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Sobre o aceleracionismo

Por Steven Shaviro, em seu blogue The Pinocchio Theory, em 17/11 | Trad. UniNômade Brasil

Este texto, a meio caminho entre a literatura e a filosofia, faz uma incisão no debate sobre o aceleracionismo, cujo recente manifesto foi traduzido e publicado pela UniNômade. O autor mobiliza de Marx e Keynes a Deleuze & Guattari, regado pela ficção científica. Embora, em algumas passagens, os argumentos percam de vista a qualidade positivamente monstruosa da multidão em relação ao capital, terminando por esboçar uma inversão dos termos da relação antagonista; trata-se de uma exposição didática das vertentes dessa discussão que, em sua retomada, ainda está desabrochando.

Por enquanto, a designação “aceleracionismo” tem servido de guarda-chuva para um conjunto de discussões político-teóricas que parece desenvolver dois elementos principais para uma “crítica imanente ao capitalismo”: 1) a posição marxista que o capital, ao liberar as energias das forças produtivas, aguça as contradições que, tensionadas pela luta, podem levar a sua abolição; 2) o esquema de Deleuze & Guattari que o capital contenha um potencial desterritorializante que, se por um lado, é produtivo e essencial para sua própria autorenovação ao longo das crises, por outro precisa ser mantido sob controle, evitando que o delírio arruíne os axiomas e termine por precipitar a esquizofrenia comunista.

Nesse sentido, o aceleracionismo se contrapõe, sobretudo, a teorias e propostas político-teóricas que sustentem ser possível colocar-se fora da relação do capital, como se houvesse alguma utopia pré ou pós-capitalista a que pudéssemos nos apegar, como um depósito de pureza. Recusa, assim, quaisquer proposições regressivas a naturezas redentoras, sejam naturezas humanas ou “naturais”, bem como a qualquer moralização das tecnologias e técnicas, e das ciências, como malignas em si mesmas, que estejam ameaçando a natureza. Tais linhas que usualmente se resolvem em teorias decrescimentistas ou catastrofistas terminam por reforçar a representação dominante num duplo movimento: 1) não só o discurso neoliberal, que costuma apelar à austeridade, à consciência/responsabilização individual pelos problemas do mundo e, por último, à contenção de gastos sociais; 2) como também o núcleo duro da economia neoclássica, uma ciência organizada ao redor do (falso) problema de como gerir recursos limitados para desejos ilimitados. Em vez disso, o aceleracionismo quer repor o lugar da economia a partir da abundância, redimensionando as coordenadas do problema para as lutas. (N.E.)

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Em seu romance de ficção científica Pop Apocalypse, Lee Konstantinou imagina a existência de uma escola do pensamento marxista-leninista chamada “Destruição criativa”. Os adeptos dessa escola “interpretam os escritos de Marx como previsões literais do futuro, de modo que se atribuem a missão de ajudar os mercados capitalistas a se espalhar em cada canto do mundo, porque esta é a precondição necessária para uma revolução verdadeiramente socialista”. Isto significa que os marxistas criativo-destrutivos são indistinguíveis, em termos de prática real, dos capitalistas mais brutais. No romance, suas ações coincidem com aquelas de um grupo de investidores que concluiu que “existe dinheiro a ganhar com a destruição do mundo”, e que na realidade a destruição apocalíptica configura uma “oportunidade sem precedentes para os negócios”. Dessa maneira, eles se esforçam em precipitar uma conflagração mundial nuclear: “Em nome de nossos acionistas, somos obrigados a adotar cada passo que pudermos para garantir o acesso aos mercados do Apocalipse, antes de qualquer outro”.

Tomemos esta sátira como parábola inicial para o capitalismo e o aceleracionismo. Benjamin Noys, que foi quem realmente cunhou o termo aceleracionismo, de fato apresenta o aceleracionismo mais ou menos assim, como: “uma variante exótica da política da pira: se o capitalismo gera as próprias forças de sua dissolução, então é necessário radicalizar o próprio capitalismo: quanto pior, melhor.”

Mas talvez a crítica de Noys seja um pouco injusta. O aceleracionismo é uma resposta nova a condições específicas do capitalismo hoje, neoliberal, globalizado e em rede. É uma crítica solidamente enraizada no pensamento marxista tradicional. O próprio Marx escreve tanto dos efeitos revolucionários do capital, quanto das contradições que o tornam inviável.

Marx e Engels escrevem no Manifesto que o capitalismo se caracteriza pelo:

“Constante revolucionamento da produção, a perturbação ininterrupta de todas as condições sociais, a incerteza perpétua e a agitação… tudo que é sólido desmancha no ar, todo o sagrado é profanado e o homem é finalmente compelido a enfrentar sobriamente  as reais condições de sua vida, e as relações com os outros.”

Note que o caminho para o incansável “revolucionamento” capitalista de tecnologias e relações sociais também revoluciona o nosso próprio entendimento. Na medida em que o capitalismo abala profundamente as bases materiais da vida, ele também desmistifica e desencanta; ele destrói todas as antigas explicações míticas e as legitimações anteriormente usadas para justificar o nosso lugar na sociedade e no cosmos.

Nós somos esquerda, como Ray Brassier pontua, num mundo onde a “inteligibilidade se destacou do significado”. Minha distância em relação a Brassier, nesse ponto, consiste em que ele atribui a desmistificação das velhas narrativas a algum “ideal normativo de progresso explicativo”, quando de fato isso é, como Marx defende, uma consequência do extraordinário desenvolvimento das forças produtivas. Isto não significa que a ciência, na prática, seja em algum sentido arbitrária ou “construída socialmente”. Mas, sim, sugere que qualquer fala sobre a alegada força das inferências no espaço lógico das razões é ela própria pouco mais do que uma racionalização post hoc — em vez de ser qualquer tipo de explicação real e definitiva de como a ciência funciona. Nós devemos manter cautela perante o neorracionalismo de um Wilfrid Sellars, tanto como somos das narrativas saturadas de significado que Brassier tão categoricamente dispensa.

Em qualquer caso, Marx recusa separar os efeitos radicalmente liberatórios implicados no “constante revolucionamento da produção” da produção incessante da vasta miséria humana pelo capitalismo. Ele insiste que os dois efeitos caminham juntos, precisamente porque o desenvolvimento do capitalismo é tumultuado por severas contradições internas. Essas contradições são, primeiro, a razão por que o desenvolvimento capitalista não é benigno e, em segundo lugar, por que o capitalismo não pode jamais ser o nosso horizonte último para a história ou da invenção tecnológica. Particularmente, Marx ressalta a contradição violenta entre as forças produtivas que são liberadas pelo capitalismo, e as relações de produção que organizam essas forças soltas. A discordância entre elas, Marx insiste, deve levar à ruína do capitalismo:

“O monopólio do capital se torna um fardo para o modo de produção em que floresceu ao lado e por debaixo. A centralização dos modos de produção e a socialização do trabalho chegam num ponto que se tornam incompatíveis em suas cascas capitalistas. A casca explode em pedaços, quando toca o sino para a propriedade privada capitalista. Os expropriadores são expropriados.”

Com risco de remoer o óbvio, vou apontar que o diagnóstico de Marx a respeito das doenças do capitalismo tem sido amplamente confirmado pelos eventos subsequentes; ainda que a sua visão do movimento além do capitalismo jamais tenha sucedido. Na sociedade de hoje, neoliberal, globalizada e em rede, o “monopólio do capital” de fato se tornou um “fardo para o modo de produção”. Podemos comprovar isso de muitas maneiras. Programas insanos de austeridade transferem ainda mais riqueza aos já-ricos, mas ao preço de comprometer os padrões de vida (sem mencionar a capacidade de gastar) da população como um todo. A privatização de serviços anteriormente públicos, e a expropriação de recursos anteriormente comuns, terminam por minar as próprias infraestruturas que não deixaram de ser essenciais para a sobrevivência a longo prazo do próprio capitalismo. A “gestão de direitos digitais” e a proteção contra a cópia restringem o fluxo de dados, e amputam a força das próprias tecnologias que o tornou possível em primeiro lugar. A vigilância ubíqua pelas empresas e órgãos de governo, e a consequente consolidação do Big Data, leva à estultificação, precisamente em pontos onde a ideologia dominante pede “flexibilidade” e “criatividade”. O investimento cada vez mais é dirigido na direção de títulos financeiros derivativos e outros instrumentos arcanos que, quanto mais dizem compreender o futuro ao precificar o “risco”, mais se movem para longe de qualquer ancoragem na atividade produtiva real (a curto prazo, bem menos rentável). E, claro, a deterioração ambiental massiva resulta do modo como os gastos energéticos hoje estão escriturados fora dos livros dos empresários, na figura das ditas “externalidades”.

Ainda assim, nenhuma dessas contradições causou o colapso do sistema, ou mesmo ameaçou remotamente a continuidade e expansão de sua reprodução. Em vez disso, o capitalismo tem se perpetuado através de uma série contínua de reajustes. Aproximadamente todos nós, os indivíduos, sofremos as degradações e obstruções; mas o Capital ele próprio não. Apesar do fato que chegamos num ponto onde as relações capitalistas de propriedade se tornaram onerosos “fardos diante do modo de produção”, o mesmo que, inicialmente, as havia posto em movimento; — esse fardo não mostra sinais de ser descarregado. A intensificação das contradições do capitalismo não levou a uma explosão, a nenhuma “negação da negação”. A “casca capitalista” falhou em “explodir em pedaços”; na realidade, ela calcificou como uma carapaça rígida, apertando de maneira sufocante a vida dentro dela.

O aceleracionismo pode ser melhor entendido como uma tentativa de responder a esse dilema. De um lado, nós temos contradições dialéticas massivas que, não obstante, não levam a nenhuma superação, ou à “negação da negação” da maneira que Marx — neste ponto, seguidor demasiado fiel de Hegel — anteviu. Por outro lado, e ao mesmo tempo, o capitalismo realmente existente nos trouxe até o ponto em que — talvez pela primeira vez na história humana desde a invenção da agricultura — tal superação é pelo menos concebível. Com as tecnologias de alcance global, a criação e o uso de uma infraestrutura de comunicação e computação incrivelmente poderosa, a mobilização do general intellect [intelecto geral de massa], e automação maquínica em progresso assombroso, com tudo isso o capitalismo contemporâneo realmente produziu as condições para a afluência universal. No mundo de hoje, já existe riqueza acumulada, e tecnologia suficientemente avançada, para que cada ser humano possa levar uma vida de autocultivação e lazer. Como William Gibson disse numa citação famosa: “o futuro está aqui já — ele só não está equanimamente distribuído”.

Nós não deveríamos subestimar o significado disto. Pelo menos em princípio (senão de fato), nós resolvemos o problema econômico — justo como John Maynard Keynes, escrevendo em 1930, previu que iríamos fazer no período de um século. “Isto significa”, Keynes acrescentou, “que o problema econômico não é — se olhamos ao futuro — o problema permanente da raça humana.” Ao contrário, Keynes previu:

“pela primeira vez desde a criação, o homem irá se deparar com o seu real, seu problema permanente — que é como usar sua liberdade em relação aos cuidados econômicos prementes, como ocupar o lazer, qual ciência e composição de interesses vão vingar para si, para viver sabiamente e prazerosamente e bem.”

O que o esteta Keynes previu como o resultado do capitalismo — assumindo, claro, a “eutanásia do rentista”, que Keynes esperava acontecer gradualmente e sem uma revolução — difere pouco do socialismo imaginado por Charles Fourier ou Oscar Wilde, entre outros. Um e outro viam a afluência universal como uma condição necessária para que os seres humanos possam florescer, cultivando a sua individualidade ou suas paixões. A visão de Keynes não é, sequer, tão distante do comunismo descrito pelo próprio Marx nos seus primeiros escritos: uma sociedade que “torna possível para eu fazer uma coisa hoje e outra amanhã, caçar pela manhã, pescar de tarde, pastorear o gado à noite, escrever críticas depois do jantar, sem nunca me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.”

A visão aparentemente fora de moda (estética do século 19) da autocultivação pode ser ligada não apenas ao último Foucault, como também à inteira questão de tornar-se pós-humano.

Mas é claro, o rentista não desapareceu gradualmente; nem a organização capitalista da produção foi derrubada pela reforma ou pela insurreição revolucionária. Noutras palavras, a dialética hegeliana definitivamente falhou. O real é inquestionavelmente não racional. A dialética hegeliana não é adequada para descrever essa “lógica” irracional, delirante do capital — ainda que o próprio Marx originalmente tenha analisado essa “lógica” com categorias hegelianas. Pelo que as nossas experiências do último século nos ensinaram, quanto pior as contradições internas possam chegar, mais o capitalismo se beneficia e é plenamente empoderado.

Marx escreveu que o “capital é o trabalho morto que, como um vampiro, vive apenas sugando o trabalho vivo, e tanto mais viverá quanto mais trabalho sugar.” Mas, na realidade, o capital é ainda mais monstruoso do que isso. Porque ele é ativamente autocanibal. Ele se alimenta, não apenas do trabalho vivo, mas de si mesmo. Como David Harvey nos lembra, as predições de Marx sobre a “destruição violenta do capital, não por relações a ele externas, mas em vez disso como condição de sua própria autopreservação.” Quando a taxa de lucro declina, aí as vastas conflagrações do valor — em guerras ou crises econômicas — permitem que a acumulação do capital se renove. A lição consiste em que o capitalismo não é nunca desfeito pela ação de suas próprias contradições internas. Na verdade, o capitalismo precisausa essas contradições; ele sucessivamente se regenera por meio das contradições, e realmente não poderia sobreviver sem elas.

Noutras palavras, não podemos esperar negar o capitalismo, porque o capitalismo por si só já mobiliza uma negatividade muito maior do que qualquer coisa que possamos conseguir juntar contra ele. O pequeno segredo sujo do capitalismo é que ele produz abundância, mas igualmente e continuamente converte essa abundância em escassez. Deve fazê-lo, porque não pode suportar a sua própria abundância. De novo e de novo, como Marx e Engels falam no Manifesto, “aí irrompe uma epidemia que, em todas as épocas anteriores, teria parecido um absurdo — a epidemia da superprodução.” A riqueza que o capitalismo realmente produz termina por minar a escassez que permanece sendo a sua raison d´etre. Uma vez a escassez tiver sido superada, nada restará para impulsionar a competição. O imperativo de expandir e intensificar a produção simplesmente se mostra absurdo. Em face da abundância, assim, o capitalismo precisa gerar uma escassez imposta, simplesmente a fim de manter-se vivo. Essa é a virada irracional que Keynes perdeu de vista, devido a sua esperança demasiado racional pela afluência gerada pelo capitalismo. E é por isso que Deleuze e Guattari, — na passagem tão notória e muito citada, que é o texto-Ur do aceleracionismo, — sejam tão urgentes para nós:

“Vamos ainda mais fundo… no movimento do mercado, de descodificação e desterritorialização… Porque talvez os fluxos não estejam suficientemente desterritorializados, descodificados o suficiente, do ponto de vista de uma teoria e prática de caráter altamente esquizofrênico. Não uma retirada do processo, mas um aprofundamento, para acelerar o processo, como Nietzsche coloca: sobre esse assunto, a verdade é que ainda não vimos nada.”

Esta passagem, de fato, tem sido tirada do contexto, e interpretada de um modo muito mais abrangente do que, eu penso, Deleuze e Guattari alguma vez pretenderam. Porque a afirmação só faz sentido à luz do entendimento geral deles, de como a escassez sob o capitalismo “não é nunca primária”, mas em vez disso “é criada, planejada e organizada dentro e através da produção social.” Mais especificamente, eles afirmam que a escassez “é contraproduzida como resultado da pressão da antiprodução” surgida do Capital, como o socius, ou monstruoso “corpo sem órgãos” do ser social.

O ponto mais amplo aqui reside em que a economia política precisa ser entendida antes de qualquer coisa em termos de abundância ao invés de escassez. A economia clássica de Smith e especialmente Ricardo, e depois deles Marx, e revivida no século 20 por Piero Sraffa, estava preocupada com a produção, a distribuição e a despesa social. Esses economistas políticos perguntavam como uma sociedade poderia materialmente reproduzir-se, bem como poderia crescer ao gerar um excedente. E eles estavam, destarte, preocupados com a gestão e a distribuição de tal excedente. Mas a economia neoclássica, desde o final do século 19, e especialmente hoje, tem um conjunto bem diferente de preocupações. Ela lida não com os problemas do excedente, mas da falta. Ela pergunta como indivíduos tomam decisões, considerando que existam recursos limitados. Em vez de constatar que nós, na verdade, temos mais do que usamos, a economia neoclássica insiste que somos atormentados por desejos infinitos num cenário de meios apenas finitos. A economia neoclássica imita o modo com que o capitalismo deva suprimir a abundância que ele mesmo produz, ao sujeitá-la a uma situação de escassez imposta.

Keynes também opõe o argumento a partir da escassez:

“Agora é verdade que as necessidades dos seres humanos possam parecer insaciáveis. Mas elas caem em duas classes – aquelas necessidades que são absolutas, no sentido que nós as sentimos qualquer que seja a situação em que nossos semelhantes possam estar, e aquelas que são relativas no sentido que nós as sentimos apenas se a satisfação delas nos eleva, nos faz sentir superior a nossos semelhantes. As necessidades de segunda classe, aquelas que satisfazem o nosso desejo por superioridade, podem de fato ser insaciáveis; porque quanto maior o nível alcançado, maiores elas serão. Mas isto não é tão verdadeiro nas necessidades absolutas — um ponto de satisfação pode ser logo alcançado, muito mais cedo talvez do que todos nós estejamos conscientes, quando essas necessidades são satisfeitas no sentido que nós preferimos dedicar as nossas energias adicionais a outros propósitos, não-econômicos.”

Isso pode também ser ligado à ideia da autopromoção, em oposição à ideia dos séculos 19 e 20 do desejo infinito.

Na última parte do século 20, as políticas keynesianas foram substituídas pelas neoliberais — precisamente porque as últimas tinham a sua premissa na imposição de uma exigência universal por competição em todos os âmbitos da vida ao redor de bens escassos, como Foucault foi o primeiro a notar. Esta é uma questão ambiental também. Pensando em termos de escassez de recursos, o que significaria dizer que devemos aprender a viver com menos? Ou nós entendemos a destruição da biosfera por nós próprios, ou produziremos extinções em massa etc, como uma espécie de escassez imposta? Em contraste, talvez, à superabundância batailleana e a imitigada dádiva da energia solar? A economia em geral precisa ser desacoplada das ficções do desejo infinito.

Tudo o que disse até aqui sobre as contradições e ir além delas precisa ser entendido em termos de uma das mais controversas doutrinas do marxismo, aquela da taxa decrescente do lucro. Embora Marx se refira a “leis” da economia política capitalista; ele também fala que essas leis são tendenciais. A “lei da queda tendencial da taxa de lucro” (Gesetz des tendenziellen Falls der Profitrate). Existem vários fatores contrários à tendência. A tendência é real em si; ela é parte de uma situação presente. Mas por causa dos fatores contrários, não existe garantia que a tendência vá realmente acontecer.

O que Marx chama de tendência tem algumas similaridades ao que Deleuze chama de virtual. Ambos são plenamente reais, mas sem ser inteiramente atuais. É uma questão de futuridade. A ficção científica articula a futuridade que já existe como um componente virtual do presente. Ela apreende tanto a tecnologia quanto a organização sócio-política-econômica. Dentre todas as suas realizações, o capitalismo neoliberal também nos roubou o futuro. Ele converte tudo num presente eterno. Os valores mais altos são supostamente a novidade, a inovação e a criatividade, e ainda esses sempre se revelam mais do mesmo. O futuro existe somente a fim de ser colonizado, transformado numa oportunidade de investimento. O desconhecimento genuíno do futuro é transformado, por meio do comércio dos títulos financeiros derivativos, num problema de cálculo de riscos. Eu sou assombrado por uma condição que Mark Fisher chama de realismo capitalista, na qual — como Fisher coloca, ressoando Jameson e Zizek — “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Dessa maneira, o aceleracionismo é uma tentativa de responder a um problema da imaginação, não menos do que um problema de economia.

A reconceptualização do capitalismo por Deleuze e Guattari foi usada nos anos 1990 pelo filósofo britânico Nick Land. Land empurra a esquizofrenia desterritorializante de D & G ao máximo, enquanto joga para escanteio a retórica anticapitalista. Em vez dela, Land celebra a desterritorialização absoluta como uma libertação, até o ponto da desintegração total e morte. Ele vê o capital como uma força alienígena que extrapola e rompe o humano; mas ele celebra essa força destrutiva (enquanto marxistas a denunciam, e os defensores do capitalismo negam que seja o caso).

Land oferece uma visão própria da ficção científica para o capitalismo. Mas ele coincide a sua posição com a do capital — alinhando-se contra os seres humanos e qualquer outro tipo de vida orgânica. Isto assume a monstruosidade do capital com os conceitos de corpo sem órgãos ou socius. Mas nós precisamos mesmo, por conseguinte, coincidir com o capital, contra nós mesmos? Land desenvolve um tipo de síndrome de Estocolmo diante do capital. Contraponha isso ao modo como Hardt e Negri tentam retomar a multidão como sendo ela, e não o capital, a verdadeira monstruosidade, o que a ordem vigente sempre tentou reprimir por suas forças perigosas. Mas eles estão errados e Land está certo: é realmente o capital que é excessivo e monstruoso. Claro, não podemos permanecer os mesmos, para lidar com essa monstruosidade. De maneira a sobreviver à monstruosidade do capital, a deixá-lo florescer por debaixo dela ou a despeito dela, precisamos mudar. Aqui é onde nós nos tornamos pós-humanos.

No conto de ficção científica “Phylogenesis”, Paul de Filippo trata diretamente desta situação. A história tem caráter aceleracionista, na maneira com que empurra até o fim a plena monstruosidade do corpo do capital, — e especialmente a catástrofe ecológica que é uma de suas consequências mais importantes. “Phylogenesis” é uma história sobre viver na face da monstruosidade.

A premissa literal de “Phylogenesis” é que uma espécie alienígena de gigantescos “invasores veio à Terra do espaço sem aviso… Na consecução cega de seu ciclo de vida, eles procuram biomassa para ser convertida em mais indivíduos de sua própria espécie.” Como resultado, “a ecosfera é fundamentalmente comprometida, destruída sem chance de reparo”. A predação massiva dos invasores faz da terra uma massa arruinada, barrenta: “o planeta, outrora verde e azul, agora mais parece uma bola branca sem atrativos, exatamente a textura e a composição das [espécies invasoras]” Os seres humanos relutam em se conformar à dura verdade que eles não podem repelir a invasão: “apenas nos últimos dias da praga, quando os remanescentes da humanidade se acotovelam nos poucos refúgios sobrando, algumas pessoas admitiram que o extermínio dos invasores e a retomada do planeta eram impossíveis.” A agenda humana é resetada no último momento possível: com a vitória inalcançável, a pura sobrevivência se torna a única meta remanescente. Na situação de desapossamento geral, não existe mais nenhum meio ambiente capaz de sustentar a humanidade. Faz-se necessário, em vez disso, “adaptar um novo homem às condições alienígenas.”

E assim os “cromosartores” se põem a trabalhar, geneticamente reconstruindo o Homo sapies numa nova espécie. Renascemos como parasitas, vivendo dentro dos próprios corpos dos invasores espaciais. Do lado de fora, o hospedeiro apresenta uma superfície lisa: ele é um “bolo tremendamente glauco”, com uma  pele “parecida a um composto azul-acizentado feito de gordura e plástico”, coberto por um “brilho refletido do Sol relativamente alto”, e moldado como um “ovoide sem detalhes.” O hospedeiro, exatamente como o corpo sem órgãos de Deleuze e Guattari, “apresenta a superfície lisa, escorregadia, opaca, tensionada, como uma membrana de barreira.” Mas debaixo desta superfície, Deleuze e Guattari nos dizem, o corpo sem órgãos “sente que existam larvas e vermes repugnantes… tantas unhas perfurando a carne, e tantas formas de tortura.” Ou, como Di Filippo conta na história, uma inteira ecologia pulula debaixo da “uniformidade polida da grossa pele do hospedeiro.” Sua “estrutura interior” é um “labirinto de células e artérias, nervos e órgãos, tubulações estruturais e prensas…” Um ambiente não-homogêneo de espaços secos e molhados, alguns amontoados com órgãos e condutores pulsantes, alguns que servem de casa para pequenos organismos errantes, outros parecidos com cavernas vazias formadas pela espuma interna.” E é aqui que a espécie humana geneticamente reconstruída estabelece residência.

A maioria dos textos de “Phylogenesis” amavelmente repassa a fisiologia, a psicologia e o inteiro ciclo de vida da nova humanidade parasitária. A bioengenharia é precisa e eficiente. Tudo é otimizado de acordo com a fisiologia e o metabolismo do hospedeiro, no interesse da flexibilidade e adaptação. Qualquer coisa considerada supérflua à sobrevivência é expelida sem sentimentalismos. Os “neo-humanos” acasalam rapidamente, reproduzem em grandes números (em “ninhadas” de cinco ou mais), e amadurecem depressa. Eles podem exibir tanto um comportamento de enxame — ao se juntarem quando necessário para suplantar as defesas do hospedeiro — quanto de distribuição nomádica — “dispersando-se através do interior do alien gargantuano” para reduzir as chances de ser eliminado de uma vez pelos contra-ataques do hospedeiro. Uma vez tenham matado o hospedeiro, entram num período de hibernação no interior de “vesículas protetoras”, de maneira a sobreviver ao vácuo do espaço profundo, até que possam encontrar outro hospedeiro. Desta maneira, eles são capazes de perpetuar tanto seus genes quanto a herança cultural. Já que eles inevitavelmente “têm uma cultura basicamente imaterial”, usam apenas tecnologias leves que tenham sido interiorizadas nos seus próprios corpos. Eles são especialmente bem dotados de “habilidade matemática”, incluindo uma “predisposição geneticamete induzida para resolver funções abstrusas em suas cabeças”. Esteticamente, eles são mestres e amantes da música, “a única forma de arte que sobrou aos neo-humanos livres de artefatos”. A matemática e a música são o único “espólio de 6 mil anos de civilização” que eles herdaram. As vidas dos neo-humanos são curtas e intermitentes: eles são “moscas domésticas, flores que murcham depressa, as criaturas da hora curta. Ainda assim, para eles, suas vidas têm um sabor doce como antigamente.”

Podemos ver a história de Filippo como uma alegoria do realismo capitalista e aceleracionismo. A história se revela uma estratégia brilhante para adaptar-se à monstruosidade catastrófica. Onde “não há alternativa” — quando não mais pareça possível vencer a invasão do monstro, ou mesmo imaginar as coisas de outra maneira — a inversão parasítica de Filippo é o melhor que podemos fazer. Os neo-humanos de “Phylogenesis” escapam da extinção pelas mãos de alienígenas monstruosos, ao dispor uma situação onde a própria sobrevivência dependa absolutamente da continuação das monstruosidades. Os neo-humanos parasitas terminam matando qualquer hospedeiro que invadem; mas sua proliferação contínua é sempre contingente, pois depende do encontro com outro hospedeiro. A extinção dos invasores significaria também a sua própria e definitiva extinção.

Tão longe quanto eu possa ver, Filippo nunca pretendeu que “Phylogenesis” fosse lido como uma alegoria do capital. Ainda assim, os traços estão ali, em cada aspecto da história. A miniaturização dos neo-humanos (os adultos têm “pouco mais de um metro, com membros mais graciosos do que musculares”), a racionalização do seu design em favor da mobilidade e flexibilidade, a sua coordenação espetacular, a sua habilidade de “monitorar a passagem do tempo com precisão suíça, graças a modificações de longa data dos núcleos supraquiasmáticos de seus cérebros, que passaram a fornecer relógios biológicos exatos”, o seu “determinismo embutido” pelo qual as pulsões sexuais são canalizadas “para um propósito particular”, a sua herança cultural severamente alinhada, e os modos com que mesmo as suas atividades não-produtivas (cantar ou sexo não-procriativo) sirvam ao propósito, como “armas supremas no arsenal do espírito dos neo-humanos”: todas essas são variações reconhecíveis de técnicas familiares de gestão do regime pós-fordista contemporâneo de acumulação flexível. Os neo-humanos fazem uso das únicas ferramentas que encontram à disposição; eles parasitam e imitam os mesmos mecanismos que os haviam desapossado.

As vidas emocionais dos neo-humanos são efetivamente alinhadas de um modo pós-fordista. Sentindo um avassalador sentimento de perda, e ciente de todos os modos com que o potencial delas é contido, apesar de tudo essas pessoas concluem que “nós só temos de tirar o máximo da vida que temos.”  Quanto à perspectiva de que os hospedeiros monstruosos possam um dia ir embora, “nós não podemos contar com isso, não podemos nem sonhar a respeito”. Tanto social quanto afetivamente, os neo-humanos de Filippo são, assim, a própria imagem da multidão invocada por Hardt e Negri, e mesmo mais explicitamente por Paolo Virno. Eles exercitam uma criatividade genuína sob circunstâncias extremamente constritas; e eles produzem, e fruem, uma experiência do comum. Mas Filippo reconhece, mais claramente que Virno ou Hardt ou Negri o faça, as limitações de qualquer “mobilização do comum” na nossa situação presente, a da “subsunção real” do trabalho (e de formas de vida, em geral), sob o capitalismo. “Phylogenesis” é uma demonstração do tipo de vitalismo a despeito do capital, mas é essa é também a resiliência que o neoliberalismo demanda, como diz Robin James: “A vida é tenaz, a vida é engenhosa, a vida é mutante, a vida é fecunda”.

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Steven Shaviro é professor da Wayne State University (Detroit)

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