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Não existe amor no Brasil Maior

Republicado do Le Monde Diplomatique Brasil online, escrito por Giuseppe Cocco, eis uma análise abrangente e concisa sobre os impasses políticos do Brasil hoje. Para o autor, não adianta festejar o fim da história, do partido, da representação, do estado, quando esse “fim” está implicado na própria tendência do capital em mudar o regime de funcionamento, aparelhando um novo tipo de estado (gestor), representação (empresas e ONG), partido (cata-tudo de fluxos) e história (negando a luta de classe, reposta como uma oposição saintsimoniana entre 2.0 x 1.0).

o_artista_das_bandeirinhas geométricasImagem: Alfredo Volpi

Insurgências e crises da representação

Depois do estouro da crise do capitalismo global, em 2007-2008, a mobilização das redes sociais em torno da primeira eleição de Obama parecia ter constituído as bases para uma resposta política adequada. Agora sabemos que o mandato do primeiro presidente negro da maior potência mundial foi logo homologado nos tradicionais jogos e compromissos da representação. As redes sociais irromperam novamente na cena global com a insurreição da multidão na Tunísia e junto a ela o soviete da Praça Tahrir, no Egito. A Primavera Árabe também conheceu seu “termidor”. O islamismo conservador ganhou as eleições, e o Império impôs sua lógica de guerra: na Líbia, na Síria e no Mali. A insurgência das redes e das ruas atravessou o Mediterrâneo com o mesmo ímpeto de quando os mouros levaram para a Europa as inovações filosóficas e científicas que proporcionaram a revolução do Renascimento. Foi emblematicamente na Espanha que os protestos repetiram, amplificaram e desdobraram as lutas árabes em um sem número de acampamentos. Hoje, o 15M espanhol está vivo, mas, apesar de sua potência atravessar toda a sociedade, as políticas de austeridade continuam destruindo as bases biopolíticas da democracia. Nos Estados Unidos, o movimento Ocupar não conseguiu alcançar o nível de massificação e força necessário para colocar o “Yes, we can” no terreno da ação direta. À insurgência das redes e das ruas seguem-se as tentativas de inovar no próprio terreno da representação, com o lançamento de “novos” partidos: depois do Pirate Party (na Suécia e na Alemanha), segmentos do 15M lançaram o Partido do Futuro. Manuel Castells disse que o objetivo é construir uma democracia “sem intermediários.1 No Brasil também, a ex-senadora Marina Silva lançou o Partido-Rede. Mas é na Itália, com o M5s,2 que a inovação faz tremer as bases do sistema: “É a primeira vez”, diz o Nobel de Literatura Dario Fo, “que um partido sem recursos, autônomo, contra todos e esnobado por todos consegue chegar à frente nas eleições”. Tudo isso acontece num contexto de destruição geral do sistema de proteção social, aumento do desemprego e da pobreza, fechamentos em série de empresas e multiplicação dos suicídios de empreendedores falidos, trabalhadores desempregados e moradores despejados.

As ilusões neodesenvolvimentistas

Apesar de o Partido-Rede de Marina Silva já se colocar como possível desbravador de um Brasil pós-PT, aqui vigora uma sensação oposta. A presidente e seu governo gozam de altíssimos índices de aprovação. A clivagem entre “esquerda” e “direita” estaria viva e determinada por projetos econômicos claramente distintos: por um lado, um projeto de desenvolvimento ancorado na intervenção estatal e na retomada da industrialização; por outro, o discurso neoliberal a serviço dos interesses de bancos e do capital multinacional. Estamos de volta ao futuro, o “projeto de nação” pode enfim encontrar uma adequada “política de Estado”. Há como que uma miragem que enxerga ilusórios oásis: numa delas, o Brasil aparece imune à crise global, e isso porque disporia de um “Estado” interventor e de políticas neokeynesianas à altura dessa tarefa. Em outra, o oásis descansa o sistema político brasileiro, indiferente à crise geral da representação. O neoliberalismo, diz-se, determinou as transformações do capitalismo (a globalização, as finanças, a flexibilidade). Revertendo essa hegemonia (como estaria acontecendo), voltaremos ao regime de industrialização perdido da década de 1980 e deslocalizado pela globalização dos anos 1990. São efeitos de ilusão de óptica criados pelo progressivo descolamento da única e verdadeira novidade dos últimos anos: a mobilização produtiva dos pobres e suas lutas. A primeira ilusão está na sedução pelo avesso das apologias do pós-moderno como época do “fim”: fim do trabalho, fim do Estado, fim dos partidos, fim da indústria: enfim, “fim da história”. Com base na falsidade dessas afirmações, nega-se pura e simplesmente a “condição pós-moderna”, pois é óbvio que o trabalho continua, as indústrias também, os Estados não desapareceram e os partidos tampouco. Ironicamente, a apologia do “pós” alimenta e legitima as ilusões do “neo”: o neodesenvolvimentismo e o retorno do Estado.

Uma segunda ilusão é a da autonomia do político (em sua forma estatal): o governo pode e deve determinar os rumos do capitalismo. Trata-se na realidade do velho “economicismo”: tudo dependerá da capacidade (ou menos) da política (do governo) inflexionar a economia. Do mesmo jeito que a globalização e a desindustrialização foram impostas pelos governos neoliberais, os governos de mudança serão aqueles capazes de mudar a economia. Assim, além dessas ilusões, a oposição entre o “pós” e o “neo”, entre o digital e o analógico, entre o cognitivo e o industrial sustenta dois totalitarismos: aquele apologético do “pós-tudo”, que escamoteia e esvazia as novas lutas (de classe) afirmando que o conflito apenas opõe o digital ao analógico, o cognitivo ao industrial; e aquele do “neomoderno”, que também esvazia as lutas e os conflitos em nome de um desenvolvimento que, pela mágica da intervenção estatal, se pareceria com o “socialismo”. Os dois totalitarismos funcionam consensualmente como os tratores que violentam as reservas indígenas do Xingu, removem os favelados do Rio de Janeiro ou os pequenos agricultores de Açu para abrir alas aos investimentos do ideal-tipo desse totalitarismo: as empresas em X, falidas e penduradas nas mamatas de bancos-empresas estatais e na generosidade da grande mídia monopolista. Nos dois casos, o horizonte da história e da política é aquele de uma racionalidade que é sempre capitalista, mesmo que para os apologistas do “pós” o capitalismo seja “pós-industrial” e privado (mercadista)3 e para os outros “industrial” e público (estatal). Na realidade, o binarismo infantil “digital” versus “analógico” apenas reproduz as duas faces da mesma exploração capitalista do trabalho da subjetividade, assim como o fordismo e o socialismo foram as duas caras da mesma exploração do trabalho fabril.

Feliciano: o Brasil Maior contra  o Brasil menor

A condição pós-moderna não se define como fim da história, mas como um novo paradigma que faz funcionar (constitui) de maneira diferente o mundo. No pós-moderno, o trabalho (inclusive aquele material) continua sendo central, mas porque é totalmente outro; a indústria continua produzindo bens materiais, mas depende das relações de serviços; os Estados continuam firmes guardiões da ordem, mas não sabem mais o que é o “progresso”, até porque perderam elementos essenciais de sua soberania (como a moeda ou um capital nacional); enfim, os partidos políticos continuam existindo, mas as clivagens modernas que separavam a direita da esquerda não funcionam mais do mesmo jeito. A crise da representação data da chegada ao poder de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha, em 1979, e do ator Ronald Reagan nos Estados Unidos, em 1980. Os músculos do ator Arnold Schwarzenegger (que governou a Califórnia) e o sorriso de Silvio Berlusconi são talvez suas imagens mais grotescas e emblemáticas. É a forma-partido forjada pela racionalidade moderna que está em crise. Antonio Gramsci a definia como a articulação de três camadas (militantes genéricos, quadros intermediários e dirigentes) que correspondiam exatamente à hierarquização taylorista do chão de fábrica: na base, os operários desqualificados; no nível intermediário, os mestres de oficina; e, enfim, os engenheiros de fábrica. Logo antes, o então presidente do Soviete de São Petersburgo, Trotsky perguntava criticamente: “O partido leninista é um partido ou uma manufatura social-democrática?”. Havia, pois, uma perfeita identidade entre oficina e partido, capital e direção, ou seja, uma plena sobreposição entre governo da fábrica, governo da economia e governo das massas. Tudo isso convergia para uma mesma forma: a revolução era uma racionalização.4 É a presidente Dilma que põe em prática os grandes projetos da ditadura (Belo Monte, centrais nucleares, submarino atômico). Antes foi a ultramoderna Brasília no meio do nada. Os governos passam, o racionalismo modernista fica, soberano absoluto. A luta política se reduz à corrida para quem protagonizará e realizará os mesmos projetos, segundo a mesma lógica. Mas, hoje, essa volta da racionalidade é altamente paradoxal, pois o futuro já não é mais o que era: não precisamos mais esperar pelo tsunami para saber que a racionalíssima nuclearização do Japão (que energizou mundo afora o tsunami das exportações de seus carros) é tão irracional quanto Hiroshima, Auschwitz e os gulags. A queda do Muro de Berlim não foi a vitória do “capitalismo” sobre o “socialismo”, mas a revolta contra as duas faces de um único totalitarismo, aquele da racionalidade industrial.

É essa irracionalidade (da racionalidade) que está na base, ao mesmo tempo, da reorganização do capitalismo em torno das lutas pela produção de significação (de valor) e da crise da representação. Por um lado, o capitalismo contemporâneo tenta reestruturar-se em torno da produção de subjetividade, ou seja, de formas de vida: por isso as economias se tornam terciárias, pois é nas relações de serviço que se criam os valores, inclusive dos bens materiais − de um chinelo Havaianas, de uma camiseta Nike ou de uma roupa Zara. Por outro lado, “trabalhar” significa hoje produzir as condições para poder trabalhar: não apenas procurar um emprego, mas procurar ser empregável, precário e até escravo, como vimos nos fornecedores paulistas da multinacional espanhola Zara.

O “valor” da produção industrial passa a depender dos serviços e o trabalho passa a ser uma “relação de serviço”. As relações sociais de produção não passam mais pelas homogeneizações prévias dentro dos muros da fábrica e o trabalho dos pobres é mobilizado assim como ele se encontra: difuso nos territórios e nas favelas. A fragmentação social aumenta de maneira exponencial e, ao mesmo tempo, a mobilização autônoma dos pobres produz outros valores, outras formas de vida, autovalorização. Essas metamorfoses tiveram e têm impactos formidáveis sobre a política e os partidos. Ao passo que o partido tradicional organizava um pedaço da sociedade, com seus grêmios, núcleos e clubes, orientando os valores de um corpo eleitoral estável, hoje o partido (mesmo quando ele quer fazer do neodesenvolvimentismo seu “projeto de nação”) precisa capturar fluxos de votos (como os corretores das Bolsas de Valores capturam fluxos de informação) que vão compor um mercado eleitoral no lugar daquele corpo eleitoral que desapareceu. Antes, tratava-se de um partido de massa; agora, de um partido cata-tudo. Consequência imediata: a explosão dos custos. Em 1980, na campanha Reagan contra Carter, foram gastos US$ 90 milhões; na última – Obama contra Romney –, foram gastos US$ 2 bilhões. Os partidos compram o que não sabem mais produzir. Os marqueteiros substituem os intelectuais. Quando se organizam primárias, o efeito será de levar para dentro do que sobra do partido essas deformações.

Como não ver nessas violentas inflexões o declínio da direita brasileira? Também o maior partido de esquerda (o PT) foi – no mínimo − atropelado por elas! A mídia monopolista tenta fixar a crise na questão da corrupção. Mas esse não é um fato novo. A novidade é que ela fica nua, insensata, já que os partidos passam a funcionar por sinais trocados. Assim, o dirigente de um partido oriundo do maoismo passará a defender os interesses dos ruralistas; setores do PT carioca que pregam a oposição ética à aliança com o PMDB defenderão a vergonhosa remoção da comunidade do Horto em nome de uma noção totalmente abstrata de “público”; outros setores do PT aplaudirão o violento despejo da Aldeia Maracanã. A lógica das correntes passa a ser substituída pela consuetudinária cultura do compadrio e do nepotismo. Enfim, o partido de governo desdenhará a Comissão de Direitos Humanos do Congresso para presidir a Comissão de Orçamento: as compras militares do Brasil Maior interessam bem mais que as lutas do bRASIL menor de pobres, índios, negros, mulheres, gays, lésbicas.

Governos incapazes de compreender as reais dinâmicas de mobilização social procurarão público jovem “bancando” as mais novas formas mortas da representação, ou seja, ONGs, “Casas” e outros “Circuitos”, que, com base na linguagem do “pós-qualquer-coisa”, transformam os ativistas em empregados e os empregados em precários. E quando o príncipe, com uma de suas mágicas, inventa um novo e vitorioso candidato (como aconteceu em São Paulo), este deverá beijar a mão da velha política: não se trata da foto com o specimen decadente do coronelismo urbano, mas do discurso de posse no qual ele crê resolver o quebra-cabeça do dramático déficit democrático caindo no branding do “amor”, na transformação do conflito em harmonia e, pois, do “amor” em um favor. É como se as paixões devessem ser dominadas antes que pudessem chegar ao conhecimento: “Isso seria o mesmo”, dizia Espinosa, “que querer que o ignorante deva abandonar a ignorância antes de poder chegar ao conhecimento, ao passo que só o conhecimento é causa da destruição da ignorância”.5 E, portanto, as palavras da música são claras: “Não existe amor em SP”, e não será por decreto que ele passará a existir, ainda menos pelo branding do pós. O “amor” só existe na prática das lutas e da democracia, ou seja, na organização autônoma do conflito (e não da harmonia). Somente homens livres constituem a paz, e a “causa mais livre é aquela interna”, imanente às lutas por uma cidadania total, definida pelo compartilhamento das técnicas, dos fluidos, das sementes, da água, do saber. Uma cidadania total que não vive de direitos universais e abstratos, mas dos direitos da diferença, isto é, dos direitos concretos e singulares que se reconhecem no comum da multidão. O próprio prefeito Fernando Haddad soube encontrá-los e reconhecê-los na resistência dos moradores da área Pinheirinho II. Na crise da representação e da política, o único horizonte que interessa é o da mobilização radicalmente democrática, por difícil e enigmática que seja hoje essa equação.

Giuseppe Cocco é professor UFRJ e participa da rede Universidade Nômade.

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