Devir-Brasil

O modernismo brasileiro e o futebol

O futebol é um esporte moderno, no sentido rigoroso do termo.
É filho da revolução industrial, das mudanças e impactos trazidos pela urbanização e modernização social. Surge nas aglomerações dos distritos industriais das metrópoles inglesas, e se torna um apêndice funcional das fábricas. A classe trabalhadora britânica se reapropria do futebol e o converte em paixão de massa, o primeiro esporte nacional-popular de ingleses, escoceses e galeses.
Contribui para sua difusão o desenvolvimento dos transportes e das comunicações: as ferrovias possibilitam a realização de ligas regionais e nacionais, enquanto a massificação da imprensa, e mais tarde da rádio, constitui imensos públicos.
Mas o futebol é esporte moderno em um sentido mais interno, quanto à natureza do movimento implicado.
Os esportes antigos baseavam-se em poses: determinadas relações e proporções entre as partes do corpo, e entre os corpos e os instrumentos de jogo. O atletismo, a luta greco-romana, o levantamento de peso, o arco e flecha, a natação são esportes dados pela repetição incansável de modelos consagrados da melhor disposição corporal. O atleta olímpico é um modelo com medidas geométricas, ele almeja pela perfeição, imortalizável nas figuras míticas de um discóbolo ou maratonista. O esporte antigo é a arte das poses corretas, a competição pela forma ideal, mais alta, mais forte, mais longe.
O clímax do esporte antigo é um instante notável já inscrito na lógica do jogo. É o arremesso, o salto, o levantamento, o tiro, a linha de chegada. Todo o conjunto de poses é dirigido à maximização desse instante. O movimento acontece pela síntese formal das poses, um tempo pulsado.
O esporte moderno, que surge com a revolução industrial, liberta o corpo de modelos. Não há mais atleta ideal, pois as poses não determinam a lógica do jogo. No caso do futebol, quatro linhas delimitam um paralelepípedo imaginário de possibilidades soltas, dentro do que a bola é conduzida sem formas eternizáveis. As linhas desenhadas pelos corpos e a bola são curvas, contínuas, sua síntese ocorre ponto a ponto e não mais pela transição entre diferentes poses.
O clímax do futebol também é um instante notável, o gol, mas sua gênese é totalmente diversa dos esportes antigos. A partida ocorre em noventa minutos nos quais todos os instantes são formalmente equivalentes. Todos os momentos, em princípio, têm o mesmo valor. *A qualquer instante*, o jogo pode eletrizar e algo de extraordinário pode ocorrer: um drible, uma jogada genial, um gol. Se o esporte antigo é síntese formal das poses ou instantes notáveis (transcendentes ao movimento), o moderno é síntese material dos instantes quaisquer. Um é compêndio ideal de formas ortodoxas, o outro contínuo criativo, disforme e heterodoxia.
Em suma, o futebol, como esporte moderno, é continuum construído a cada instante e que não se deixa decompor senão em seus elementos imanentes notáveis.
Por isso, o futebol não é a arte das poses, mas arte industrial e pode receber a mesma definição que Deleuze, no livro Imagem-movimento (1983), reserva a outras artes industriais, como o cinema: “sistema que reproduz o instante qualquer referindo-o ao instante notável”.
Nesse sentido, o futebol é coextensivo não só do cinematógrafo dos Irmãos Lumière, como também das músicas propriamente modernas e de seu tempo não-pulsado: Schönberg, o jazz, o samba; além da dança-ação, da mímica e da pintura cubista.
Entre as Copas de 1938 e 1950, pensadores do futebol brasileiro como Mário Filho, Gilberto Freyre e José Lins do Rego perceberam algo espantoso: o futebol enfim se tornava o que sempre fora, ou seja, moderno, e isso ocorria por meio do futebol brasileiro, em regime de invenção mútua. É uma intuição muito cortante que os três ensaístas desenvolveram em textos fundantes da filosofia boleira.
Isso se dá em diversos níveis.
O futebol chegou ao Brasil pela geografia da industrialização, começando em São Paulo com a São Paulo Railway Company, mas simultaneamente pipocando noutras metrópoles do Sul-Sudeste, como na Fábrica Bangu, no subúrbio Rio de Janeiro. Seus pioneiros eram operários ingleses, galeses e escoceses. Aqui, o futebol entrou pelo andar de cima da hierarquia social, pois era entendido como produto das métropoles europeias. Assim como na Inglaterra, o esporte logo começou a ser reapropriado pela classe trabalhadora, a ser praticado nas várzeas e a circular como mania de massa. No Brasil, essa reapropriação se deu pela “luta de classe” à brasileira, isto é, no interior da mestiçagem, do caldeamento, da transversalidade.
Mário Filho, Gilberto Freyre e José Lins do Rego eram teóricos da formação nacional que identificavam na mestiçagem a potência singular não só para o país, como também para o planeta que emergia das ruínas da Segunda Guerra Mundial. No imediato segundo pós-guerra, a Europa era terra arrasada, os recursos drenados para a reconstrução, e se buscava definir um marco para ajudar a superar as ideologias de superioridade racial e os regimes nacionalistas agressivos e expansionistas. Emergia um novo mundo que buscava se reorientar pela democracia, a diplomacia e os direitos humanos, emblemas das Nações Unidas, de que o Brasil foi membro-fundador.
O futebol servia então para municiar o sonho do Brasil moderno, como também de sua contribuição singular à modernidade mundial. O país recém-saído da ditadura do Estado Novo, tendo lutado ao lado dos Aliados contra o nazifascismo nos campos de batalha da Itália, os teóricos de construção nacional enxergavam no futebol um elemento poderoso para o fortalecimento do papel do Brasil “mulato”, isto é, criativo, surpreendente, dinamizado por linhas curvas e dançantes. O futebol brasileiro, para eles, era a síntese material do futebol mundial, o momento em que se conjugavam todos os tipos nacionais em sinergia de culturas, norteadas pela paz, a harmonia e o progresso.
O leitor perceba o vulto e o alcance das utopias em estado fervilhante, na transposição institucional do ímpeto modernista, quando da organização da Copa do Mundo de 1950, da qual Mário Filho foi um incansável entusiasta e patrocinador direto.
Hoje, a obra boleira dos três — Freyre, José Lins do Rego e Mário Filho — é objeto de furioso revisionismo por parte da academia especializada. A obra magna de Mário Filho, “O negro no futebol brasileiro” (1947) — por assim dizer, o “Casa-Grande & Senzala” da literatura formativa do futebol nacional — por vezes é reduzida a um conjunto de historietas, anedotas ou causos, de menor valor histórico.
Em parte, essa reação testemunha a tradição bacharelesca, que pretende avançar inclusive sobre o esporte moderno por excelência, o futebol, e que também costuma projetar o pó e o bolor de suas teorias sobre a história do samba e da MPB. Em parte, é oposição consciente, de fundo político, ao modernismo brasileiro, que teve na crônica esportiva uma de suas maiores expressões, pois “a poesia se encontra nos fatos” (Manifesto Pau-brasil). Gilberto Freyre igualmente costuma ser desprezado por certo filão enraizado nas ciências sociais acadêmicas, devido à adoção do ensaio longo (modernismo na filosofia, Camus, Sartre etc), que não apresentaria metodologia à altura dos fenômenos estudados.
Nos quatro pontos, contudo, esse triunvirato de cronistas/ensaístas (dois pernambucanos e um paraibano) foi inigualável: futebol como esporte moderno, Brasil como modernidade do mundo, o imperativo de conjugar democratização/mestiçagem e modernização, e a crônica como ponta-de-lança das interligações entre futebol, arte e política.
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