Bruno Cava
A cena das salvas de canhão contra o topo das pirâmides tem sido usada como exemplo das incorreções históricas do último Napoléon, dirigido por Ridley Scott. Ora, muitos espectadores, ao verem o filme, não veem o que ele nos apresenta. Não é um documentário, nem aspira ao gênero do romance histórico, pautado pela inscrição dos acontecimentos em um quadro geral representativo, fiel às narrativas históricas.
Faltou reparar em outra cena, mais expressiva da estratégia do filme. Após a conquista do Egito, o general da Córsega vivido por Joaquin Phoenix pede aos soldados que lhe abram um sarcófago. Esse episódio, que poderia remeter para o grandioso, o épico, os 40 séculos contemplando a chegada do futuro, se resolve no ridículo. Napoleão precisa subir em um banquinho para alcançar a altura do faraó mumificado. Depois de encarar a múmia, o ator arremata com um gesto entre o mundano e o cômico.
Hegel escreveu que, ao presenciar a passagem de Napoleão por Iena, depois da célebre batalha de outubro de 1806, havia presenciado o Espírito do Tempo a cavalo. Testemunhava a cavalgada do Zeitgeist, encarnado no imperador francês, cuja vitória pelos campos de batalha precipitava a Europa continental ao Fim da História.
Na filosofia da história hegeliana, o Estado Napoleônico era o protótipo do estado universal, laico, abstrato (portanto, mais concreto que o concreto), em que todos os seres humanos passavam à condição de ‘citoyens’, partícipes equânimes da Cidade da Razão.
No filme de Ridley Scott, ridículo e épico, estórias, histórias e História colapsam em sincronicidade. Ao contrário do XVIII de Brumário, de Marx, a farsa não vem depois da tragédia. Não precisamos esperar o coup d´État do sobrinho de Napoleão, para que a história se repita a baixa altura. A farsa estava lá, ao lado, desde o início.
É como um relacionamento em que a traição, o que avilta suas promessas e expectativas, não está lá na frente, mas desde o início presente: toda confiança pressupõe objetivamente a própria traição, a traição não espera o traidor; todo episódio alto, romantizado, contém em si a sua derrisão inevitável. Dentro dessa visão, que é a do filme, o estilo de atuação de Phoenix funciona à perfeição.
Robespierre dizia que a maior virtude popular era a aptidão para o terror. A mesma sede de vingança que mobiliza um linchamento, a mesma crueldade brotada da inveja e do ressentimento de classe, é aquela dirigida para a mudança histórica. Não haveria outro jeito. A diferença entre os liberais e os antiliberais se resume nisso: os últimos reconhecem que, sem sujar as mãos, sem sangue, violência e crime, não há como alterar a ordem constituída, não há como inaugurar outro tempo. É isso que os liberais censuram nos iliberais: a sua concepção revolucionária não passa da instrumentalização do crime, a seguir redimido pelo novo estágio da justiça, do universal, do progresso (conteúdo moral da ‘Aufhebung’).
Os cavalos estão onipresentes no filme, como eram nas batalhas do século XIX. No combate em que o corso debutou como comandante, o seu cavalo foi aniquilado por um tiro de canhão frontal. Tivesse a bala sido disparada com um ângulo ligeiramente diferente, o portador do Zeitgeist teria morrido ali mesmo, ceifado da linha do tempo muitos anos antes da subida ao poder.
O “Napoléon” de Scott começa com a caminhada ao cadafalso de Maria Antonieta, cercada pelo escárnio da multidão. A câmera se delonga nas faces feias, na textura dos tomates amassados, na arrogância do semblante da ex-rainha. Episódio de resto triste de uma execução pública, mas que para muitos se justificará, à luz da filosofia da história, graças ao sentido superior da marcha dos tempos.
Era o Antigo Regime personificado no corpo branco da nobreza europeia que era naquele momento seviciado, sob o aplauso das massas. Scott todavia não nos permite essa leitura hegeliana, que aplaina as narrativas na flecha redentora da Grande História.
Quando, em cena posterior, o próprio líder dos jacobinos é acusado e passa à condição de alvo do mesmo clamor de justiça popular, ele tenta escapar da guilhotina pelo suicídio. O tiro autoinfligido, no entanto, falha, atravessando o pescoço sem atingir alguma artéria. Um deputado introduz o dedo no buraco da bala, fitado por um Robespierre agora prostrado no ridículo.
A linha da narrativa é quebrada (o final lógico seria a guilhotina). Um momento decisivo dos descaminhos da Revolução Francesa, a passagem de uma fase para outra, se resolve em um ‘close’ de medicina legal. Mais uma vez, Scott desvia a atenção dos esquemas teleológicos.
Em nome de que ideia tantas vezes vem sendo criticado o último Napoléon? De qual ideia de cinema? Em parte, da ideia dialética. Parte dos críticos sente falta da encenação da conflagração de forças políticas e econômicas que veio a culminar, por um sem número de desvios e reviravoltas, na ascensão imperial de Napoleão, a partir do período girondino.
Todas as mediações históricas, as suas correlações complexas, deveriam ter sido resumidas em 2h39min, na versão mutilada em relação à do auteur, que chegou às telas comerciais.
O filme não “formaliza” as dinâmicas materiais da história, não expõe sua “estrutura”, não transmite um senso moral das lutas em que se engajam os seres humanos, com seus altos ideais. Crítica desfocada. Faltou ver o filme, qual? Este.
Este filme em que a inteligibilidade da história não aponta para um ‘telos’, nem as mortes encontram uma justificação numa missão maior e transcendente. Neste filme, de Ridley Scott, não há progresso, inversão ou Astúcia na Razão dos tempos, que pudessem retrospectivamente conferir dignidade superior aos golpes dos personagens e seu teatro.
O sentido da história é absurdo. É absurdo porque o futuro — lucrecianamente, isto é, no materialismo — não está contido no passado. O universal da história está na contingência.