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Mobilizando pelo comum: lições da Itália

Por Jerome Roos, editor do ROAR (Reflections on the revolution), no site, em 14/4/13 | Trad.: Aukai Leisner (UniNômade)

ItalianMovements

Num momento de retraimento das revoltas antiausteridade numa Europa sob efeitos da crise da economia global, as lutas reacendem com força na Itália, país que, apesar de alguns protestos esparsos, pareceu ter sido contornado pelo ciclo Occupy, desde 2011. Para editor do site ROAR, o conceito de comum exprime as bases materiais de indignação e positividade, e permite converter os vários focos de resistência e reinvenção num projeto de ação comum.

O comum qualifica seja a luta por renda básica incondicionada, seja por moradia para todos. No primeiro caso, permite-a expandir além dos parâmetros neoliberais e/ou assistencialistas, na direção de uma renda universal que destrua a lógica do trabalho assalariado, isto é, a indexação de quantum de salário e quantum de trabalho. No segundo caso, extrapola a necessidade básica de moradia para imaginar o território como produção do comum, numa fusão de autonomia e nomadismo muito além da perspectiva patrimonial e mercadológica.

Segundo o analista, tudo isso já está em co-engendramento, pelo menos como aposta política, no bojo da reorganização dos movimentos e lutas europeus. (N.E.)

O protesto de 12 de abril, em Roma, foi o último numa série de ações em torno de um projeto comum. O que os militantes de outras partes do mundo podem aprender com os movimentos italianos?

Dezenas de milhares de manifestantes marcharam em Roma neste sábado para denunciar as medidas de austeridade e as reformas econômicas do novo governo de Matteo Renzi (PD) e para reafirmar sua demanda por renda, moradia e dignidade para todos. Dezenas de pessoas foram feridas quando estouraram os conflitos no final da marcha e a polícia atacou violentamente a multidão, batendo indiscriminadamente em manifestantes e atropelando quem estivesse pela frente. O que a polícia não conseguiu deter, no entanto, foi a resolução do movimento de aumentar sua resistência no rastro da última sublevação geral, que levou 100 mil pessoas às ruas de Roma.

Os eventos de sábado são particularmente notáveis por dois motivos: em primeiro lugar, os movimentos italianos haviam sido bastante tímidos na resposta à crise europeia da dívida, quando ela primeiro estourou, em 2010-2011. Afora uma manifestação massiva em Roma, em 5 de outubro de 2011, que rapidamente degenerou em violência desordenada, a onda dos indignados no estilo Occupy passou ao largo do país, mesmo quando um governo tecnocrático não-eleito, comandado por Mario Monti, assumiu o poder. Essa história recente um tanto ambivalente torna a presente mobilização ainda mais importante, em especial porque as crises de habitação e desemprego se aprofundaram significativamente desde então.

A segunda razão pela qual deveríamos prestar atenção à Itália, no entanto, é mais familiar para a maioria. O protesto de sábado aconteceu num contexto de relativa desmobilização no resto da Europa e na América do Norte. Justo quando os movimentos antiausteriadade em outras partes do mundo parecem estar recuando, os movimentos italianos estão gradualmente incrementando sua resistência. Isso levanta uma questão interessante: temos algo a aprender dos processos locais atualmente em curso na Itália? Creio que a resposta é sim — e penso que deveríamos prestar particular atenção à composição social ampla e ao projeto comum que conferem sustentação a esses processos locais.

Renovando a Resistência

Mas primeiro vamos dar um passo atrás. Na semana passada, eu comentei brevemente sobre o número de desafios que os movimentos internacionais enfrentam, na atual fase de relativa desmobilização. Eu propus que algumas das principais razões para a falta de protestos hoje em dia tem a ver com:

1) O atomismo social induzido pela natureza crescentemente precária do trabalho sob a crise e sob o capitalismo financeirizado de maneira geral.

2) Os efeitos de isolamento produzidos pela angústia gerada pelas demanda neoliberais por produtividade constante e permanente produtividade, combinadas com a repressão policial e o supramencionado risco de precariedade.

3) O acachapante sentimento de impotência experimentado por largas parcelas da população. A esses fatores, um leitor rapidamente acrescentou a exaustão física e mental causadas por formas insustentáveis de ativismo.

Se os movimentos em outras partes do mundo estiverem interessados em renovar a resistência, creio que eles terão de encontrar formas de trabalhar esses fatores relacionados entre si — e o movimento italiano pode nos ajudar com pelo menos uma pista sobre onde começar: sentar-se juntos e cuidadosamente elaborar um projeto comum, a partir do qual diferentes grupos políticos, movimentos autônomos a indivíduos isolados possam se unir. O que se faz necessário é uma bandeira única capaz de sustentar uma ampla coalizão popular, unida por um conjunto de objetivos e princípios. Na Itália, esse projeto se chama  Una sola grande opera: casa e reditto per tutti [Um grande esforço comum — moradia e renda para todos]. Esse projeto por sua vez baseia-se em uma década inteira de experiências locais  em organizar “o direito ao comum” (para uma boa introdução ao assunto, confira a palestra abaixo, por Michael Hardt).

Mobilizações pelo Comum

O conceito de comum tem ganhado popularidade em círculos ativistas ao redor do mundo em anos recentes, mas talvez esteja sendo elaborado de forma mais explícita no ciclo de lutas que ora sucede na Itália. Como apontou meu amigo e colega de pesquisa Alfredo Mazzamauro num excelente artigo recente para ROAR, o fato notável na sublevação geral de outubro de 2013 foi precisamente que ela atravessou as linhas de separação que por muito tempo mantiveram a esquerda italiana e seus movimentos sociais divididos e brigando entre si. Foi em grande parte pela identificação de um inimigo comum (o capitalismo neoliberal) e pela formulação de um projeto comum (em torno da renda e da moradia) que esse grupos diferentes foram capazes de unir forças e agora começam a forjar uma estratégia política autonôma desde baixo.

Que essa narrativa gire em torno de moradia e renda não é uma coincidência: 40% da juventude italiana está hoje desempregada e somente em 2013, 68 mil famílias receberam notificações de despejo, 90% das quais porque não conseguiram pagar o aluguel ou a hipoteca devido a renda insuficiente. Mas a demanda coletiva por renda e moradia não é somente um clamor reformista moderado em face de uma crise devastadora. Quando os manifestantes em Roma clamam por renda, a maior parte está se referindo à renda básica incondicional; e quando falam de habitação, não se referem a ela somente como um direito humano mas como um bem comum. Então, os movimentos não estão simplesmente fazendo uma demanda ao governo. Ao contrário, estão reafirmando um objetivo revolucionário de separar a necessidade humana de abrigo e sustentação da dependência social do trabalho assalariado e das trocas mercantis. Isso configura uma radical reinvenção do valor em si e por si.

Renda básica, Habitação social

A formulação da moradia como um bem comum e da renda como um benefício universal  tem o potencial de ampliar sobremaneira nossos horizontes políticos. Em primeiro lugar, a noção de uma renda básica deita por terra a ideia exploratória de que as pessoas comuns deveriam vender sua força de trabalho a outro ser humano mais afortunado (seus patrões) apenas para sobreviver. Essa noção reconhece o fato de que as nossas sociedades (ao menos na Europa e na América do Norte) acumularam capital mais do que suficiente ao longo dos séculos para prover a todos com pelo menos as necessidades básicas de um modo de vida modesto. E também fornece uma alternativa concreta para combater a profunda angústia causada pela precariedade do trabalho. Não tenham dúvidas: acabar com a dependência do trabalho assalariado para as necessidades básicas teria implicações profundamente transformadoras nas relações sociais e na vida cotidiana.

Em segundo lugar, como David Harvey vem repetidamente apontando nos últimos anos (inclusive em sua recente palestra na London School of Economics), a noção de moradia como um bem comum tem implicações igualmente radicais ao nível das fundações da economia capitalista. Ao romper com a contradição entre o valor de troca o valor de uso, a moradia como bem comum reconhece o valor superior da necessidade básica de abrigo e segurança sobre a necessidade improdutiva e inteiramente fictícia de investimentos imobiliários especulativos. Como tal, ela dispensa a idéia mercadológica fundamentalista de que a casa é acima de tudo um valor de troca; uma convicção profundamente irracional que fabricou um mundo em que milhões de pessoas sem casa convivem lado a lado com milhões de casas sem pessoas.

Construindo coalizões amplas

Na Itália, colocando a luta explicitamente nesse termos permitiu a construção de uma ampla coalizão, que reúne aliados improváveis como os movimentos de ocupação das grandes cidades e o radicalmente autônomo movimento anti-TAV (que luta em defesa de comunidades locais e do comum ambiental contra a construção de uma estrada de ferro de alta velocidade que passaria por Val Susa), com trabalhadores precários no setor de logística, italianos desempregados e migrantes que correm o risco de serem despejados. Como escreveu Alfredo Mazzamauro: “… juntos, esse grupos enfatizaram o paradoxo de se gastar mais de 26 bilhões de euros de dinheiro público na construção de uma linha de trem que está desestabilizando comunidades inteiras e cujo benefício é questionável para as camadas de baixa renda da região, enquanto ao mesmo tempo observa-se a recusa em formular um plano de emergência para resolver a crise da moradia.”

Coalizões igualmente amplas ocorreram por breves períodos no curso de 2011, mas, na maior parte dos casos, as coalizões não se sustentaram, na medida em que rapidamente extinguiram sua energia negativa. De maneira geral, fracassaram em articular uma visão compartilhada e um projeto político concreto, com que os manifestantes pudessem se comprometer positivamente e em torno do qual pudessem continuar a se organizar. Na ausência de um tal projeto comum, as coalizões de 2011 tomaram, em sua maioria, uma forma efêmera e passageira: um inimigo comum foi identificado (Mubarak, Wall Street, Erdogan…), mas além da invenção crucial da assembleia popular, poucos passos foram dados para construir um imaginário político alternativo e uma estratégia revolucionária de longo prazo.

Diversidade de táticas

O desenvolvimento de um tal projeto político não é o mesmo que juntar à força a multidão de forças sociais e imaginários políticos, em uma única estrutura unificada. Mais importante, não se trata de forjar um partido político, a partir da colcha de retalhos dos movimentos sociais, como a esquerda mais tradicional continua a insistir que devamos fazer. Ao contrário, o exemplo do movimento italiano é instrutivo porque mostra como várias tendências de esquerda conseguem manter uma coalizão sem abrir mão de suas próprias convicções políticas. Alguns elementos dentro do movimento estão em busca de trabalho político, organizando-se em partidos (pré-existentes ou novos), enquanto outros elementos enfatizam sua autonomia (moderada ou radical) em relação ao sistema político, focando, ao contrário, na construção de instituições alternativas a partir de movimentos locais.

Nesse sentido, deve-se reforçar novamente que um projeto comum não é a mesma coisa que um programa político. Pedir moradia e renda para todos não é o mesmo que demandar moradia e renda para todos. Poucos dos manifestantes em Roma seriam inocentes o bastante para crer que o governo de Renzi algum dia implantaria uma agenda tão radical. É por isso que a diversidade de táticas permanece muito importante — para atingir objetivos de curto e longo prazos movimentos terão que ser estrategicamente determinados, mas taticamente flexíveis.

A ação direta do movimento de ocupação, por exemplo, já está liberando espaços de moradia para pessoas que foram despejadas de suas casas e que não podem se dar ao luxo de esperar por futuras reformas ou revoluções. Enquanto isso, a organização mais duradoura de outros grupos pode pavimentar o caminho para vitórias de escala mais ampla através de canais mais bem estabelecidos, como se deu com a retumbante vitória do movimento nos referendos de 2011, no qual a população italiana rejeitou vigorosamente a privatização da água — outro bem comum.

A diversidade de táticas também significa que os ativistas mais militantes não devem por em risco a segurança e integridade física dos manifestantes mais pacíficos (como fizeram durante as fracassadas ações militantes de 15 de outubro de 2011), enquanto os pacifistas dentro do movimento deveriam ao mesmo tempo abrir espaço para ações militantes e táticas mais confrontadoras. Na Itália, essa organização informal de uma diversidade de táticas dentro da coalizão mais ampla de forças sociais conduziu a uma reversão interessante. Em outubro de 2011, manifestantes militantes estavam irresponsavelmente arrastando manifestantes pacíficos para confrontos violentos com a polícia, enquanto manifestantes pacíficos prendiam descaradamente ativistas militantes e os entregavam a polícia. Em outubro de 2013, ao contrário, manifestantes militantes permaneceram firmes no Ministério da Economia e protegeram a maioria pacífica das investidas da polícia. No dia seguinte, a maioria pacífica alinhou-se atrás dos elementos mais militantes para exigir a soltura de seis ativistas que haviam sido presos durante os confrontos. É assim que um movimento cerra fileiras e consegue desarmar a tática de dividir-e-governar dos aparatos ideológicos e repressivos do estado.

Adaptando-se ao contexto

Desnecessário dizer, cada movimento surge em um contexto particular e portanto terá que fabricar suas próprias narrativas, táticas e estratégias para construir coalizões amplas em torno do bem comum. Há sinais promissores de que isso já está começando a acontecer em alguns lugares. Na Europa e na América do Norte, os movimentos espanhóis são provavelmente os mais avançados nesse sentido. Tome-se o exemplo inspirador da Plataforma de Vítimas da Hipoteca (PAH), que reúne ativistas calejados e advogados com migrantes, trabalhadores e desempregados, e combina ações diretas (bloqueio de execuções de hipoteca, ocupação de escritórios bancários e organização de escraches em frente a casas de políticos), com táticas de pressão mais tradicionais de revogação de leis antissociais ou para aprovar leis em favor dos donos das casas. Ao mesmo tempo, o PAH trabalha em cooperação com outros grupos e movimentos entre as várias coordenações nacionais. Assim como “o grande projeto” na Itália, o PAH propõe tratar a moradia como um direito humano e um bem comum, além de demandar uma renda básica.

Na América do Norte e em outros países europeus, coalizões similares são possíveis, desde que os ativistas sejam capazes de identificar as causas comuns que possam ser levantadas a fim de reunir diferentes grupos de pessoas que, de resto, não falariam a mesma língua política, e que não estariam muito inclinados a trabalhar em conjunto. O segredo é identificar os pontos fracos do sistema e detectar as agruras cotidianas que estão na raiz de nossas mazelas sociais e na base da reprodução essencial do capitalismo. Isso permitiria que os movimentos desafiassem as relações de poder fundantes do sistema por meio de intervenções altamente localizadas cujo impacto pudesse ser sentido diretamente — pensemos nos movimentos de Cochabamaba ganhando a guerra da água na Bolívia, por exemplo. Vale notar que algumas dessas ideias já informam lutas em outras partes, como o Salve a água grega, uma campanha antiprivatização em Atenas.

É claro que não deveríamos superestimar o movimento italiano. Embora os movimentos locais pareçam promissores, a esquerda italiana ainda está — como o faz a esquerda em toda parte — lutando uma batalha defensiva contra uma maciça ofensiva neoliberal. Ainda assim, me parece haver aqui uma mensagem importante: talvez uma maneira de superar a paralisia em que muitos movimentos hoje se encontram seria começar a formular uma visão mais clara de onde realmente queremos ir. Alguns a chamarão de anarquismo, outros talvez o chamem socialismo ou comunismo, e a maior parte das pessoas provavelmente não queira dar-lhe nome algum. Mas até que comecemos a traduzir esses polêmicos conceitos em objetivos concretos que possam verdadeiramente nos unir, em vez de abstrações dogmáticas que continuem a nos dividir, essa ideia talvez seja apenas um primeiro passo na superação de nossas incontáveis diferenças, ampliando nossos horizontes políticos, e fazendo-nos recobrar um senso de direção para os anos difíceis que vem pela frente.

 

Jerome Roos é doutorando no European University Institute e editor fundador da Revista ROAR.

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