Por Centro Angelelli | Trad. Vladimir Santafé, UniNômade Brasil
Centro de Participação Popular Bispo Angelelli, na Argentina, sofre com intimidação da milícia
Ontem, durante a manhã de terça-feira, 1º de outubro, a sede do Centro de Participação Popular Dom Angelelli foi violentamente atacada por uma suposta gangue de quatro pessoas. A causa aparente do ataque seria um assalto, no entanto, há evidências de que este não foi o único propósito. A frequência e a intensidade desses eventos no território de Varela confirmam essencialmente os traços violentos de um novo conflito social que, executado em várias partes do país, ambos ocorridos em Pico de Oro (há um ano atrás, no incêndio criminoso da casa de dois companheiros do movimento social em Florencio Varela, provavelmente executado por grupos armados, coordenados com a polícia local, parte da justiça e do poder político ). No momento, em Angelelli, essas “organizações criminosas” do poder público abertamente assaltaram bairros com ferocidade, a céu aberto, impunemente. A polícia, nesses locais, caminha para governar os territórios em disputa entre as gangues, que organiza-se com o “apoio logísticos” da polícia e do poder público. Os eventos que ocorreram ontem em Varela, como muitos outros em todo o país, devem ser entendidos como um sério aviso à complexidade que adota a luta social e política no momento e, portanto, da necessidade de inovação e do fortalecimento das redes organizacionais do movimento social, isto é, desenvolvendo a capacidade de comunicação, pesquisa e articulação com outros setores da sociedade.
Os fatos
O tempo estava espesso. Nas últimas semanas, a organização já havia registrado o roubo incomum de dois centros comunitários, os centros de Tres de Mayo e de San Cayetano. Ontem, 01 de outubro, três homens perguntaram a Gabi, membro do Centro Angelelli, na própria sede da organização: “Onde está o tesouro?” Eles demonstravam uma serenidade impressionante ou deviam estar drogados. Depois da intimidação, foram direto para o escritório administrativo.Tal como acontece com o Centro Angelelli, não há grandes somas de dinheiro nos mesmos, não havia mais que uns 2.500 pesos, provavelmente a soma exata do dinheiro. A polícia acredita que a 2ª Delegacia de Varela tenha sido avisada por meio de uma criança que se encontrava numa das oficinas realizadas neste centro. A criança disse que notou algo estranho e comentou o ocorrido com seu professor, o que foi prontamente relatado para a instituição, que chegou em poucos minutos. Na presença da polícia, os sujeitos que invadiram o centro tentaram escapar usando suas armas. Um quarto membro da gangue esperava do lado de fora num carro e conseguiu escapar. Os outros três (armados com um rifle calibre 22 especial e uma pistola nove milímetros), usaram Gabi como um escudo humano e se retiraram disparando. O tiroteio ocorreu em plena luz do dia, numa zona populosa, poucas quadras da estação de trem, passagem obrigatória para uma escola e um jardim de infância. Em certo momento, Gabi tropeçou em meio à confusão provocada pela fuga dos sujeitos, e um deles tentou escapar pela porta dos fundos do centro. Foram várias dezenas de balas disparadas em todas as direções.
Nessas circunstâncias, foram feridos e capturados Rodrigo Ramsky, de 23 anos, filho de um empregado no Remedios de Escalada (que vive no bairro de Santa Inés, de Varela), e Pablo Daniel Galeano de 28 anos, cujo último domicílio encontrava-se no bairro de Los Álamos de Quilmes, procurado pela fuga do centro de detenção Unidad 24 em que esteve preso nos últimos anos. Tanto Ramsky como Galeano se recuperaram de suas feridas, e se encontram detidos na 2ª Delegacia de Varela. A causa está nas mãos da Fiscalía 4 descentralizada de Varela, a cargo de Nuria Gutiérrez. Dados que chamam a atenção é que quando foi preso, e a polícia lhe pediu a identificação, Pablo Daniel Galeano, do solo e ferido lhe disse: “vá procurar se informar e vá pra puta que pariu”. Esta atitude manteve-se durante as primeiras horas de detenção. Os que escaparam: o Negro, conhecido em Varela por estar implicado em drogas e roubos; e o Pato, cunhado de Ramsky, que manejava o processo e tem conhecimento da atividade do Angelelli no bairro. Os detidos: Pablo Daniel Galeano esteve preso durantes anos na Unidad 24 de Varela com Américo Claudio Mena, chefe de uma gangue vinculada ao PJ local que traficava e matava com proteção policial, mas que foi detido a partir do assassinato de Carlos Gabriel Fretes, em fevereiro de 2012. Tanto o comissário González (de la Comisaría 1ª, cuja jurisdição inclui o bairro Pico de Oro), como o comissário Peressutti de la 2ª (que abarca a zona donde está o Angelelli), abandonaram seus cargos no último ano como consequência das denúncias acima descritas, originando as causas da investigação precedente. Sem dúvida, ambos os comissários, longe de serem exonerados, são hoje chefes de turno na Jefatura Departamental de Quilmes. Em todos estes episódios e conflitos nos assentamentos, se verifica uma aliança entre gangues armadas e setores da polícia.
Pelas características do roubo e daqueles que o protagonizaram, podemos inferir que não se trata de um fato isolado, e que portanto: a) os detidos são os autores materiais, mas evidentemente não são os autores intelectuais do crime, e b) mais que um simples roubo, esse fato deve ser visto como uma mensagem ao Angelelli.
Hipóteses
Os sujeitos foram enviados ao centro para intimidar os seus membros, e possivelmente disseram que se poderia sacar dali algum dinheiro. Mas o mais provável é que os sujeitos foram pagos anteriormente para disseminar o medo, como parte da disputa territorial em curso. Eles se saíram mal com a chegada da polícia. A gangue que invadiu o lugar o conhecia, e não improvisou o assalto, foi tudo planejado. A frieza com que o tiroteio se deu chama a atenção, assim como a atitude desafiadora diante da polícia. A investigação agora deve se dirigir aos autores intelectuais do crime e não se limitar à prisão dos seus autores materiais, o que provavelmente ocorrerá para encobrir as verdadeiras causas do assalto.
O Centro Angelelli é uma organização dedicada à defesa dos direitos humanos e à inclusão social com mais de vinte anos de trajetória. Um de seus principais eixos de trabalho consiste em realizar tarefas de regularização de assentamentos informais, mas também a luta contra a repressão das autoridades locais. Com um alto nível de inserção social, que se reflete na legitimidade dos mais diversos atores sociais, incluindo o próprio Estado. Entre suas atividades se inclui o funcionamento de uma escola secundária para adultos, oficinas de artesanato para jovens, uma rádio comunitária, o trabalho com migrantes e a coordenação do Espacio de Tierras Para Todos y Todas. O Espacio de Tierras foi criado há oito anos com o objetivo de fortalecer as demandas de Estado estimuladas pelos distintos assentamentos vinculados ao Centro Angelelli, assim como para ampliar a capacidade de gestão de conflitos e produzir um diálogo fluido entre os assentamentos. Funciona como uma assembleia aberta integrada por delegados e vizinhos dos assentamentos com o preponderante participação de mulheres e coletividades migrantes), em que se expõe as circunstancias de cada bairro e se discute as ações e estratégias frente à grade de avanços dos compromissos assumidos pelo Estado e pelas empresas prestadores de serviços no caso dos assentamentos. Também se desenvolvem açõesvinculadas a algumas questões como um possível despejo ou remoção de famílias ou indivíduos, as diversas maneiras de se abrir diálogos com o Estado, etc., que cada vez encontramos com maior frequência no Espacio de Tierras. Atualmente há mais de vinte assentamentos e as assembleias têm tido um ocorrência próxima a 250 delegados/as. A modalidade de intervenção do Centro Angelelli em relação às demandas de acesso à terra em Varela, caracterizando-se em quatro categorias: assembleias, plenárias – reuniões que convocam a vizinhança do bairro, onde se realiza uma proposta em comum aos principais conflitos e ações que se desenvolvem a partir do Centro, assim como a elaboração de estratégias conjuntas – espaços de negociação – definidos definidos em qualquer instância aberta na interlocução com o Estado, e ações de pressão – mobilizações, ocupação de edifícios públicos, paralisação de ruas e outros atos de caráter público orientados para chamar a atenção do Estado sobre as demandas mais emergenciais e obter uma resposta.
Novo conflito social
Uma nova forma de conflito social irrompeu nos territórios que mencionamos, a partir da proliferação de negócios que necessitam de uma violência crescente para impor-se e subordinar as lógicas da organização comunitária. O uso de gangues armadas por parte de empresários, a cumplicidade das distintas instituições policiais e a participação de juízes e fiscais, assim como de setores do poder político nas tramas deste novo negócio, resultam hoje em “moeda comum”. É preciso criar os modos de dar visibilidade a esses novos conflitos, através de uma narração que não recaia na crônica policial dos fatos. É urgente aprimorar uma rede de experiências inseridas em diferentes territórios, com a intenção de desdobrar uma ação e um pensamento conjunto orientado para a resistência e o cuidado mútuo, melhorando nossa capacidade de interlocução com as diversas dimensões institucionais capazes e dispostas a acompanhar um processo de elaboração e intervenção coletiva.
