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Mídia corporativa: a catraca da democracia

Por Germano Nogueira Prado, para o dossiê UniNômade sobre as manifestações

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“(…) o que tende a desaparecer sob a máscara abstrata do nome “violência” são as diferenças essenciais à compreensão (política) do fenômeno em causa.

Na obra Em defesa das causas perdidas, Zizek afirma que “não deveríamos permitir que o inimigo definisse o campo de batalha e o que está em jogo, de modo que acabamos nos opondo abstratamente a ele, apoiando uma cópia negativa do que ele quer.”1 Transposta para o contexto das manifestações que tomam conta das ruas do Brasil desde as jornadas de junho de 2013, essa frase não poderia nos ajudar a pensar a relação entre os protestos e a mídia corporativa (isto é, os jornais e revistas de maior circulação, bem como, sobretudo, as concessões de rádio e televisão controladas por grandes capitais)?

Se não, vejamos: em linhas gerais, podemos distinguir pelo menos três posturas básicas através das quais a mídia corporativa procurou contar sua própria versão dos protestos. A primeira delas consiste em tentar esvaziá-los ou minimizar sua importância, simplesmente ignorando-os ou, não raro, incluindo-os no máximo na parte do respectivo veículo que trata dos problemas de trânsito. Dessa maneira, o que ocupa o primeiro plano da narrativa “jornalística” não são as reivindicações que mobilizam os manifestantes, mas o efeito (negativo) que esta mobilização tem para a vida “normal” da cidade.

Assim, com menor ou maior clareza, protestos podem ser interpretados como anomalias que, no exercício regular da política, poderiam não existir – melhor: não deveriam existir. Considerando que o estopim dos protestos foi o aumento das passagens do transporte público, que trouxe consigo o problema da mobilidade urbana e da garantia real (socioeconômica) do direito de ir e vir, é no mínimo curioso notar a inversão em jogo aí: os protestos são tomados como um problema que afeta o trânsito “normal”, quando na verdade o “funcionamento normal” cotidiano deste é que é o problema (causado, sobretudo, pelo uso excessivo do transporte privado) para o qual aqueles protestos apresentam uma solução (a melhora no transporte público).

Mas aqui talvez uma segunda mudança no campo de batalha delimitado pela mídia seja ainda mais fundamental. Pois se é verdade que não queremos abrir mão de uma sociedade democrática; se é verdade que se trata de ampliar e aprofundar a democracia (social, econômica e politicamente), então as manifestações ou, antes, as mobilizações populares não devem ser pensadas como episódios a serem eliminados. Pelo contrário: a auto-organização da sociedade, a ocupação das ruas com o debate das questões que dizem respeito à comunidade como um todo é elemento constitutivo indispensável de uma comunidade que se quer democrática. Nesse caso, tratar-se-ia não de insistir na “normalidade” das manifestações ou na sua necessidade “episódica” no estado atual da nossa sociedade, mas na importância estrutural da mobilização popular para a constituição de uma democracia efetiva.

É bem verdade que, mesmo abrindo espaço para a concepção das manifestações como “anormalidade” na vida da cidade, quando é levada a entrar no mérito da questão, a mídia tende a se valer do discurso de que as manifestações “fazem parte da democracia”. Esse discurso acabou surgindo, de certo modo, sobretudo quando esta adotou uma segunda postura: a tentativa de “disputar” a pauta do movimento.

Com efeito, o aumento da mobilização levou a um deslocamento do campo de batalha em torno das manifestações no interior do próprio discurso midiático: não podendo mais ignorá-las ou tratá-las como meros problemas de trânsito, a batalha então é para definir “o que querem os manifestantes” – o que fez com que a postura da mídia oscilasse em pouco tempo de uma condenação total a um apoio ambíguo aos protestos. (Emblemática dessa mudança é a “retratação” de Jabor pouco tempo depois ter condenado veementemente as manifestações)

 Tratou-se de um “apoio ambíguo” porque, embora represente o reconhecimento inegável da força das ruas, ele veio acompanhado de um discurso que busca(va) pautar o movimento e, com isso, tirar-lhe a força e escondê-lo no mesmo movimento em que (parcialmente) o mostra. As estratégias nesse sentido foram (e são) variadas: ora se tentou dizer que a manifestação é “contra tudo que está aí”, o que leva a um esvaziamento de pautas concretas e imediatamente atingíveis (como a luta contra o aumento da passagem); ora se disse que é “pelo próprio direito de se manifestar”, o que leva ao risco de tomar as manifestações como algo que se esgote no próprio movimento de se manifestar, que não espera nenhuma resposta efetiva do poder público ou não visa constituir algo de novo e duradouro a despeito deste; ora, enfim, tentou-se fazer com que surfassem na onda de manifestações pautas tradicionalmente conservadoras como a oposição aos programas de transferência de renda; a redução dos impostos; o nacionalismo exacerbado; e até uma difusa “antipolítica”, presente na opinião comum de que “o problema são (apenas) os políticos” (o que tende a levar a uma leitura meramente personalística do campo político), articulada, por sua vez, com a reivindicação de uma “moralização” abstrata da política – isto é, com uma “moralização” que desconsidera o papel (estrutural) de corruptor desempenhado pelo (grande) capital.

Certamente essas tentativas têm algum respaldo na composição complexa que as manifestações foram tomando (e, quiçá, em parte já tinham ab initio) na medida em que cresciam e outros grupos e pessoas se integravam ao movimento. Em comum, uma espécie de insatisfação de fundo, mas que se desdobrava em uma miríade de reivindicações concretas (ou nem tanto), por vezes contraditórias, e não limitadas às referidas acima. Se, por ex., os relatos de militantes de partidos de esquerda tendo suas bandeiras retiradas e sendo espancados mostram que houve (ou há) elementos de cunho reacionário e fascista nas manifestações (sejam eles “infiltrados” ou não), é difícil negar que as organizações da esquerda tradicional (sindicatos e partidos, sobretudo) em geral não têm conseguido – ou talvez, ao menos tal como sempre se estruturaram, não podem – estar à altura dos eventos que tiveram início em junho. O quanto a mídia é “causa” ou “expressão” de alguns desses elementos é (quase) impossível – e, quiçá, ocioso – dizer. O que interessa é marcar de que “causas” ela toma partido, procurando, assim, (de)limitar o campo das lutas. Mal ou bem, parece haver algum avanço quando o mérito mesmo das mobilizações entre em jogo no discurso midiático – avanço que, dependendo do modo como este mérito entra em jogo, pode ser apenas aparente.

De modo mais ou menos contemporâneo a essas duas e atravessando-as, aparece uma terceira postura: a criminalização. Se a presença desta é clara no primeiro comportamento mencionado (as manifestações obstruem ilegalmente o trânsito, etc.), no segundo, ela precisou, em um primeiro momento ao menos, ser “mais sutil”. Não sendo possível condenar os protestos tout court, a mídia operou a partir do corte entre “manifestantes pacíficos” e “vândalos”, que, por sinal, vem se mostrando como uma eficaz versão da velha estratégia “dividir para governar”. Os “vândalos”– ou seus (quase) sinônimos na gramática midiática: os “mascarados”, os “black blocs” – funcionaram desde então como nome abstrato para tudo que estragava a “festa da democracia”, em especial os episódios de violência nos protestos, que teriam (por si só) “afastado os cidadãos de bem” das ruas.

É talvez aqui que a advertência presente na frase de Zizek pode ser mais útil. Pois o que tende a desaparecer sob a máscara abstrata do nome “violência” são as diferenças essenciais à compreensão (política) do fenômeno em causa2: a diferença entre a violência dos manifestantes e a dos policiais, entre a resistência e a repressão ativa (não raro arbitrária e desproporcional), entre o depredação de coisas e o ataque a pessoas. A abstração de todo esse complexo de relações vem articulada, em geral, com a abstração de todos os fatores envolvidos para a concentração em um deles, como principal, se não única causa do fenômeno (os vândalos). Isso permite que o campo de batalha seja dominado por uma falsa disjunção, que escamoteia o problema: tratar-se-ia de ser “contra o vandalismo” ou “a favor” dele. Mas, na medida em que “ser a favor do vandalismo” é entendido como crime, parece restar apenas uma opção para quem não quer se subtrair ao (ou, antes, ser expulso do) jogo político oficial.

O que temos assistido depois da morte trágica do cinegrafista Santiago Andrade é uma demonstração muito clara desse tipo de operação. O que se viu (e se vê) não é a busca de justiça, mas um inquérito policial se tornar um espetáculo tragicômico de gosto duvidoso protagonizado por um advogado de “defesa” que é também delator de um dos seus clientes e por dois jovens constrangidos ao desempenho do papel, prescrito por quem comanda o show, de (simbolizar os) “vândalos”. Ao mesmo tempo, a mídia vem promovendo, com o apoio de políticos da situação (à direita e à “esquerda”), uma campanha por uma “repressão mais dura” dos protestos, sobretudo pela criação de instrumentos legais ad hoc. Nisso tudo, foram convenientemente “esquecidas” as outras mortes e as outras vítimas da “violência nas manifestações”; esqueceu-se que a repressão policial é comprovadamente a principal responsável pelos ferimentos e pelas mortes nos protestos; e esqueceu-se até que dentre as vítimas da polícia estão membros da grande imprensa.

Assim, ainda que a lógica da criminalização não seja novidade, é preciso notar uma mudança crucial: o uso político dessa morte trágica por parte da mídia parece mostrar que a estratégia não é a condenação da violência nas manifestações, mas a criminalização das manifestações tout court usando como arma o discurso abstrato sobre a violência – assim como a criminalização de militantes e de figuras da política institucional que, mal ou bem, apoiaram os protestos e/ou poderiam colher dividendos políticos destes.

A princípio, os casos emblemáticos aqui são o da militante Sininho e o do deputado federal Marcelo Freixo, do PSOL. Mas talvez emblemático mesmo seja o caso de Caio Silva de Souza e Fábio Raposo, os dois jovens acusados da morte de Santiago Andrade: condenados pela mídia antes do devido processo legal, “representados” (até pouco tempo) por um advogado que parece mais preocupado com a espetacularização do caso e seu uso para a perseguição política e a criminalização dos protestos, seria o caso de a esquerda (sem aspas) e os movimentos sociais não só não participarem do linchamento público, mas se posicionarem firmemente contra qualquer tentativa do gênero e exigir, no mínimo, o respeito aos direitos dos acusados e ao devido processo legal.

O caso de Marcelo Freixo, todavia, parece ser emblemático em (pelo menos) mais um sentido: como figura destacada da esquerda, ao condenar abstratamente a “escalada da violência nas manifestações”, ao assinar o pedido de CPI do Vandalismo, ele não teria cedido demais o campo de batalha? Mais, ainda: uma vez que os nomes abstratos de “vandalismo” e “violência” são as armas da criminalização das manifestações, mais do que “apoiar uma cópia negativa do que o inimigo quer”, não estaríamos aqui muito próximos de um passo mais nefasto – capitular diretamente diante do que ele quer, comprando inclusive a gramática proposta por ele?

Contra essa leitura, há quem argumente que ele “está sob os holofotes da mídia”, que “é preciso prudência”, que ele pode “evitar a criminalização estando dentro da CPI”. Mesmo julgando que ainda assim seria melhor arriscar ao menos recusar mais incisivamente o título abstrato de “violência” (e o de “vandalismo”), o que é decisivo aqui são antes os efeitos da decisão (sic) – pois, por melhores (ou piores) que sejam as razões que levam a esta, a sua importância será medida pelo o que ela é capaz de fazer (ou não) no espaço público e, assim, na escolha dos caminhos de uma comunidade. Pelo sim e pelo não, talvez seja o caso de fazer valer aqui, na direção inversa, o que disse (e o que faz) Pablo Ortellado com relação aos Black Blocs3: ainda que discordando da sua tática, Freixo segue sendo (ainda, espero) um companheiro (de trincheira). Com muito mais razão, o mesmo vale para Caio e Raposo: culpados ou não, não se pode transigir nem jurídica nem politicamente com a sua redução a bodes expiatórios e a instrumentos de criminalização dos protestos, dos movimentos sociais, da participação popular.

Contudo, é preciso chamar a atenção para outro ponto: este tipo de argumento em defesa do Freixo é sintomático do que foi dito até aqui. Pois em tal argumentação, não é (só) o sistema político(-representativo), mas é a mídia corporativa (que, de resto, pode ser pensada como parte deste sistema) que teria o poder de influenciar na formação de consensos (tácitos), no horizonte dos quais o debate pode ser feito e as decisões são tomadas; de delimitar, enfim, decisivamente, o campo de ação “possível”.

Nesse sentido, é justo dizer que a mídia corporativa é uma das, se não a catraca que emperra a (nossa) democratização – não raro cobrando caríssimo, a preço de coerência, de liberdade, de alma para quem quer passar, a todo custo, para o outro lado. Certamente as mídias alternativas oferecem hoje muitas maneiras de pular a catraca (as possíveis inconsistências da “resolução” à jato do caso da morte de Santiago Andrade, por ex., já aparecem por todo lado). Mas a energia que ainda é gasta em torno das pautas que a mídia corporativa veicula, sobretudo através das grandes concessões de televisão, mostra o quanto ele ainda é decisiva para a constituição do debate político.

Por isso, talvez uma das muitas contribuições que as mobilizações que começaram em junho podem dar, e quiçá uma das mais decisivas, é a de colocar na ordem do dia a necessidade de democratização da mídia, em especial das concessões de rádio e televisão – que, nunca é demais lembrar, são públicas. A dobradinha entre Globo e polícia na exploração política da morte de um membro da própria imprensa, uma espécie de “(Não) vale a pena ver de novo” dos tempos da ditadura com cara de “A volta dos que não foram”, mostra que não só a polícia precisa ser desmilitarizada. Democratizar a mídia é (também) desmilitarizá-la, no sentido de remover o que ela tem de ditadura (da comunicação), tanto na sua origem quanto na sua estrutura.

O tamanho e a duração da tarefa são testemunhados pelo quão pouco ela avançou desde o início da (re)democratização do Brasil, apesar do que é disposto na Constituição e dos esforços de alguns setores da sociedade nesse sentido4. Todavia, se, por um lado, a mídia corporativa ainda tem papel decisivo na delimitação do campo em que se trava a luta política – por outro, é sobretudo a mobilização da multidão que pode mudar as regras do jogo para que se constitua uma comunicação enraizada, de fato, no comum.

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Germano Nogueira Prado é professor de filosofia do Colégio Pedro 2º e doutorando em filosofia pela UFRJ.

1 São Paulo: Boitempo, 2011. p. 148.

2 Cf. o recente artigo de Pablo Ortellado: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,o-bloco-dos-desobedientes,1130747,0.htm

3 https://www.facebook.com/ortelladopablo/posts/664939046905005

4 Cf., por ex., http://www.fndc.org.br/.

 

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