Democracia Destaques Império

Três anos

André Markowicz

Tradução: Felipe Fortes

Não foi em fevereiro de 2022 que o mundo virou de cabeça para baixo, foi em abril, quando começamos a entender que a ajuda dos “aliados” à Ucrânia não tinha o objetivo de ajudá-la a vencer a guerra, mas apenas conter a agressão de Putin — e que seu propósito principal era, acima de tudo, fingir que existia, de modo que a Rússia (“que não se deveria humilhar”) pudesse não entrar em colapso. Em fevereiro, eu estava enganado (e não era o único), porque pensava que a guerra iniciada por Putin se explicava apenas pela crise interna que corroía o país e, portanto, o regime. E que, conforme o padrão das ditaduras, a guerra servia para desviar a atenção e, assim, prolongar sua existência.

A guerra iniciada por Putin tinha outros objetivos (sobre os quais venho falando desde então). Era uma guerra para destruir a democracia no mundo inteiro, não apenas nas fronteiras russas. Eu não imaginava a dimensão do abandono do Ocidente — a extensão de sua fraqueza. Não imaginava o quanto os líderes ocidentais não estavam aptos — despreparados, incapazes, tanto faz — para enfrentar aquilo que, desde o início, aparecia como uma ameaça existencial. A situação em que nos encontramos hoje foi definida entre setembro e outubro de 2022, quando a Ucrânia não conseguiu avançar após o colapso do exército russo, que levou à libertação de Kherson e Sumy (e outros territórios). O Ocidente não foi capaz — ou não quis ser capaz — de fornecer as armas necessárias para repelir os russos ao menos até as fronteiras de 22 de fevereiro, e a ofensiva parou ali, dando a Putin o tempo necessário para se reorganizar. Houve outros episódios calamitosos depois disso (como, durante meses e meses, a espera e o anúncio midiático de uma nova ofensiva ucraniana na primavera seguinte), mas, em outubro–novembro, o dano já estava feito, irreparável.

Depois, vieram os seis meses de ausência dos EUA — que já anunciavam a política de Trump. E, durante esses seis meses, a ausência do aumento da ajuda europeia (lembro-me do medo da “escalada”, repetido em toda parte, e especialmente, de forma desastrosa, em Berlim). Ora, esses seis meses também disseram tudo: mostraram que, para Putin, a guerra não era travada no campo de batalha, apesar das milhares e milhares de mortes, de todas as ruínas e das ofensivas “de carne” lançadas com recursos cada vez mais rudimentares (e, portanto, paradoxalmente sofisticados). A guerra estava na espera por Trump, ou seja, na retirada dos EUA como potência global, pois é disso que se trata.

E, mais uma vez, Putin venceu. Porque, a cada momento, as democracias ocidentais se mostraram incapazes, despreparadas (não sei como dizer) para enfrentar aqueles que não jogam pelas regras estabelecidas (e me pergunto quais são elas). Sempre que os fascistas impuseram uma relação de forças, o Ocidente tentou responder com a razão, com a conciliação, com sabe-se lá o quê. O resultado está aí — inevitável.

Hoje, no entanto, não quero repetir o que venho repetindo há três anos, praticamente dia sim, dia não. Não quero fazer nenhum balanço, nem olhar para trás (embora seja exatamente isso que continuo fazendo, de qualquer maneira). Quero me perguntar o que uma pessoa comum pode fazer — eu e você, caro leitor, cara leitora — diante do que está por vir, sabendo que o que está por vir já se desencadeou e que entramos, com essa guerra e com a eleição de Trump (mas vejam minha crônica intitulada “as três etapas”), em uma nova era, na qual o legado da vitória sobre Hitler já não existe mais. E não direi — mas digo mesmo assim — aos nossos líderes (porque não falo com eles, só falo aqui) que não, a guerra não está perdida e que a União Europeia, enfrentando uma ameaça existencial de ambos os lados ao mesmo tempo, tem os meios financeiros para reagir, congelando os ativos russos que estão em seu território (algo como 200 bilhões de dólares — fico feliz que Raphaël Glucksmann tenha dito o mesmo ontem). Ou seja, esse dinheiro é, por si só, a garantia de que não é indispensável mudar drasticamente nosso modo de vida para aumentar o orçamento militar. Porque, de qualquer forma, mesmo que a UE o faça (e não tenho a impressão de que seus líderes realmente falem sobre isso, mas, enfim, não sei), o impacto no curso da guerra seria imediato. Já o rearmamento levaria anos para fazer diferença, enquanto as coisas estão se decidindo agora, nos próximos meses. Mas, claro, esses “ativos” devem ser tomados, e claro que devem ser usados contra aqueles que os roubaram do povo russo — e, por extensão, contra o povo ucraniano e, potencialmente, todos os demais.

 

O que quero dizer é que o que uma pessoa normal pode fazer é — nada. Que devemos tentar continuar, a partir de agora, a viver como de costume. E que esse “nada” — o fato de continuarmos a ser o que tentamos ser —  já é gigantesco. Não apenas mostrar nossa solidariedade com o povo ucraniano, apesar do cansaço, apesar da maré de apatia ao nosso redor — mas simplesmente continuar. Digamos assim: continuar a olhar, tentar não desviar os olhos. Tentar não esquecer essa guerra, que é, sem dúvida, um genocídio (pensem nos milhares de crianças “dessukranizadas” oficialmente, pensem na doutrina Serguéiev). Isso não significa ignorar o que acontece e acontecerá em Israel e nos “territórios”, mas significa que não devemos olhar apenas para lá (essa foi a principal intenção de 7 de outubro — criar um novo e decisivo foco de ódio interno em todas as sociedades ocidentais). Apenas isso: superar o cansaço (e sei, na minha própria pele, o quanto essa é uma tarefa impossível).

Não, isso, claro, e também outra coisa. O que está em jogo, num horizonte tão próximo que já se faz sentir, é o total mergulho de nossas sociedades no ressentimento, no ódio, na rejeição daquilo que muitas almas bem-intencionadas, aqui e agora, já consideram valores burgueses, senão colonialistas — refiro-me aos “direitos humanos”, que agora são, com razão, chamados de “direitos humanos universais”. Não quero que esses direitos — que são também deveres —  desapareçam no magma comunitário, nas guerras “raciais” ou religiosas. Não acho que uma sociedade democrática deva ser “unida” — pelo contrário. Sociedades unidas são, justamente, as sociedades fascistas, totalitárias. Apenas penso que devemos saber — como dizer? — estabelecer prioridades e graduar nossas lutas de acordo com elas. E tenho a impressão de que o que está em jogo hoje é, sim, em um futuro muito próximo, a própria existência das sociedades democráticas, ou seja, dessas sociedades onde é indiferente para sua vida cotidiana que você seja contra o curso político dos acontecimentos, e onde você tem o direito de proclamar abertamente seu ódio por quem está no poder. Não digo que devemos nos unir, porque nem sei bem o que isso significa. Mas tenho a impressão de que poderíamos ter os meios, sim, de não nos destruir uns aos outros. Apenas prestando atenção ao tom e às palavras que usamos.

Permaneço aqui, continuo, enquanto puder, porque, como disse aquele outro, não posso fazer de outra forma (sabendo que esse “outro”, pessoalmente, me teria enviado tranquilamente para a fogueira, pois sou judeu). Mas, enfim — continuo este diário aberto, esta espécie de testemunho meio cego, escrito dia após dia, sabe-se lá para quê.

 

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