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Praça Maidan, um ano depois

Entrevista com Vasil Tserepanin, pela Fundação Pró Comuns (Espanha), em 13 de maio de 2015 | Trad. Silvio Pedrosa, UniNômade

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Faz pouco mais de um ano dos acontecimentos da praça Euromaidan, a praça ocupada de Kiev, epicentro das manifestações da chamada Primavera Ucraniana. Ainda que, no exterior, se tenha falado de distúrbios e guerra civil, Vasil Tserepanin, artista, ativista dos direitos humanos e participante das manifestações, chama os acontecimentos de revolta e revolução. (Fundación Pro Communes)

A entrevista começa, na realidade, com apenas duas perguntas: o que foi Euromaidan? Que tipo de país é a Ucrânia? Tserepanin ri.

Pois responder a isso vai ser uma tarefa difícil. Dei conferências longuíssimas sobre esses temas.

Não temos pressa. Tserepanin remonta bastante no tempo, situando-se na Rússia e em sua propaganda. É da opinião de que é impossível falar de Maidan sem tocar tais questões.

A propaganda russa se distingue entre aquela produzida para o interior do país e aquela feita para o exterior. Dentro da Rússia é importante falar sobre a força do país. Putin é um presidente bélico, as guerras sempre aumentaram sua popularidade: Chechênia, Geórgia, Ucrânia. Mas esta tática da guerra não funciona na Europa e assim foi preciso buscar um ponto frágil e golpeá-lo. Putin conseguiu unir os países da União Europeia contra a Ucrânia, pelo menos momentaneamente, identificando a revolta ucraniana com a expressão da ascensão da extrema direita. E não foi assim. Também é certo que a União Europeia pode conflitar com os Estados Unidos, sendo possível criar confusão insistindo que os Estados Unidos apoiam a Ucrânia.

Qual o ponto fraco da Rússia?

Putin teme a revolução. A Rússia introduziu símbolos do tempo soviético para conservar a imagem da União Soviética que o povo ainda mantém: a imagem do país como grande potência. Sem embargo, Putin – e não falo de Putin como pessoa, mas como rosto do poder – não recuperou todos os símbolos. Não quer fazer referência à revolução. Por isso não gosta de usar a foice e o martelo e prefere recorrer ao símbolo imperial da águia de duas cabeças.

Tserepanin está claramente entusiasmado com a simbologia. O Kremlin dá grandes saltos na história: ainda que pareça admirar tanto os tempos do Czar quanto a época stalinista, passa completamente por cima de Lênin.

Exato! Não é necessário que a propaganda seja lógica! Diz-se que a União Soviética perdeu a guerra contra os Estados Unidos por que eles tinham Hollywood e a União Soviética não. Mas agora a Rússia tem um verdadeiro Hollywood. Uma Hollywood inclusive maior que a americana, pois se trata de uma realidade totalmente artificial, criada para as notícias da noite.

Nos vemos na praça

Maidan significa praça. Em Kiev, a palavra é usada para referir-se à praça da Independência, no centro da cidade. Em 21 de novembro de 2013, estudantes e jornalistas se concentraram ali para manifestar-se por democracia. Rapidamente chegaram pessoas de todos os lados. Pedia-se a renúncia do presidente Victor Yanukovich. Da mesma forma, exigia-se um estreitamento das relações com a União Europeia e foi por estas razões que as manifestações foram batizadas como Euromaidan.

Ucrânia é um país de revoluções. Já durante a Perestroika da década de 80, quando os mineiros realizaram uma greve em Donbass, houve grandes protestos. A Revolução Laranja de 2004 levou ao poder Yulia Timoschenko e a Viktor Yuschenko, mas o processo se deteve quando, uma vez no poder, a oposição começou a autodestruir-se. Foi essa autofagia que permitiu a volta de Yanukovich, que já havia sido desalojado do poder uma vez.

No começo se tratava de uma manifestação pacífica, mas tudo mudou. O 30 de novembro de 2013 foi um ponto de inflexão: Yanukovich perdeu a cabeça e ordenou a entrada em cena da Berkut, a polícia especial ucraniana do Ministério de Assuntos Interiores. Às três da madrugada, esta desalojou violentamente os manifestantes da praça.

Esse foi um ponto de inflexão. Os protestos se tornaram mais caóticos. Chegaram pessoas de todas as partes da Ucrânia e se começou a falar que estávamos “lutando por nossa dignidade”. Muitos se viram obrigados a lutar. A polícia feriu os estudantes, muitos dos quais eram quase crianças. Muitos vieram precisamente por causa da enorme violência da repressão.

A praça contra o fascismo

Tserepanin permaneceu na praça durante muitos dias e noites. Quando regressava a sua casa era principalmente para trocar de roupa. O centro de investigação cultural no qual Tserepanin trabalha pôs em funcionamento uma universidade aberta na praça.

Havia um espaço central onde se faziam aulas e conferências sem parar. Nós abrimos outro espaço que chegou a ser o segundo mais importante. A universidade aberta foi um projeto sobre a democracia. Era, a um só tempo, arte e educação. Discutíamos a história das revoltas e das revoluções.

Organizaram palestras sobre a Primavera Árabe e a praça Tahrir no Egito, sobre os anos selvagens da década de 60 na Europa, sobre os Estados Unidos etc., e convidaram palestrantes de vários países, inclusive da Rússia. Perguntamos a Tserepanin se os direitos humanos também foram tema desse espaço. Ele se surpreendeu.

Toda a atividade na Maidan girava em torno dos direitos humanos. Certamente falamos de direitos humanos, mas isso foi feito por todos, inclusive os políticos.

Recordamos o início da guerra de propaganda. Uma das artistas performáticas mais populares de 2014 foi uma mulher que se disfarçava de diferentes personagens, em muitas ocasiões, de uma russa em desgraça. Uma compilação de suas aparições midiáticas foi difundida através das redes sociais sob o título “E o Oscar vai para…”. Para respaldar a versão dos acontecimentos difundida pela Rússia, essa artista desempenhava algumas vezes o papel de ativista anti-Maidan e outras vezes o de avó do mercado que simpatizava com a Rússia, entre outras coisas. Convertida em estrela das notícias da noite na Rússia, acabou tomando parte em um vídeo montado por jornalistas internacionais. Em que ponto Tserepanin acredita que o Kremlin começou a se preocupar realmente?

Maidan os pegou completamente de surpresa. Preocuparam-se desde o início. A Rússia sempre vigiou a Ucrânia muito de perto e Kiev está cheia de agentes do FSB [Serviço Federal de Segurança]. A presença da Rússia se converteu em um tema em dezembro de 2013, quando os franco-atiradores subiram aos telhados. Hoje em dia seguimos sem saber quem foram e de onde vieram.

E que papel desempenharam os fascistas? Houve extrema direita em Maidan?

Seria um milagre se não houvesse, já que em todos países existe este tipo de gente. Em Maidan havia gente de todos os partidos e de todos os movimentos populares. O que não é correto é dizer que todos as pessoas que levantaram barricadas eram de extrema direita. Eram pessoas totalmente normais, aquelas que, ao fim, tinham apenas um objetivo em Maidan: manter-se vivas.

O preço de uma revolta

Maidan durou quatro meses: desde o 21 de novembro de 2013 até 21 de março de 2014. Depois a Rússia invadiu a península da Criméia. A guerra continua no leste da Ucrânia. O que Maidan alterou? Segundo Tserepanin, Maidan revelou algo muito importante e contrário ao que a maquinaria propagandista tem afirmado.

Maidan foi o melhor remédio contra o fascismo. Em que se pese se tratar de um fenômeno muito menos extenso, a meu ver, que na Europa ocidental, a extrema direita estava em ascensão. Depois de Maidan, a extrema direita ucraniana perdeu popularidade e terminou com apenas 2% dos votos.

A fuga de Yanukovich de Kiev, primeiro para a Crimeia e, logo, para a Rússia, foi transmitida pelos meios de comunicação de forma muito detalhada. Neste momento da entrevista, recordamos os pisos de luxo de Yanukovich e seu incrível sentido de estética: ouro resplandecente, decorações ornamentadas, lustres com telas. Rimos perguntando se o pisto de Putin compartilharia do mesmo desenho.

Creio que Putin se assustou ao ver o que havia acontecido com Yanukovich. Este tinha todo o poder e, de repente, o povo o depôs. Este deve ser o pior pesadelo de Putin.

Pagou-se um preço muito alto por Maidan. Ainda não sabemos quanto. No centro da cidade morreram muitas pessoas. O presidente mobilizou mais de 11 mil policiais para manter a ordem, mas alguns deles se colocaram ao lado do povo. Sem embargo, não foi possível dissuadir a Berkut [polícia “especial” política] do Ministério do Interior, nem os capangas que eles recrutaram.

Fizeram todo o possível para nos dispersar. Começaram a encarcerar as pessoas feridas que estavam nos arredores da praça. Como não se deixava eles entrarem nela, foram buscar as pessoas diretamente nos hospitais. Os estudantes começaram a proteger os hospitais. Então as forças especiais se disfarçaram de motoristas de ambulância e quando os feridos eram trasladados, os interceptavam e os levavam diretamente para a delegacia. Muitos seguem desaparecidos. De vez em quando, corpos de pessoas desaparecidas aparecem no rio Dnipro, mesmo fora de Kiev.

Hoje faz mais de um ano destes acontecimentos e o projeto da União Europeia está sendo fortemente questionado por parte das forças políticas do Sul da Europa a partir das demandas nascidas das revoltas contra as políticas de austeridade. Os mesmos temas que um ano atrás constituíram o marco do trabalho político do encontro Novo Rapto da Europa – um encontro que reuniu ativistas de muitos pontos do continente, inclusive você mesmo, Vasil – seguem impulsionando um processo de organização ao nível continental.

Gostaríamos de lhe perguntar: após este longo ano e apenas dois meses após a última mobilização Blockupy nos jardins do Banco Central Europeu, em Frankfurt, o que está acontecendo agora mesmo na organização política de base na Ucrânia?

Uma das tarefas mais importantes após o fim de Maidan foi criar as condições para a continuidade das práticas emancipatórias coletivas nos termos de uma institucionalização mais profunda que garantisse sua implantação na sociedade. Isso é especialmente crucial hoje, no momento de guerra e contrarrevolução que vivemos na Ucrânia. Ucrânia está bloqueada entre duas contrarrevoluções: a externa, a promovida pela Rússia, na forma de um golpe militar de escala internacional, e a interna – e, justamente por isso, tão perigosa – que é a impunidade aos assassinos em série de Maidan, a ausência de justiça, a legitimação da violência, a inação das autoridades. Agora mesmo, o maior problema da Ucrânia, herdado de tempos anteriores, é a brecha aberta entre a sociedade e o Estado. Obviamente, ninguém em Maidan contava com o Estado, antes, pelo contrário: confiando apenas em si mesmos e contando unicamente com as próprias forças, os manifestantes construíram novos métodos de ação política, novas formas de fazer política. O problema é que as instituições do Estado não se apropriaram delas e que estas não foram, por tanto, incorporadas após a revolução.

Que iniciativas, projetos e processos organizativos podem ser as linhas de fuga às demandas radicalmente democráticas de Maidan?

Hoje o poder na Ucrânia segue construindo um modelo onde a sociedade ucraniana está sob condições que lhe obrigam a criar algo semelhante a um Estado paralelo; Isto foi possível e exitoso durante Maidan, mas isto resulta incrivelmente exaustivo e quase impossível em estado de guerra. Hoje é a sociedade ucraniana que tapa todos os furos e lacunas de um Estado que não funciona. Trata-se de uma gama amplíssima de iniciativas, organizações e redes que surgiram e se desenvolveram no contexto de Maidan: desde o apoio voluntário ao exército ucraniano na primeira linha do front ou a garantia do abastecimento de roupa e comida para os refugiados provenientes da zona de guerra até projetos de meios de comunicação independentes e de ativismo cultural.

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