Por Hugo Albuquerque, UniNômade Garoa
Atualmente, o Brasil vive sua maior efervescência desde muito. Desde nunca, talvez. A multidão está nas ruas. E talvez, pela primeira vez, haja a manifestação de uma liberdade atual no horizonte: não é dentro das regras que se discute, mas sobre as próprias regras e da maneira como são postas. As cidades estão em polvorosa, Rio e São Paulo ardem. Centenas de manifestantes estiveram, na última semana, na condição de presos políticos, em presídios.
É um momento paradoxal, sublime e assombroso ao mesmo tempo: de um lado as manifestações marcam a desejada emergência das pessoas comuns à rua, e à política — cujo resultado prático é atravessado por uma complexidade singular –, enquanto de outro, vê-se uma reação estatal assustadora marcada pela sistemática suspensão de direitos. Quando a Lei de Segurança Nacional, aquela mesma dos militares, é tirada da gaveta para criminalizar jovens, descobrimos que ela nunca deixou de viger, as nossas vãs ilusões desvanecem.
O claro-escuro do nosso tempo, aquele eterno entre-tempo à moda de Gramsci, se dá a partir da modernidade que está a morrer e de um porvir que ainda não vive, o qual virá ao mundo quando a disputa marca a sua constituição chegar ao fim: será nos despojos do campo de batalha, metafóricos e literais, que sua — isto é, a nossa — sorte será definida. Este novo não é a pós-modernidade, que ela mesma é desdobramento acidental do Moderno, uma vez que conserva o deslocamento do (nosso ser por uma perspectiva linear de tempo como paradigma: no “pós”, o par medo-esperança dá lugar ao desespero-segurança).
O Brasil inegavelmente mudou muito nos últimos anos. A democracia, ainda que não tenha sido marcada pela confrontação direta às estruturas do colonialismo tupiniquim, implicou a melhoria de vida de mais de uma centena de milhão de pessoas, sobretudo nos últimos dez anos sob Lula.
A constituição de uma imensa classe sem nome, cuja ascensão é selvagem, foi acompanhada pelo processo de barbarização de uma classe média, o devir-vândalo, que antes de ofensa, é constatação precisa: a constatação do fracasso do modo de vida medioclassista, em sua dimensão social, material e até psicológica, lança um sem número de manifestantes pouco usuais às ruas — radicalizados e dispostos a abraçar diversas pautas, algumas até conflitantes entre si.
Não seria de supor que isso não fosse estourar. Nem que uma gestão científica do Capitalismo, como proposto por Dilma, pudesse salvar o estado de coisas em que vivemos, ou vivíamos. A socialdemocracia, cultuada pelo consenso político nacional, constrói as bases técnicas que permitem, a um só tempo, que o fascismo possa avançar e tornar-se total — como bem observou Walter Benjamin –, mas também perfaz a base material capaz de plantar o gérmen da contestação ao próprio sistema. As reformas feitas no interior do regime capitalista esbarram em um limite, e o enriquecimento material acusa tensiona a miséria afetiva inerente ao sistema: Maio de 68 manda lembranças, o Outono Quente italiano de 77, idem.
É isso mesmo. As semelhanças do Brasil de hoje com a Europa dos anos 60 e 70 não são mera coincidência: quisemos tanto ser como um país capitalista desenvolvido que chegamos ao mesmo impasse que estes. Hoje, como bem observou Giuseppe Cocco, o esforço desenvolvimentista aproxima o Brasil de uma Europa que se torna cada vez mais Brasil. E é um tornar-se fraco, uma variação fraca do ser do Brasil e da Europa que os aproxima enquanto fantasmas de si mesmos.
O conflito político brasileiro não é mais dentro de uma certa ordem política. É entre esta ordem e o que lhe excede e renega. É o confronto entre a modernidade, e sua narrativa épica, e a arte dramática é desde sempre a verdade calada e negligenciada da História. A eclosão do drama, cuja natureza é polifônica, é própria das transformações, das viradas históricas. Talvez possamos dizer que haja uma virada antropológica hoje no sentido em que o drama não só eclode, como devém absoluto, uma vez que ele sai do palco, vê sua seperação clássica com a plateia rompido, e constitui-se, asism, em happening: evento-eventuante.
Daí, o confronto atual situa-se além do bem e do mal, e setores tão díspares irão associar-se contra as manifestações em curso não pelo seu mérito, por eventuais propostas ou críticas, mas por sua simples existência, o que é inaceitável. As forças modernistas, cada qual defensora de uma forma de progredir e de representar realmente a dialética do futuro, veem-se solapadas pela própria noção de tempo que inauguraram e patrocinaram. Nesse sentido, a adesão e o reforço do binômio segurança-medo é recorrente e potencialmente autoritário.
A fúria do Estado contra os anarquismos é, ao mesmo tempo, o ódio de ter um adversário que está disposto a confrontá-lo sem estar sujeito às regras postas (por ele próprio, o Estado). o Estado é anárquico como a tradição teológica é anárquica — a exemplo do que bem observou Giorgio Agamben –, uma vez que a norma hipotética fundamental não tem fundamento do mesmo modo que o Deus-Pai também não o tem, logo, são imensamente livres — para assumir e descumprir promessas, inclusive.
A chegada a um ponto no qual o Estado, ele próprio, a forma definitiva da modernidade, reage, torturando, ferindo, desaparecendo com um sem número de Amarildos, é um fenômeno duplo: resultado das transformações brasileiras face a uma estrutura autoritária demais, mas também expressão da verdade secreta do Estado, de qualquer Estado; a face pública boa da regra é, invariavelmente, acompanhada por uma face má secreta e excepcional — o diplomata e o espião, o parlamento e a polícia secreta –, uma ambivalência fundamental.
O que se passa aqui-agora no Brasil é a emergência de uma questão conceitual, o Estado expressando seu ser, de uma maneira historicamente determinada, isto é, o aparato estatal brasileiro, com sua espinha dorsal configurada irremediavelmente na Ditadura, vindo à tona. Não é questão de pontuarmos que deveríamos ser um Estado Democrático, mas o que temos aí é um simulacro — uma aparência de bom no lugar do que deveria ser bom efetivamente. Trata-se de outra coisa. O Estado é ele mesmo bom e mau, situando-se nessa origem infundada — anárquica — que está para além do bem e do mal, que se desdobra nesse binarismo binarizante, o qual opera a separação das singularidades, entre si e dentro delas mesmas, a (de)cisão em vários níveis e instâncias — determinando nosso próprio domínio e domesticação.
A recente aplicação da Lei de Segurança Nacional contra um jovem casal de ativistas acusados, para seu azar, de queimar uma viatura policial só foi possível porque, além de nenhum democrata ter pleiteado pela não recepção daquela norma infame, a própria Constituição de 1988 ratificou a determinação do AI-5 que militarizou as polícias: uma vez que uma mera viatura policial é “transporte militar” (art. 15, LSN), qualquer danificação à sua estrutura torna-se ofensa à segurança nacional em vez de mero crime comum, o que determina julgamento de civil, em tempo de paz, por tribunal militar. No caso em tela, o conjunto probatório fraco sequer constrangeu as autoridades a realizarem tão vetusto enquadramento. Mas essa norma só é um veículo.
Por exemplo, com ou sem uma LSN oriunda de tempos ditatoriais, nada teria impedido o Estado de ter criado instrumentos normativos durante esta crise — como fez a pacífica e democrática província canadense do Québéc face a recentes manifestações em seu território — com o intuito de suspender direitos fundamentais. Tanto isso é verdade, que apesar de uma vasta legislação penal, que enquadra uma fabulosa sorte de condutas, da própria LSN ainda foi aprovada, em Agosto deste ano, a Lei de Organizações Criminosas, a qual permitiu que as autoridades “endurecessem” para cima dos manifestantes cariocas nas manifestações dos professores da rede municipal. Isto é, a maneira pela qual o Estado brasileiro expressa sua violência remonta ao período militar, mas isso não é causa de sua fúria, e sim a origem pontual de certos aparelhos seus.
Isso não significa, é claro, que a “democracia pode ser também má”, mas que antes de algo ser “democrático” ou “autoritário”, isso o é adjetivamente em relação ao Estado: este, seja qual for sua configuração, paira sobre seu próprio discurso jurídico oficial, o seu dito ordenamento jurídico; qualquer Estado tem a característica de poder decretar a exceção e suspender as regras do jogo durante seu curso. Todo Estado Democrático é um Estado de Exceção em latência. Enquanto os cidadãos modernos — a bem da verdade, súditos — possuem liberdade formal, às vezes material, seus Estados são livres em sentido atual e não são passíveis de contenção.
É interessante sublinhar que o anonimato e o caráter multitudinário que se levanta face a esta ordem lhe reservam, de fato, problemas. Como apontamos há meses, o exercício do poder no Ocidente gira em torno do nome, pois alguém só pode ser objeto de uma ordem caso tenha uma identidade que lhe permita ser enunciado. Não à toa, o deus abramíco não tem nome. O poder é, portanto, nominante, mas precisa ser inominável, pois se fosse o contrário, ele também seria passível de ordens.
Quando estes jovens que ora se manifestam, a exemplo do que bem apontou Peter Pal Pelbart, se afirmam como “ninguém”, eles colocam o sistema em xeque. O Black Bloc põe o sistema em xeque mesmo que sequer mexa nas vidraças de Pablo Ortellado, pois ele se manifesta sem ter uma identidade, compromissos, amigos, inimigos, entes queridos: é um ser eticamente invencível, pois ela não pode, a priori, ser alvo da mais pesada das sanções que é, precisamente, a de cunho moral, bem como tem um alto grau de intangibilidade jurídico-policial.
De certa forma, Marilena Chauí, catedrática spinozana, faz algo preocupante ao condenar a multidão, em prol do povo, e o anonimato. O Spinoza populista — e hobbesiano — de Marilena não difere em substância, mas apenas no grau, do que pensadores pertencentes ao outro canto do espectro político consideram quando invocam, com preocupação, a emergência de um certo Negrianismo: são os casos de um Merval Pereira e de um Demétrio Magnoli. Ou mesmo o ministro do STF Luis Roberto Barroso, ao dizer que não julga para a multidão, transferindo a responsabilidade pelo punitivismo penal à multidão, como se esta pudesse ser a causa disso, e não a coletividade tornada massa pela mídia e seus interesses corporativos.
A multidão, conjunto de variações diferenciais, precisa ser destruída em prol do povo. E o povo é a própria coletividade qualificada por um compromisso jurídico, o que no nosso tempo é o próprio corpo de súditos, sujeitos à lei estatal. A multidão que Toni Negri e Michael Hardt retomam precisa ser desconstruída no imaginário comum, do contrário, a liberdade política que ela implica, abala o alicerce do nosso tempo. E multidão não é a ochlos bíblica, aclamativa e messiânica, ao contrário do que afirma Willis Guerra (talvez baseado em um engano decorrente da tradução latina do Novo Testamento, que transpôs tal termo como multidão), mas sim a pléthos — expressão de um conjunto sempre variável e plural, cuja origem remonta, no seu uso atual, a Quintus Curtius, biógrafo romano de Alexandre Magno. Mas sim, Guerra acerta ao afirmar que a multidão está em uma perspectiva metafísica, ela mesma, heracliteana.
Obviamente, a multidão às ruas, apenas por si, não basta, nem tem uma existência absolutamente benigna em um esquema maniqueísta, unidimensional e sem problematizações como Chauí atribui a Negri — embora ele nunca tenha dito isso, aliás, muito pelo contrário. A multidão está para além do bem e do mal, no sentido em que é uma personagem dramática. As variações são elas mesma inerentes à multidão como o são em relação a qualquer corpo, a exemplo do que bem depreende Deleuze em relação a Spinoza. O comum é chave porque é ele que permite não uma mesmificação, mas a abertura para conexões entre os elementos diferenciais, permitindo a um só a multidão incorporar a transversalidade das liberações demandadas: de classe, de raça, de gênero…O comum é o elemento que comporta as diferentes e, ao mesmo tempo, é o diferencial entre uma massa e uma multidão — ou a multidão em estado suicidário.
O que está posto nas ruas precisa, igualmente, ser visto para além do mal. O movimento nas ruas não pode ser tomado como uma missão salvíca, de rendenção coletiva ou pessoal. Qualquer assertiva nesse sentido é um engano. Mas é preciso reconhecer também que há essa paixão, ao passo que ele também não se resuma a isso. A esquerda modernista, aquela de Estado, ao assumir-se contra o movimento — seja aberta ou veladamente — comete um erro estratégico, político e histórico ao mesmo tempo, quando confunde o lugar da crítica — possível e até válida — e a coloca externa aos eventos.
É certo que uma emancipação humana, chame-se como for, demanda instituições, e as formas de luta engendradas no calor deste momento, apesar da beleza do seu jeito singelo, muitas vezes não estão à altura de tal demanda, o que não quer dizer que a única saída, pois, sejam as instituições estado: estas desde sempre fagocitaram as esquerdas, quer se digam reformistas ou revolucionárias.
Itens como a desmilitarização das polícias, a descriminalização das manifestações políticas — e de seus militantes –, a reforma política dentre outros são sim urgentes. O que não quer dizer que sejam a solução. É óbvio que somos favoráveis a melhorias salariais e laborais, mas isso não quer dizer que remuneração salarial e o trabalho empregado sejam a meta. Não é que tenhamos uma longa Ditadura Militar em curso, mas que a organização estatal gerou seus subprodutos históricos no Brasil, dentre eles, a dita cuja, que de branda nada teve.
Ainda que determinadas características históricas façam parecer, no Brasil, que tudo é uma grande luta entre Estado e Mercado, no qual tenhamos de desejar mais e melhor Estado, é igualmente óbvio que à luz da Filosofia Primeira, isso se trata de um engano historicista: as privatizações só foram possíveis com o dinheiro e a gestão estatal, do mesmo modo que o mercado sustentou o estatismo militar. O confronto entre desenvolvimentistas e neoliberais é, no limite, inócuo. Apenas se disputa a configuração do governo providencial do mundo, vença quem for, estaremos ainda sujeitos a uma ordem transcendente que nos afastará da nossa plenitude.
Do mesmo modo que a Europa deu conta das inquietações do anos 60 e 70 por meio da construção de um novo mundo, na qual o homem do welfare, cercado pelo trabalho assalariado, o sindicato e a família, foi tirado de cena para a entrada do homem endividado do capitalismo financeiro, que sobrevive de salários achatados e precisa, a rigor, comprar dinheiro nas insituições bancários: devedor que é, resta controlado molecularmente; endividar-se deixou de ser benefício dado a quem trabalha, mas garantia de que alguém precise trabalhar todo mês, de tal e qual forma. As tecnologias de poder e governabilidade, como se vê, evoluíram. Não que volta e meia as revoltas que decorrem do ciclo de Seattle não coloquem o esquema em xeque, forçando a aplicação do arcaísmo policial.
A militarização policial que no Brasil não só é de direito como o é, também, constitucional abunda de forma factual no primeiro mundo, sobretudo depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001, e a era do terrorismo” global, a qual justificaria o panopticismo; de todo modo, enquanto o sistema ganha tempo com mecanismos excepcionais, correndo o risco de erodir sua própria legitimidade, ele renegocia uma nova ordem, um novo ajuste que permita à dialética da civlização voltar a determinar concretamente o imaginário coletivo.
Nesse sentido, o campo da esquerda que acredita, com sinceridade, em uma resolução por cima está perdida. A resolução gerencial de Estado dos atuais problemas só é possível por meio de uma novo arranjo, que geraria um consenso autoritário — seja ele encabeçado por uma força “de direita” ou “de esquerda”. A esquerda que tanto teme uma derrota histórica, diante deste estado de coisas, poderia temer um tanto mais o risco de uma (nova?) vitória de pirro. Não há derrota pior do que tornar-se algo como seu velho algoz, seja por desejo perverso, ou pior, por equívoco. Nada é pior do que ser acidentalmente fascista — mas não há como não sê-lo caso se afirme a modernidade.
É preciso estar menor: o que a história exige agora é uma novidade no devir, e não no ser: pouco importa se os partidos são velhos, lembremos que nada é tão arcaico, em tese, do que professores nos dias atuais — embora eles sejam o que há de mais relevante agora –; a questão é ser menor e intenso. Assumir a poética da vida, alegremente, longe das pulsões fascistas que nos atravessam a todos. Identidades novas, abertas, comuns.