuro muito promissor para as pesquisas sobre o golpe de 1964. Isso é essencial. Se entendermos o golpe apenas como o episódio que iniciou uma ditadura brutal, correremos o risco de construir leitura romantizada, segundo a qual a sociedade foi vítima de militares desarvorados. Quando a historiografia mais ousada se contrapõe a essa leitura vitimizadora, ela não está propondo um “revisionismo reacionário” que buscaria eximir de culpa os golpistas. Apenas se trata da reafirmação de algo óbvio: não há fatos históricos simples. Entender porque uma solução autoritária foi de algum modo aceita naquele momento pode servir para exorcizarmos a sociedade brasileira do autoritarismo que tantas vezes vitimou a história de nossa República.
Essa dessimplificação do golpe civil-militar também foi objeto de análise de Fernando Henrique Cardoso em sua palestra no Seminário 1964. Para Cardoso, não se pode ignorar (i) o persistente papel intervencionista das forças armadas no Brasil, (ii) a simbologia da Guerra Fria (bipolarização e radicalismo), (iii) o conjunto de forças sociais geradas pela industrialização e urbanização, (iv) a particularidade da visão da esquerda e (v) a instabilidade econômica e espiral inflacionária. Enfim, “a institucionalidade não dava conta da sociedade”. É nesse sentido que o cientista político Francisco Weffort insiste em uma análise histórica que não se limite à compreensão de 1964 (tão somente). É preciso olhar para trás, para entender os conflitos e movimentações internas nas forças armadas. Há uma miríade de fatores internos e externos — incluindo articulações dos Estados Unidos da América — que precisam ser entendidas nesse olhar retrospectivo. Obviamente, não é tarefa simples entender 1964. O ponto central é que tal compreensão, antes restrita a um pequeno grupo de pesquisadores e acadêmicos, pode ser expandida para uma ampla fatia da população brasileira. Para tanto, é preciso munir as pessoas com instrumentos e ferramentas de investigação sobre esse período histórico. Algumas iniciativas apontam um caminho promissor nesse sentido.
Abertura dos arquivos e disseminação da consciência histórica: Opening the Archives Project
Uma ação que merece destaque é o projeto Opening the Archives, formulado pelos professores James Green, da Brown University, e Sidnei Munhoz, da Universidade Estadual de Maringá. O objetivo do projeto é o de “digitalizar e indexar 10.000 documentos do Departamento de Estado dos EUA sobre o Brasil produzidos entre 1963-73 e torná-los disponíveis para o público em um site de acesso livre“. Tais documentos podem ser livremente acessados, por qualquer pessoa, no repositório virtual do OAP.
O projeto ganhou enorme repercussão na mídia brasileira e estadunidense nas últimas semanas (cf. matérias na Folha de São Paulo e Washington Post). Sua estruturação, entretanto, foi pensada há anos. Em 2013, dois historiadores de Maringá — Priscila Borba da Costa e Antonio Bianchet Jr. — viajaram para os EUA com Sidnei Munhoz para início dos trabalhos. Eles ficaram dois meses em Washington D.C. trabalhando com a equipe de pesquisadores do Prof. James Green. O trabalho de digitalização ocorreu no National Archives de Maryland, cidade vizinha da capital estadunidense.
O projeto de Green e Munhoz é louvável, pois tem como objetivo a indexação e divulgação — para qualquer pessoa com acesso à internet — dos documentos de inteligência e de comunicação entre oficiais estadunidenses e líderes brasileiros. Tais documentos proporcionam uma visão detalhada daqueles que vigiavam o governo militar e tentavam construir um projeto de guided democracy no país. Como afirmou Munhoz,
por intermédio deste projeto, será possível disponibilizar aos pesquisadores de todo o mundo documentos importantes das relações entre o Brasil e os EUA e isso certamente terá repercussões nos estudos da história das relações entre os dois países e da história da ditadura implantada pelo golpe de 1964. Essa é uma oportunidade de contribuir com o avanço dos estudos históricos sobre as relações entre os dois maiores países do continente e de aprimorar a compreensão do período ditatorial brasileiro.
A abertura dos arquivos — seja nos Estados Unidos da América, seja no Brasil — é um passo fundamental para dar voz à história, como propõe a presidenta do país. Para além dos debates e das construções de narrativas e explicações sobre o regime militar (1964-1985), é preciso disseminar a consciência histórica mediante o empoderamento dos cidadãos para a pesquisa, independentemente de vinculações universitárias.
Mais importante do que construir narrativas historiográficas é a ampliação do acesso às fontes históricas, que possam permitir novas pesquisas — sem grandes custos de acesso, uma vez realizada a digitalização — para o maior número de brasileiros. Esse é o potencial de projetos como o Opening the Archives.
Que esse momento sirva para inspirar o “historiador adormecido” em cada pessoa em busca da verdade.