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O levante de junho: uma potentíssima bifurcação

Republicação da entrevista com Giuseppe Cocco pelo IHU online

“Todas as “máscaras” do Estado já caíram. Hoje, segundo ele, não temos um Estado de Direito, mas um Estado de Polícia, de repressão e perda das liberdades democráticas”, assevera o sociólogo.

“A forma espúria de agir do Estado, ou conluio generalizado entre forças de polícias e crime organizado, no meio da histeria repressiva contra o tráfico de drogas, funciona como principal mecanismo de legitimação da guerra contra os pobres e contra suas mobilizações democráticas”, afirma Giuseppe Cocco. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o sociólogo critica a postura autoritária dos que se opuseram e se opõem às manifestações populares que ocorrem no Brasil, ainda que hoje com menos força, desde o meio do ano.

“Em junho, os partidos tradicionais (de governo e de oposição) criticavam o movimento por não ter organicidade, lideranças e ‘projeto’. Caberia perguntar: quais são, hoje, a organicidade e os projetos dos partidos?”, provoca ele. “Que projeto tem esses ‘deputados e senadores’, que não seja a mera ocupação do aparelho de poder assim como ele é? E qual seria o projeto dos partidos de esquerda?” Para ele, é justamente na falta de organização formal e na multiplicidade das singularidades que jaz a força das manifestações, “sem lideranças e, por isso, mais potentes”.

Cocco questiona o papel assumido hoje pelos partidos, que “parecem funcionar como coalizões espúrias de estratégias personalistas, grupos de interesse econômico que formam bancadas bem pouco ‘republicanas’ a partir do peso de determinados lobbies (agronegócio, telecomunicações, evangélicos, etc.) que passam por cima das próprias instâncias partidárias”.

Nesta crítica, o sociólogo manifesta especial surpresa sobre a postura assumida pelas esquerdas do país, especialmente o governo, que ou batem de frente e repreendem as manifestações, ou maquiam suas próprias ações para dar a entender que são provedores das liberdades democráticas, ocultando ocorrências como a “Chacina da Maré” ou abusos como o caso do pedreiro Amarildo. Independente a isso, para ele, o povo continua lutando. “É a multidão que está na frente, praticando e inovando nas formas de luta e voltando a dar credibilidade à política, em particular junto aos jovens”, pondera. “O melhor da juventude brasileira está na rua”.

IHU On-Line – O que as manifestações do chamado Outubro Brasileiro nos ensinam no que se refere às possibilidades efetivas da democracia direta?

Giuseppe Cocco – As manifestações de outubro são a continuidade e o desdobramento daquelas de junho. No conjunto elas ensinam muitas coisas, inclusive sobre as possibilidades efetivas de democracia direta. Antes de tudo, elas nos ensinam que a “democracia direta” só existe nos termos da radicalização democrática. O movimento não apenas nos diz que a separação da fonte (o povo) vis-à-vis do resultado (os representantes) é imoral, mas explícita, e torna visível que essa dimensão imoral do poder está baseada na violência de suas polícias. Ou seja, o movimento teve a capacidade de mostrar para o Brasil e para o mundo as dimensões perversas do monopólio estatal do uso da força no Brasil; um regime de terror de Estado que, por meio do regime discursivo sustentando pela mídia da elite neoescravagista, é tratado como se fosse “externo” e independente dos governos, até o ponto em que, no Rio de Janeiro, a solução seria seu aprofundamento por meio da chamada “pacificação”.

Seria irônico se não fosse o cúmulo do cinismo escravocrata. É que a forma espúria de agir do Estado, ou conluio generalizado entre forças de polícias e crime organizado, no meio da histeria repressiva contra o tráfico de drogas, funciona como principal mecanismo de legitimação da guerra contra os pobres e contra suas mobilizações democráticas. Como sempre fez, desde junho, o poder multiplica os boatos sobre participação do narcotráfico nas mobilizações democráticas. Na senzala — ou seja, nas favelas, subúrbios e periferias — o terror anda a pleno vapor, quer a polícia seja do PSDB, do PT, do PSB ou do PMDB. É um terror estatal com vieses classistas e, sobretudo, racistas. Os ventos de junho continuam soprando (não apenas em outubro, mas também em novembro), e o outono já virou uma primavera que anuncia o carnaval.

O levante de junho não foi uma explosão efêmera, mas uma potentíssima bifurcação dentro da qual ainda estamos. Nessa bifurcação, as possibilidades de democracia direta nos aparecem ao mesmo tempo potentes e ativamente bloqueadas, literalmente criminalizadas por um Ministro da Justiça que transforma em crime, com apoio entusiasta da imprensa hegemônica, os direitos constitucionais de manifestação e livre opinião. E isso com base em relatórios da Polícia Federal sobre atividades que não são crimes.

Ou seja, o Ministro da Justiça se transforma em Ministro de Polícia e o Estado faz cair sua máscara para aparecer explicitamente o que é: um Estado de Polícia. Confesso que fiquei espantado diante da “reação” (e quero enfatizar mesmo esse termo “reação”, pois é a raiz de outro termo: “reacionário”) da esquerda em geral, sobretudo da esquerda de governo, em particular do PT e de alguns dirigentes e até de alguns amigos. Meu espanto aumenta a cada dia. Se da Presidenta Dilma (que, como disse um viral na internet de um artista carioca, “Já foi Sininho e hoje virou Capitão Gancho ”) não esperava nenhuma sensibilidade, não digo “social”, mas sequer política, de outros esperava uma postura diferente, pelo menos progressista e esclarecida.

O fato é que a esquerda de poder e o PT (que me interessa) não fizeram, e não fazem, nenhum esforço para abrir os governos que lideram à nova demanda de participação e de “democracia real já”. Ao contrário, assistimos a uma postura arrogante e reativa, nos moldes do Ministro da Justiça se transformando docilmente em Ministro de Polícia. Essa postura enfatiza o que já sabíamos: que as brechas de transformação dos governos Lula foram definitivamente fechadas pela Dilma; que as experimentações em termos de orçamento participativo não apenas foram encerradas faz tempo, mas foram totalmente sobrevalorizadas. O OP (Orçamento Participativo) não deixou rastros políticos de nenhum tipo.

Democracia produtiva

De toda maneira, apesar desse vazio político desanimador, hoje é o horizonte inovador de uma democracia produtiva que temos diante de nós. Podemos apreender suas dimensões em três grandes níveis:

A) a ruptura— parcial e temporária, mas real — das dimensões totalitárias construídas em torno do consenso da “governabilidade”;

B) a multiplicação de assembleias (muitas delas chamadas de “populares”) e ocupações de Câmaras e Assembleias Legislativas em muitíssimas cidades; e

C) a forma produtiva do “movimento”.

As três dimensões fazem do levante de junho-outubro um momento constituinte. Num primeiro nível, pelo decreto de redução das tarifas de transportes (no caso do Rio Grande do Sul, o governo Tarso teve a coragem de promulgar o Passe Livre para os estudantes) e uma série de outros decretos da plebe. No Rio de Janeiro, tratou-se, sobretudo, do entorno do Maracanã e do recuo parcial do Prefeito (embora falso) nas políticas de remoções de favelas. No segundo nível, as ocupações de “parlamentos”, além de traduzir-se em decretos do tipo daqueles do primeiro nível (“recuos” pontuais dos governos) visaram transformar a crítica da representação no terreno concreto de um aprofundamento democrático, de invenção de novas instituições.

Recorrendo mais uma vez ao Rio de Janeiro, as sucessivas ocupações da Câmara dos Vereadores (e da praia do Leblon, em baixo da residência do Governador, sem contar o sem número de manifestações na frente do Palácio Guanabara, na frente da Alerj ou a breve ocupação na frente da residência do Prefeito Municipal) mostraram que o movimento de junho não era efêmero, mas capaz de abraçar as lutas mais difíceis como aquela contra a máfia dos ônibus (cobrando uma CPI transparente e democrática). Sendo que a luta contra a máfia dos ônibus não é apenas uma luta pela reforma urgente da gestão do sistema de transportes, mas também pela democracia: todo mundo sabe que esses “lobbies” se constituem nos maiores entraves ao sistema democrático, inclusive aquele representativo!

A ocupação da Câmara do Rio mostrou toda sua potência de novo terreno de luta democrática quando passou a ser usada e renovada pelos professores da rede municipal. Não é por acaso que foi duramente reprimida: o poder não pode com certeza tolerar que a democracia real se instale. Seria um exemplo insuportável.

Enfim, com o outono virando primavera, a persistência do movimento nos mostra as dimensões produtivas e, nesse sentido, constitutivas do horizonte democrático que ele define. As mobilizações praticamente diárias, que se sucederam em julho, agosto e setembro até se massificarem novamente nos dias 7 e 15 de outubro, são o terreno de uma multiplicidade de iniciativas: advogados da OAB, grupos de advogados ativistas, grupos de primeiros socorros, coletivo projetação, autoformação nas ocupações, músicos e bandinhas, uma multidão de mídias produzindo desde inúmeros streamings e documentários passando por todos os tipos de registros fotográficos. A democracia que o movimento desenha é constitutiva e é mesmo produtiva. O fato de um processo de subjetivação que mostra toda a potência das redes e das ruas.

IHU On-Line – A ausência de um projeto político unificador das pautas dos manifestantes levou à dispersão e à imobilidade? Foi isso o que ocorreu após a redução do preço das passagens, principal pauta das manifestações de junho em várias cidades brasileiras?

Giuseppe Cocco – Parece que foi exatamente o contrário o que aconteceu: não houve dispersão, mas difusão e multiplicação de manifestações, reivindicações, assembleias e reuniões. Pelo menos no caso do Rio, não houve sequer um dia de “imobilidade”, mas uma mobilização diária, modulada em escalas diferentes. A multidão passou a fazer-se pela multiplicação difusa de iniciativas de lutas novas e antigas. O movimento de junho teve a capacidade de colocar pautas que eram tão urgentes como inalcançáveis até então, como na questão dos transportes urbanos. Claro, os esforços dos jovens do Movimento pelo Passe Livre (MPL) estão na base disso, mas é a primeira vez que a luta sobre o preço das passagens e a qualidade dos transportes se consolida nas ocupações de Câmaras e Assembleias Legislativas para que todo o sistema de gestão seja objeto de democratização.

O movimento de junho foi se metamorfoseando numa constelação de movimentos e iniciativas, conectando entre elas as lutas mais diversas: desde aquelas dos favelados contra as remoções ou a violência policial, até aquelas dos usuários massacrados nos transportes todos os dias, passando pelos movimentos de categorias como a dos bancários, dos petroleiros e, sobretudo, dos professores.

Os professores do Rio de Janeiro encontraram no levante de junho e, principalmente, em sua persistência a inspiração para lutar. Os professores experimentaram, nas misturas com o Ocupa Câmara e os jovens da tática Black Bloc, novas formas de luta e organização, de tipo metropolitano: a forma sindical (o SEPE) saiu extremamente enfraquecida (e até objeto de críticas violentas) ao passo que, em sua última fase, o movimento foi experimentando formas embrionárias de organização territorial, algo como novas Câmaras do Trabalho Metropolitano que chegaram a viver nas conexões entre as diferentes acampadas. Não dá para saber com quanto fôlego, mas as acampadas do Leblon e da Câmara foram retomadas nesses dias.

A greve dos professores municipais não foi mais a tradicional greve absenteísta do setor público, mas uma luta sensacional de ocupação e resistência, inclusive diante da repressão policial. É isso que levou, no dia 1º de outubro, a uma batalha campal de horas e horas no centro do Rio de Janeiro (sendo a repressão policial a única argumentação usada pelo governo PMDB-PT para “negociar” com os grevistas) e, no dia 7 de outubro, à volta da multidão na Avenida Rio Branco.

Mais de 100 mil pessoas marcharam, numa repetição de junho que agora não tinha mais nenhum tipo de ambiguidade. Uma grande manifestação de esquerda, atravessada e enriquecida pelas diferenças e por milhares de jovens que aderiram — talvez pela primeira vez — à tática Black Bloc.

No dia 15 de outubro, novamente dezenas de milhares de pessoas ocuparam a Rio Branco. A multidão está na rua e persiste em seu fazer-se. Não uma massa homogênea e manipulada (aquela que a mídia neoescravagista gostaria de ver na rua) e sequer a identidade categorial e corporativa que os sindicatos (pelegos ou supostamente “radicais”) conseguem colocar, mas uma multiplicidade de singularidades, sem lideranças e por isso mais potentes. É a multidão que está na frente, praticando e inovando nas formas de luta e voltando a dar credibilidade à política, em particular junto aos jovens.

Projetos dos partidos

Lembremos que, em junho, os partidos tradicionais (de governo e de oposição) criticavam o movimento por não ter organicidade, lideranças e “projeto”. Caberia perguntar: quais são, hoje, a organicidade e os projetos dos partidos? Por um lado, é difícil defender que os diferentes partidos de governo tenham alguma organicidade. Eles parecem funcionar como coalizões espúrias de estratégias personalistas, grupos de interesse econômico que formam bancadas bem pouco “republicanas” a partir do peso de determinados lobbies (agronegócio, telecomunicações, evangélicos, etc.) que passam por cima das próprias instâncias partidárias. Que projeto tem esses “deputados e senadores”, que não a mera ocupação do aparelho de poder assim como ele é? E, qual seria o projeto dos partidos de esquerda?

Aqueles que fazem oposição se confirmaram como fundamentais, em particular o PSOL do Rio de Janeiro. Contudo, a “esquerda de oposição” sai muito mal desses cinco meses de lutas. Quando ainda tem cidadania no movimento, isso não impede que o movimento os transponha totalmente. Por outro lado, é evidente que a “esquerda de oposição” não representa nenhuma alternativa eleitoral, e eu continuo convencido de que até o movimento mais radical precisa de algum momento eleitoral. Quanto ao PT, qual é seu projeto? Difícil dizer, pois não há nenhum, a não ser “continuar no governo”. É ainda pior se perguntamos: qual projeto a Presidenta Dilma implementou em seu mandato? Em termos de políticas públicas, não houve nenhuma inovação.

A marca da Dilma foi a volta do economicismo, e isso em torno de duas falácias: a primeira foi a aposta na economia material das commodities, dos megaeventos, das megaobras e dos global players (a grande indústria multinacional); a segunda — complementar a essa — foi a ideia de que a mudança de modelo econômico viria de cima para baixo, pela decisão-decreto de “baixar a taxa de juros”.

Quando Dilma fala que gosta de engenheiros e não de advogados, ela está sendo muito sincera, nos faz entender que ela é mesmo autoritária. Não se trata apenas de “jeito”, do gosto pelos engenheiros que fazem os cálculos das barragens ou dos estádios, diante dos “chatos” dos advogados que ajudam os índios e os pobres a desconstruir essas equações para mostrar os impactos ambientais e sociais. Trata-se mesmo de uma maneira de pensar a política como uma engenharia social, uma teleologia do progresso a ser implementada, inclusive pela força (a polícia, sem esquecer que se trata da polícia brasileira, que mata oficialmente cinco pessoas por dia), como fizeram Lenin e Stalin com a “industrialização forçada”. Só que agora, o ridículo é que o totalitarismo é para permitir a qualquer custo que a Copa da FIFA aconteça nos moldes dos interesses da FIFA. O nacionalismo é sempre assim: em nome do interesse nacional, abrem-se avenidas para o neocolonialismo interno e, pois, externo.

Logo que foi eleita, Dilma mostrou a que veio: a destruição do Ministério da Cultura foi emblemática, mas também a afirmação de seu estilo autoritário, com a demissão de Pedro Abramovay, justamente por ter anunciado um elemento de projeto (a reforma — urgente e necessária — da política de repressão das drogas). Um episódio que mostra o caráter arrogante e autoritário da Presidenta e a submissão dócil de seus ministros — a começar pelo que deveria ter defendido o Pedro Abramovay, o Ministro da Justiça —, que praticamente não tomaram nenhuma iniciativa nestes três anos.

Nada foi produzido pelos ministros. Imaginem o que teria acontecido com Tarso Genro quando tomou a corajosa decisão de conceder refúgio ao Battisti . O fato é que os elementos originais do governo Dilma foram desastrosos e apagaram o pouco que havia de “esquerda” no pragmatismo “lulista”: no plano das megaempresas, temos a falência de Eike Batista — que envolve BNDES, CEF e FGTS — e as dificuldades pesadas da Petrobras que levaram ao Leilão de Libra (e levarão ao aumento do preço da gasolina porque a produção dos poços tradicionais caiu); os megaeventos se mostraram como impopulares justamente em junho, durante a Copa das Confederações — como se faz para gastar bilhões em embelezamento (no Porto Maravilha) quando milhões de pessoas ao lado convivem com rios de esgoto a céu aberto? Só mesmo por meio do conluio com a tradicional política de terror, essa sim mascarada por trás da clivagem de raça e classe, que mantém a senzala em “seu lugar”.

No plano da nova política econômica (a manutenção dos subsídios à grande indústria e a tentativa de baixar os juros), esta acabou reforçando as tendências inflacionistas que já estavam presentes. O levante de junho foi, inicialmente, a afirmação de que só uma mobilização democrática é capaz de romper a ciranda mortífera que liga as duas inflações: a dos juros e aquela dos preços! Tornando-se primavera, o outono é também a base para reafirmação da própria noção de projeto. O “projeto” que interessa é aquele que não é unitário, mas múltiplo, aquele que é aberto a outro processo de produção de subjetivação, aquele que não se separa do processo de sua constituição: o único jeito de a “política” voltar a ser ética (e crível para os jovens) é de manter a fonte e o resultado juntos num processo continuamente aberto. O único projeto que interessa é justamente aquele que não é projeto, ou seja, onde não há nenhuma teleologia totalitária, mas o máximo de constituição democrática.

IHU On-Line – Que relação pode ser feita entre aquelas primeiras manifestações e as mais recentes, que passaram a ser identificadas pelos atos de violência? Trata-se da continuação de um mesmo fenômeno ou são situações isoladas uma da outra?

Giuseppe Cocco – Não há diferença entre as primeiras manifestações e aquelas que persistiram ao longo desses meses: por exemplo, as primeiras manifestações no Rio de Janeiro, no início de junho, tinham muita pouca gente e já eram caracterizadas pela determinação de uma nova geração de jovens em resistir aos ataques da polícia e dar às manifestações algum nível de efetividade. Contrariamente ao que a mídia e os intelectuais ligados ao governo afirmam hoje, foi essa característica marcante das manifestações que as massificou. Ao passo que os governos achavam que o “rodo” policial teria afugentado os manifestantes, em particular aqueles politizados de classe média que — segundo seus cálculos obsoletos — deviam constituir o núcleo duro das mobilizações.

Não apenas isso não afugentou, mas massificou e, dentro da massificação, foi se construindo a capacidade de resistir e até de praticar ações diretas de tipo simbólico. Desde o início o poder da mídia e a mídia do poder tentaram impor a separação entre os manifestantes “ordeiros” e os “vândalos” e não funcionou. Não funcionou porque, apesar das mistificações seguidas da mídia, as práticas da autodefesa e das ações diretas respeitaram limites políticos precisos que não permitiram que a elas se colasse o discurso da violência e do medo.

A maioria da população, sobretudo da população jovem e pobre, passou a enxergar nessas práticas uma brecha de luta efetiva. Trata-se, pois, de uma continuidade e de um amadurecimento, como vimos na volta da multidão para a Avenida Rio Branco nos dias 7 e 15 de outubro. Contudo, podemos e precisamos sistematizar a questão da violência em três momentos de reflexão: a violência já existe e a novidade foi a brecha democrática; a questão da tática Black Bloc; e a repressão.

A violência

A mídia e o poder sempre tentam dizer que a violência vem do protesto, ou seja, da manifestação democrática. Trata-se de uma operação sistemática de mistificação que assistimos em suas formas explícita e assassina nos últimos eventos de São Paulo — ao passo que alguns jovens estão em prisão preventiva com a gravíssima acusação de “tentativa de homicídio” de um policial (que não sofreu nenhum ferimento grave), os policiais que assassinaram friamente dois adolescentes (em momentos diferentes e logo depois) são indiciados por “homicídio culposo”. Pior, jornais como O Globo (que tem uma longa e mortífera história de apologia do arbítrio policial) chegaram a fazer manchetes que invertiam propositalmente o sentido dos fatos: “Protesto contra morte de jovem termina em violência”. Ou seja, a justa indignação popular contra a violência assassina do Estado sofre uma inversão grosseira, até ofensiva à inteligência do leitor.

O que o movimento fez e faz não é praticar a violência, mas tornar explícita e visível a violência do poder e seus sistemas de (in)justiça, como do caso Amarildo, o pedreiro torturado, assassinado e feito desaparecer na sede da UPP da PM da Rocinha do Rio de Janeiro. A mesma coisa aconteceu com os mais de 10 moradores assassinados na favela da Maré em junho, durante o movimento, pela “Tropa de Elite” da PM do Rio e em relação à qual sequer existe um procedimento disciplinar. O movimento mostrou que os moradores da senzala não têm cidadania nem direito de lutar. A chacina da Maré foi um recado claro, genuinamente neoescravagista, aos pobres: vocês não têm direito de lutar e se lutarem serão mortos. Essa é a democracia que vivemos: não nos grotões do Brasil remoto, mas na metrópole olímpica, o Rio de Janeiro. E isso num governo estadual do PT e do PMDB.

A tática Black Bloc

Porém, milhares de jovens pobres descobriram, em junho, que havia uma brecha para lutar. O Brasil dos megaeventos, das Copas e das Olimpíadas não pode repetir nas ruas e praças o que faz nas favelas, periferias e subúrbios todo santo dia. Não é por acaso que isso aconteceu durante a Copa das Confederações.

A luta foi contra, mas dentro: dentro e contra. Essa brecha é claramente democrática, pois por meio dela os jovens pobres (mesmo que na maioria sejam os mais dinâmicos — prounistas, reunistas, etc.) encontraram a possibilidade de lutar, fugindo ao duplo mecanismo racista e assassino que normalmente é usado para controlá-los: o arbítrio da polícia e aquele do narcotráfico, sendo que às vezes ele toma o nome de “milícia”.

Ao mesmo tempo, os jovens que encontraram essa brecha não acreditam na representação e querem muito mais e melhor. Não querem nenhuma bandeira que não seja aquela que eles mesmos afirmam e produzem em sua luta. Além disso, me parece, esses jovens, e mais em geral os jovens que decidiram entrar para a política em junho, pensam que o único modo de fazê-lo é conseguir certo nível de efetividade, ou seja, ficando nas ruas nas maneiras mais autônomas e determinadas possíveis.

Deve haver outras explicações que eu desconheço, mas olhando para o Rio de Janeiro, onde a tática Black Bloc se apresentou explicitamente (se eu não estiver errado) apenas no dia 30 de junho, nas manifestações de protesto durante a final da Copa das Confederações, creio que as bandeiras negras do anarquismo foram aquelas que a grande maioria desses jovens elegeu como sendo internas a uma luta que é, antes de tudo, uma luta contra a representação e afirma a necessidade de formas de organização radicalmente horizontais, sem liderança.

Eu nunca fui anarquista e não acredito no “anarquismo” porque penso que a luta é pela invenção de novas instituições. Mas não adianta querer que a “realidade” se encaixe nas nossas ideias. É preciso que as ideias se adéquem à realidade. A referência (global) à tática Black Bloc parece ter respondido ou correspondido a algumas inflexões totalmente brasileiras e cariocas.

A primeira é a necessidade desses jovens oriundos das periferias e dos subúrbios de se mascarar para poder lutar (há como que uma inversão: não usam máscaras por serem Black Blocs, mas se chamam de Black Bloc para poderem usar as máscaras e chegar mascarados nas manifestações do mesmo modo que as bandeiras pretas da anarquia lhe parecem as únicas — mas não exclusivas — que afirmam a horizontalidade radical de sua luta).

A explicitação da tática Black Bloc é também — e paradoxalmente diante do processo de criminalização do qual são objeto — a definição de uma ética da resistência e da ação direta, ou seja, de “limites” dentro dos quais manter essas duas práticas que o movimento de junho e seus desdobramentos, ao longo dos meses de julho, agosto, setembro e outubro, colocaram em pauta. A tática Black Bloc foi um sucesso midiático inesperado. São eles que chamam a atenção de todos os tipos de mídia. De onde vem esse “sucesso”? Da percepção de que nessa tática há uma brecha democrática capaz de colocar na rua a questão da paz e da justiça social: é essa tática que conseguiu dar o nome de Amarildo a todos os pobres sem nome massacrados arbitrariamente pelo Estado: cinco por dia, segundo as estatísticas publicadas pelo O Globo.

Contudo, parece que a tática Black Bloc tem uma dimensão estética que também pode funcionar como uma identidade e isso, a meu ver, é um problema. Em primeiro lugar porque pode servir para os desenhos da repressão que procura exatamente isolar fenômenos de organização que não existem. Em segundo lugar porque pode ingenuamente atribuir às dimensões estéticas da ação direta um peso político que na realidade não tem. Por exemplo, a quebra dos caixas eletrônicos se parece com a quebra dos relógios nas velhas revoluções do século XIX. Da mesma maneira que o proletariado industrial não conseguia com isso deter os ritmos do tempo do assalariamento, o proletariado metropolitano não conseguirá deter os fluxos das finanças quebrando os caixas eletrônicos dos bancos (aliás, nisso os Black Blocs estão sendo muito próximos da Dilma e de sua tentativa fracassada de deter as taxas de juros). Ficando nessa estética, a luta corre o risco de cair numa armadilha. Enfim, os adeptos da tática Black Bloc podem acabar “presos” nessa dimensão estética, repetindo-a sistematicamente e ingenuamente. Em suma, a dimensão estética corre o risco de sobredeterminar aquela política, e penso no mote de Walter Benjamin (o filósofo comunista alemão vítima do nazismo): a luta pela politização da arte continua atual.

A repressão

Chegamos assim à questão da repressão: o que está acontecendo — e em nível federal — é escandaloso. A Polícia Federal — a mando da Presidenta e do Ministro de Justiça — divulga na imprensa a existência de listas de “suspeitos” de praticarem atividades totalmente constitucionais: liberdade de opinião e de manifestação, articulações políticas e culturais internacionais. Não dá nem para acreditar.

Em junho, dirigentes do PT e do governo chamaram para o perigo do “golpe”, falaram de coxinhas e também de “fascismo e barbárie” nas manifestações. Tive um vivo debate com meu amigo Tarso Genro, na presença de Boaventura de Souza Santos, em Lisboa (em julho deste ano), durante o qual ele falava de fascismo e da “marcha sobre Roma”. Ora, o fascismo é um fenômeno estatal, nacionalista e identitário: totalmente o contrário dos discursos, das bandeiras e da estética destes garotos. Quem tem ares de fascismo é Vargas, ao qual Emir Sader comparou o Presidente Lula. Quem é ambíguo é o nacionalismo que circula na esquerda neodesenvolvimentista (inclusive, como vimos no Leilão de Libra, faz como o fascismo: retórica nacionalista e política entreguista).

Fascismo e xenofobia é fazer demagogia nos vistos (bem-vindos) para os médicos cubanos e deixar irregulares os milhares de trabalhadores bolivianos em São Paulo. Enfim, fascistas são as polícias de qualquer estado do Brasil que podem matar e torturar a rodo sem que o senhor Ministro de Justiça constitua força tarefa nenhuma. Fascismo e barbárie são as condições das prisões no Brasil, para onde o próprio Ministro disse que não gostaria de ir.

O fascismo é um fenômeno estatal, organizado e estruturado em torno da radicalização dos valores tradicionais: a nação, a família e até a raça (e o anarquismo diante disso — quer a gente goste ou não dele — é uma contradição nos termos). O fascismo já está presente e dominante no Brasil e não precisa de nenhum golpe, a não ser aquele que o próprio governo está dando na democracia. Quem colocou o exército na rua foi o governo federal para proteger o leilão das reservas estratégicas de petróleo. A quebra do Estado de direito aconteceu por obra do Estado do Rio (e surpreendente aprovação do Cardozo) na prisão indiscriminada e em massa de 200 pessoas com o único critério de estarem na escadaria da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, exercendo o direito constitucional de manifestação. Essa operação sim é de “tipo” nazista: prisão indiscriminada, em massa, por retaliação.

Não se trata apenas de dizer que nenhuma força-tarefa foi constituída entre o Ministro da Justiça e os Secretários de Segurança do Rio e de São Paulo para deter os assassinatos sistemáticos de pobres (os “Amarildo”) pelas PMs de todos os estados. Há uma outra evidência, terrível, que somente Cardozo e Dilma não querem ver: no Rio de Janeiro, ao longo de cinco meses de mobilizações de rua e enfrentamentos, a PM — como o próprio Secretário de Segurança José Mariano Beltrame disse — se “segurou” e o uso das armas letais foi extremamente limitado (embora preocupante no dia 15 de outubro). O que isso significa? Que o uso sistemático do ato de resistência para matar, torturar e dar sumiço nos pobres é uma prática que vigora por meio de uma autorização de fato por parte dos governos. No caso das manifestações, para manter sua imagem externa e evitar também uma revolta generalizada, os governos conseguiram fazer passar o “recado” para sua PM e que não querem fazer passar no que diz respeito à sua atuação na Maré, na Rocinha, nos subúrbios do Rio e nas periferias de São Paulo. Só mesmo esse Ministro de Polícia para não ver a enorme brecha para a paz que haveria, e abrir mesas de negociação. Só mesmo a arrogância potencialmente totalitária da Presidenta e dos setores majoritários do PT de não fazer autocrítica sobre 10 anos de (não) políticas da juventude. O melhor da juventude brasileira está na rua. O que foi feito nos governos Lula e Dilma? Alguém sabe?

IHU On-Line – Disso decorreria que as manifestações recentes estão permeadas por uma cultura do ressentimento?

Giuseppe Cocco – O único ressentimento que eu vi (e vejo) é o que se encontra nas análises desses “acadêmicos” que estão paradoxalmente desarmados teoricamente para entender o que acontece e aconteceu. Descobrem que as categorias que usavam não servem para nada e tentam desqualificar o que acontece e tentam exorcizar os trabalhos teóricos que os anteciparam. O caso mais triste é o da Marilena Chauí. Numa entrevista na Revista CULT, ela faz uma série de considerações infundadas sobre o pensamento de Foucault, Agamben e Negri e começa declarando “ter levado um susto quando descobriu que os meninos do MPL tinham usado as redes para chamar pelas mobilizações”. Como se as redes fossem uma opção e não a nova base material do trabalho e das lutas, a condição ontológica dentro da qual vivemos. Esse descolamento entre o pensamento e a análise material (ou seja, o fato de que quando ela fala de “classes” mobilize uma mistura estranha de sociologia marxista ortodoxa com moralismo psicológico que pouco tem a ver coma teoria spinozista dos afetos) explica talvez o fato de que ela não tenha se tocado quando criminalizou os jovens que estão na rua, logo para a máquina mortífera que é a PM do Rio (em agosto).

IHU On-Line – Como este quadro se relaciona com o conceito de multidão, de Antonio Negri?

Giuseppe Cocco – Totalmente. Os conceitos de trabalho imaterial e de multidão se mostram totalmente adequados diante do que está acontecendo e confirmam a dimensão pioneira dessas teorizações. O que temos nas ruas, sociologicamente, é o trabalho imaterial metropolitano que luta sobre a mobilidade e a democracia ao mesmo tempo. E essas lutas “fazem” multidão, constituem uma multidão de singularidades que cooperam entre si, se mantendo tais. A “multidão” não é positiva em si (como diz de maneira infundada a historiadora da filosofia falando de Negri), mas é afirmação, constituição. Fora disso, o que observamos é a fragmentação social, a perda de direitos. O movimento de junho nos mostra que não precisamos voltar às grandes massas fabris para lutar. Pelo contrário, “nunca antes na história deste país” houve um movimento tão forte e tão autônomo, muito mais do que o novo sindicalismo do qual veio Lula.

Do mesmo jeito, quando publicamos, em 2005, GlobAL: biopoder e lutas em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005), dizíamos que os novos governos eram interessantes na medida que seriam atravessados pelos processos de subjetivação — quer dizer, pelas lutas — capazes de construir uma alternativa ao neoliberalismo e ao neodesenvolvimentismo. Dessa maneira, Negri e eu antecipamos, por um lado, que as brechas do governo Lula teriam produzido essa nova subjetividade e que esta não teria se reduzido ao lulismo. Por incrível que pareça, o regime discursivo hegemônico no PT foi aquele de comparar Lula a Vargas e, de maneira totalmente bipolar, de reduzir a mobilização social à mobilidade estatística (a emergência de uma Nova Classe Média). Pelo visto, quem é chamado a preencher esse vazio da teoria e da política hegemônica no PT e no governo é a Polícia Federal.

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