UniNômade

Tropicália política: quatro experiências

Por José Antonio R. Magalhães, para a UniNômade

Ninhos (1970), por Hélio Oiticica

Resenha do livro Hélio Oiticica para além dos mitos, organizado por Bárbara Szaniecki, Giuseppe Cocco e Izabela Pucu. Seminário Internacional no Centro Municipal de Arte Hélio Oitica, de 4-7 de julho de 2016.

Primeira experiência // Metaesquema /// Físicas da física

Ver um metaesquema. Geometria abstrata – quadrados, retângulos, losangos, dispostos sobre um fundo cor de papelão, sugerem relações e não-relações que o olho apenas começa a ver, logo perde; sugere e retira. O nexo figura-fundo é posto em questão, devolvido a uma possibilidade radical de renegociação, fazendo com que atualidade e virtualidade convivam no visível. Todo um repertório – composições, linhas, esquemas, grades – é evocado e desestabilizado a cada vez. Não se trata de formas ou composições formais, mas de quase-formas que se formam e deformam, sem deixar-se compreender formalmente. Se no dispositivo – ou agenciamento concreto –, cujo paradigma em Foucault (1975) é o do panóptico, se tratava de traçar linhas de visibilidade e dizibilidade, determinando as possibilidades sensíveis de ver e de enunciar, estabelecendo um certo esquema de organização das coisas, o metaesquema expõe o diagrama ou máquina abstrata (Deleuze; Guattari, 1980) que, trabalhando no campo das virtualidades, funciona como esquema do esquema, fundando e desconstruindo todas as determinações atuais do visível. Ele mostra o campo das relações de força, das estratégias, que atravessa e determina toda formalização.

Se os metaesquemas são o ponto de partida da obra de Hélio Oiticica – artista em torno do qual circula o livro aqui resenhado –, o momento em que ela adquire sua singularidade, o gesto fundamental que se desdobraria em toda uma série de outros, eles também aparecem no momento em que a ideia de representação já não parecia atrativa para ele. Essa rejeição da representação não se limitará a uma transição à abstração. Trata-se de uma recusa mais profunda, que entende a representação na sua dimensão comunicacional e política, pondo em questão o problema do espetáculo, da participação e, no limite, da democracia (formal-representativa? Participativa? Metaesquemática?). As consequências disso repercutirão para muito além da moldura do quadro – o metaesquema parece anunciar algo ao nível de uma metafísica, esquema múltiplo de físicas da física a partir da qual todo um projeto aberto pode organizar-se e desorganizar-se a cada vez. Esquema de esquemas que, a partir do seu próprio interior, imanentemente, abre e põe em questão todos os esquemas, projetos, programas que se articulam a cada fase da obra de HO.

“Estranha metafísica […] que se ‘ativa’ de dentro pra fora”, escreve Rafael Zacca (2016, p. 207) em sua contribuição para o livro objeto desta resenha. Na medida em que a pintura de Oiticica excede o quadro, surge “a chance de que a cor seja sempre nova” – cor que, já não está dada, mas “se converte em tarefa”. Virtualidades de cor em vez de simples cores atuais; as visibilidades em negociação na medida em que sai-se da representação e adentra-se o espaço da presença/participação. E como a cor, todo o resto: “o desinteresse pelo que está dado” (Zacca, 2016, p. 207) faz-se acompanhar, naturalmente, do “crescente interesse pelas possibilidades”, ou – talvez fosse melhor dizer – das virtualidades. É como se o início abstrato-formal da obra de HO desempenhasse sobretudo a função de abrir “a passagem do mundo das imagens abstrato-conceituais para o do comportamento” (Favareto, 2016, p. 165), da presença, da experimentação corporal e concreta, dos delírios ambulatórios, da participação. Passagem

de querer criar um mundo estético, mundo-arte, superposição de uma estrutura sobre o cotidiano, para descobrir os elementos desse cotidiano, do comportamento humano, e transformá-lo por suas próprias leis, com proposições abertas, não-condicionadas, único meio possível como ponto de partida para isso. (Oiticica, 1986, p. 111)

Começo desenhando esse esquema de esquemas para chamar atenção ao objeto desta resenha como objeto concreto: o livro Hélio Oiticica para além dos mitos, fruto do seminário internacional de mesmo nome, organizado em 2016 por Barbara Szaniecki e Giuseppe Cocco com a colaboração de Izabela Pucu, é todo diagramado em referência aos metaesquemas de HO. Mas é mais que uma referência (o que seria simplesmente questão de representação): é algo que diz de como ler esse livro, de como fazer a experiência desse livro-objeto. Sugestão de que um livro, como um metaesquema, pode ser desorganizado e reorganizado segundo múltiplas linhas, atravessado em diferentes direções e de maneiras que reconfiguram o conjunto das relações no seu interior.

O esquema escolhido pelos organizadores foi segundo “sessões” temáticas: “SESSÃO 1: Seja marginal, seja herói. O mito da marginalidade”; “SESSÃO 2: Tropicália. A pureza é um mito”; “SESSÃO 3: Área aberta ao mito. O mito da criação”; “SESSÃO 4: Museu é o mundo. O mito da instituição”. Aqui, porém, proponho reorganizar a experiência desse livro-objeto segundo outro critério: uma série de quatro experiências do livro, esquematizadas em torno de diferentes séries da obra de HO, ao longo das quais passarei por todas as contribuições ao livro, mas em uma ordem e segundo uma lógica particular, não necessariamente coincidente com aquela sugerida no esquema-índice. A primeira experiência já está em curso e é a do metaesquema; a segunda será a experiência bólide; a seguinte, parangolé; a última, penetrável – isso sem introdução ou conclusão, cuja função, como gêneros textuais, tende a ser de subjugar a experiência a interpretações gerais.

Essas experiências estão permeadas por uma questão que, entre outras, orienta a minha leitura particular desse livro: o que fazer de HO hoje? O que a máquina HO ainda faz? Que maquinações ainda estão em curso às quais HO deu início, que ainda podem ser reativadas em um seminário que propõe rediscutir a sua contribuição à arte, à política, ao pensamento? Como afirma Ricardo Basbaum (2016, p. 224), “não se pode dizer que exista um último Hélio Oiticica”: HO continua. Torna-se indiferente a morte da pessoa na medida em que desloca-se a operatividade da obra para uma coletividade que a atravessa. Para as obras; na forma como elas geram outras obras; na criatividade geral do coletivo. Hélio Oiticica para além dos mitos sem dúvida mostra, de forma muito viva, como a máquina HO continua operando, talvez de modo cada vez mais produtivo, em diferentes esferas, e disponibiliza muitos desses dispositivos para o uso livre do leitor-participador.

Um esquema sugerido: necessidade de recuperação do gesto tropicália em uma chave assumidamente política. Pode-se dizer que a tropicália, à época, foi considerada  como um movimento cultural, estético, até mesmo comportamental de importância, mas que não foi levada a sério no seu aspecto político. A sensibilidade de Caetano Veloso e Gilberto Gil aos acontecimentos de maio de 1968, e à virada que esse acontecimento opera na questão da representação entendida de maneira ampla, que se manifesta no “é proibido proibir” de Caetano e na sua queixa de que a juventude engajada, no Brasil, não estava “entendendo nada”, não é de importância menor que a sensibilidade desses mesmos ao significado dos Beatles na música popular. Ainda assim, até hoje, a tropicália parece ser vista com desconfiança pela esquerda mainstream brasileira, como se a sua ambiguidade política fosse “perigosa” e representasse a ameaça de uma cumplicidade secreta com a direita, com o capitalismo, o neoliberalismo, o imperialismo. Ela é até cultuada à distância, na sua imagem (representação) cultural/estética, mas nunca na sua lógica – tanto é que o próprio Caetano é constantemente desqualificado pela esquerda pela sua ambiguidade política, como se não fosse mais “o verdadeiro Caetano”, sendo que a sua posição política, como a estética, sempre foi essa, sempre recusou-se ao enquadramento nas definições estabelecidas. Minha experiência do livro-metaesquema em pauta, como esta resenha procurará mostrar, é uma que torna extremamente clara a contemporaneidade do gesto político da tropicália, de uma tropicália política ainda por experimentar, em um tempo em que a miséria política atual parece insuperável por uma esquerda que, presa em formas e compartimentações saturadas, não dá sinais de conseguir reinventar-se e ganhar vida.

Outro esquema sugerido: agenciamento HO-Deleuze-Guattari, HO-Negri, HO-Agamben. Muitas das abordagens de HO disponíveis no livro operam aproximações fortes entre o pensamento e a prática do artista e a filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, bem como o pensamento político de Antonio Negri, ou ainda conexões com certas discussões de Giorgio Agamben. Percebe-se que em muitos sentidos HO estava efetivamente “fazendo Deleuze” na prática enquanto Deleuze se fazia em filosofia, experimentando (com) todos os temas da imanência, da diferença, da multiplicidade, do corpo de maneiras talvez mais radicalmente fiéis a essas matérias que qualquer teorização. Nesse sentido, é um agenciamento feliz que esse livro expressa. Ao mesmo tempo, parece preciso cuidar para mergulhar na singularidade de HO e expressá-la sem reduzi-lo ao vocabulário de Deleuze, Guattari ou Negri. O livro por vezes corre esse risco, por outras cria pensamento político e filosófico original a partir de HO – que é o que parece mais interessante.

Segunda experiência // Bólide // Mundo-museu

Manusear um bólide. Segundo o Google, “bólide” é um termo pertencente ao campo da astronomia: meteorito de dimensões apreciáveis que, na forma de um globo inflamado e brilhante, atravessa velozmente a atmosfera terrestre, podendo fazer ruído, deixar rastro luminoso e mesmo explodir. Por analogia, qualquer corpo cujo deslocamento se dá em grande velocidade. Um bólide é um corpo intenso, veloz e radiante. Sua cor não se reduz a uma propriedade abstrata, mas é parte física e dinâmica do objeto, como se este estivesse possuído ou inflamado pela cor. E seu toque queima, afeta, oferece perigo. Suas partes móveis estão disponíveis ao manuseio, de modo que a sua forma, sua materialidade, sua cor não estão dadas: estão abertas a uma experiência participativa. Essa abertura à participação, uma vez sugerida, avança todos os limites: depois do bólide, tudo vira bólide. Nunca mais deixará de se impor, no museu, a pergunta por que não posso tocar? Daí que a socialite Narcisa Tamborindeguy, na sua visita a um estande da Tate Gallery, possa tornar-se a crítica de arte definitiva ao parodiar a censura a ela dirigida: “don’t touch – it’s art!” – hoje os bólides de HO expostos na Tate já não podem ser tocados, e apresentam-se em uma configuração estática das suas partes móveis, para a simples contemplação.

Já fora do museu, na generalidade dos objetos e de seus diferentes valores de uso e de troca, se sugerirá sempre a questão: por que isso não é arte? Qual a diferença da minha experiência pariticpativa do bólide e da minha participação em tantos outros objetos vivos do cotidiano? Falando da sua experiência com o bólide lata-fogo, Oiticica (1986, p. 80) explica que faz-se ali uma espécie de “aproximação geral”, no sentido de que “quem viu a lata-fogo isolada como uma obra não poderá deixar de lembrar que é uma ‘obra’ ao ver, na calada da noite, as outras espalhadas como que sinais cósmicos, simbólicos, pela cidade”. Arte cósmica! Como ressalta a introdução de HO para além dos mitos, os objetos participativos de HO, junto à proclamação de que “o museu é o mundo”, nos levam a dar-nos conta da generalidade da produção artística como produção de gestos e de modos de vida sempre operante e independente de qualquer autoria ou vontade individual. Muitas vezes o gesto (e o gosto) de HO não é mais nem menos que o de apontar a poesia por trás da criação geral e anônima.

Como coloca Giuseppe Cocco (2016, p. 79), o trabalho de HO põe em questão “uma circulação que já é produção” e que se aproxima muito da temática do trabalho imaterial e da produção do comum: “entre redes e ruas, os territórios metropolitanos são atravessados e desenhados por um trabalho que se torna cada vez mais comunicação” (Cocco, 2016, p. 80). Nesse movimento, “a instituição museu hoje aparece ao mesmo tempo obsoleta e nova, ultrapassada e urgente”, na medida em que museu e mundo entram em tensão. Como lembra Paola Berenstein Jacques (2016, p. 148), a percepção da generalidade e abundância da produção estética já se encontrava no Manifesto da Poesia Pau Brasil de Oswald de Andrade: “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e ocre nos verdes da favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos” (Andrade, 2017, p. 21). Com efeito, avançando um pouco no mesmo manifesto, podemos encontrar já ali referência a uma “democratização estética” (Andrade, 2017, p. 23) prefigurativa de toda essa temática: “Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares viraram artistas. Apareceu a máquina fotográfica […] – o artista fotógrafo. Na música, o piano invadiu as saletas nuas […]. Todas as meninas ficaram pianistas”. O que diria Oswald diante da proliferação de dispositivos móveis, aplicativos e redes sociais de todo tipo, que fazem de cada usuário um produtor de conteúdo em múltiplas mídias?

Em seu ensaio, Lisete Lagnado (2016) ressalta o aspecto programático do pensamento/prática de HO, e coloca a questão se não seria possível pensar e praticar o terreno baldio e o ponto de ônibus como museu. Já Frederico Coelho (2016) ressalta que o “momento ético” no trabalho de HO se liga à necessidade de por-se em contato com o marginal (de estar sintonizado com ele, antenado – o que só pode ser feito de um jeito corporal), e não, simplesmente, de defender a sua representação no âmbito de determinadas instituições. Não se trata aqui – “os casebres de açafrão e ocre nos verdes da favela” – de uma romantização da pobreza, mas do reconhecimento de uma certa riqueza da pobreza, que não permite nenhuma condescendência e é – isso sim – desafiadora ao pensamento e à prática. Como explica Celso Favaretto (2016, p. 162) no seu texto, “o interesse de Oiticica por práticas populares não implicava recurso à valorização, dada naquele momento, à cultura popular com ênfase na mitologização das raízes populares” – esse interesse vai além dos mitos.

Nesse ponto, Cíntia Guedes (2017, p. 124) faz uma ressalva importante: “tanto a retórica da ‘descoberta’ quanto da ‘apropriação’ faz parte de um vocabulário que se tornou obsoleto para aqueles atentos aos debates sobre as questões raciais”. Chega-se a um ponto em que o modo de funcionamento da obra de Oiticica, representado de um jeito demasiado estrito, “não é mais suficiente” (Guedes, p. 133) para resolver a questão da relação favela-museu. Hoje talvez já não fosse questão de apropriar-se de um recorte do múltiplo para assim transformá-lo em arte, mas de manter a não-propriedade (a “comunidade” — e aqui se deve ouvir tanto a identidade entre a arte e a corporalidade geral quanto o nome “politicamente correto” das favelas) da produção estética. Já basta que elementos da favela sejam apropriados e trazidos para o museu. Que o museu seja o mundo deve ser interpretado em toda a radicalidade que a fórmula já trazia, de certo modo, na concepção de Oiticica: que a favela, na própria favela, já é o motor artístico e democrático radical, de produção estética e de formas de vida em comum.

Nas palavras de Zacca (2016, p. 209), a radicalização das proposições de HO “exige a socialização dos meios de produção artísticos”, sendo possível que estes “se tornem, gradualmente, mais importantes que as poucas obras que terminemos por deixar” (nós; HO; artistas quaisquer). Mais importante que a obra de Oiticica é o gesto, a sua reprodutibilidade open source”, o seu “creative commonsavant la lettre. “Penso em fábricas geridas pelos trabalhadores”, escreve Zacca, “penso na reforma agrária, na expropriação dos meios de produção, e na sua socialização”. No mesmo sentido, o filósofo Peter Pal Pelbart (2016, p. 235) afirma que “o que realmente está em questão é o modo de produção de novos valores”. Já não se trata, para ele, simplesmente de “mexer nos valores”, “substituir um por outro”, “revirar colocando no alto o que estava embaixo”, mas de “mexer no modo de produção dos valores, na maneira em que eles são criados, investidos, idealizados, reificados, para que a criação de valores reflita uma relação outra com a instância que os produz”.

Em seu ensaio, inserido em uma pesquisa sobre a escrita de cadernos, Ana Kiffer (2016, p. 182) ressalta, entre a importância da correspondência e da “máquina arquivística” posta em funcionamento por HO, a “sensação de que em proveito do projeto a obra foi abortada”, isto é, de que já não é tão importante o conjunto de obras assinadas por Hélio Oiticica quanto um projeto aberto (“propor propor”) que é posto em circulação e abandonado ao uso comum. Nesse sentido, interessa a noção de programa e sua relação possível com a de algoritmo – série de instruções a ser executada em um contexto por determinar. Criação de algoritmos que podem ser executados e editados por diferentes agentes em diferentes situações. Se hoje, como alguns propõem (Cf. Rouvroy, 2016), a governamentalidade é praticada cada vez mais à base de algoritmos – e, de certo modo, isso já estava em Foucault (1982) –, talvez seja em um gesto de devolução dos algoritmos à propriedade e à editabilidade comuns que se possa encontrar uma prática política à altura das questões contemporâneas.

Nesse sentido, levar HO “para além dos mitos” talvez tenha a ver com superar o projeto mítico do “fundar o si mesmo” (Rivera, p. 176) em prol do outro projeto que HO leva em paralelo, aquele de desfundar o si mesmo, renunciar à apropriação, à autoria, em proveito da generalidade produtiva da vida – é possível que HO não tenha se dado conta de como a noção de “apropriação” trabalhava, em certos sentidos decisivos, no sentido contrário da sua proposta. Basbaum (p. 231) fala de “uma pedagogia das vanguardas” ainda a ser ativada a partir da obra de HO – mas isso só pode fazer sentido se a concepção de vanguarda for deslocada consideravelmente (coisa da qual Basbaum tem consciência). Não mais o artista de vanguarda na sua concepção modernista, mas a vanguarda talvez como essa potência criativa comum que se dispõe além de qualquer indivíduo, pessoa, sujeito, autor ou artista.

Daí a crise da noção de museu – que não implica na sua desaparição, mas em um reposicionamento radical do seu problema. Em sua contribuição para o livro, Isabela Pucu (2017, p. 257) busca incluir, através do conceito de crise, da crítica no seio da própria instituição museu. Esse “fazer instituição como crítica” vem na forma, de um lado, do “movimento de saída dos espaços institucionais por parte dos artistas” e, de outro, no “engajamento de artistas e críticos na reelaboraçao de espaços institucionais”. Trata-se ao mesmo tempo de “manipular estrategicamente a força de instituições canônicas” (Pucu, 2016, p. 264) e de uma “produção de institucionalidades minoritárias”, a exemplo do movimento de coletivos de artistas iniciado em meados da década de 1990, baseada em “políticas da amizade e em processos de trabalho colaborativos”. Para Pucu (2016, p. 268), essas práticas “nos ajudam a estruturar não apenas outra ideia de museologia, mas, em última análise, são fundamentais para instituir a sociedade que queremos”. O museu de arte, nesse sentido, se coloca como paradigma para uma democracia que vem ou por vir, a ser pensada a contrapelo da representação em seu sentido amplo – não a partir da representação do povo no poder, mas da plasticidade do poder e sua vulnerabilidade à força do povo, com a inclusão de um conceito de crise que aproxime o máximo possível os conceitos de instituição e de crítica.

Jesús Maria Carrillo Castillo (2016) chama atenção à dificuldade do dispositivo museu de permanecer operante hoje, mesmo dada sua preservação como instituição, e para a relação entre esse processo e movimentos como o dos indignados da Espanha – processo em que a relação entre representação e mediação política e artística se aproximam muito. “Hoje em dia é impossível e impensável reconstruir a identidade dos corpos, a simultaneidade dos tempos e a continuidade dos espaços que se afiguravam de forma idealizada numa visita a uma exposição”, Escreve Castillo (2016, p. 326) – e talvez o mesmo valha para a política e a democracia. Talvez o próximo passo na história das democracias esteja ligado ao reconhecimento de que, com a disseminação dos modos de ser, já não seremos mais parecidos como um dia pensamos ter sido, e que, nessa multiplicidade, as formas de representação e mediação tradicional, calcadas na semelhança, tenham-se tornado insuficientes.

Terceira experiência / Parangolé // Hábito de jeitos

Vestir um parangolé. Os materiais se acoplam ao corpo, mas não em um regime de correspondência ou de adequação como seria o caso das roupas normais. Há sempre uma parte que sobra, uma assimetria, algo pendente, algo que enrosca ou repuxa ou que simplesmente toca, acaricia, que faz cócegas. Cria-se, como ressalta Eduardo Soares (2016, p. 59), um movimento constante de “desestabilização-reestabilização” do corpo e do gesto. Vestir um parangolé “impõe balançar com ele, dançar, mover-se em coreografias inusitadas” – isto é, já não exatamente coreografias. Inusitadas, segue Soares (2016, p. 59), “porque a forma dos parangolés é inusitada, como que a exigir incessantes deslocamentos no espaço para ajustar seu feitio assimétrico ao corpo”. No limite, se o parangolé ainda tem algo de símbolo, esse símbolo já não é o principal, mas “apenas um pretexto para a dança” (Cocco, 2016, p. 89). “O próprio ‘ato de vestir’ a obra”, explica Oiticica (1986, p. 70), em suas “Anotaçoes sobre o parangolé”, “já implica uma transmutação expressivo-corporal do espectador, característica primordial da dança”. A obra deixa de simplesmente “situar-se” no espaço-tempo para ser experimentada como “vivência mágica” (Oiticica, 1986, p. 70) temporal e espacial. O espectador torna-se assim participador naquilo que HO chama uma “vivência total” da obra, e que pode ser entendida como a experiência do gesto na sua imanência, ou seja, como puro meio, em oposição tanto a um meio voltado para um fim quanto a um fim em si mesmo.

Em “Notas sobre o gesto” – interessante correspondência aqui no regime de escrita dos dois textos que proponho cotejar, já que em ambos os casos se trata de notas sobre algo, de um registro de pensamento em processo, mais que de uma sistematização definitiva do pensamento –, Giorgio Agamben (2015, p. 59) fala do caráter gestual da dança como “exibição de uma medialidade”, na medida em que a dança subtrai os gestos do corpo de qualquer relação a finalidades cotidianas, transformando-os não em fins em si mesmos, mas em puros meios que tornam-se visíveis (manifestam-se) enquanto meios. Igualmente para Oiticica (1986, p. 73), a dança “é por excelência a busca do ato expressivo direto; da imanência desse ato”. E ressalta: não a dança de balé ou qualquer tipo de dança coreografada, mas a dança livre, “dionisíaca”, “que nasce do ritmo interior do coletivo”. Nesse sentido, ao convidar o corpo à dança, o dispositivo parangolé atua não para condicionar o gesto a uma determinada função, mas para liberá-lo de qualquer função determinada, devolvendo-o à sua potência criativa.

Nesse sentido, é interessante a ligação que o nome escolhido por HO para esses dispositivos – “parangolé” – faz entre o gesto e a linguagem verbal. “Parangolé” quer dizer conversa fiada (sem valor, sem garantia), sem pé nem cabeça (sem ordem definida de compreensão), que não leva a nada (sem finalidade), de modo que sugere-se que a gestualidade produzida pelo parangolé é uma que se descola de qualquer uso socialmente determinado, de qualquer significação, representação, referência, de qualquer regime  de inteligibilidade. Agamben (2015, p. 60) termina suas “Notas sobre o gesto” associando o gesto, “medialidade pura e sem fim que se comunica aos homens” à gag, isto é, ao mesmo tempo à gagueira, à mordaça que impede a palavra e à “improvisação do ator para suprir um vazio de memória ou uma impossibilidade de falar”. Igualmente já em Deleuze (2016, p. 75) o tema da gagueira aprecia no ponto em que o uso da linguagem se torna criativo: “como ser gago, não gago de palavra, na palavra, numa língua, mas ser gago na linguagem?” Nesse sentido, pode-se dizer que o parangolé permite ao corpo gaguejar – fazer conversa fiada, falar sem dizer nada – na gestualidade geral.

Nesse ponto, parece-me interessante afirmar que o parangolé seja não apenas um dispositivo ligado à produção de gestos, mas de jeitos – propor a noção do parangolé como máquina de jeitos. Embora as duas palavras (gesto e jeito) pareçam ter raízes etimológicas distintas, ambas podem referir-se tanto à forma corpórea através da qual se faz ou se pode fazer alguma coisa quanto à aparência correspondente a essa forma, imagem de um corpo não simplesmente na sua estrutura, mas incluindo-se sua dimensão motora. Basbaum (2016, p. 227) ressalta o forte interesse de HO “pelo aspecto absolutamente exterior do movimento dos corpos”, que, “em contato com as pesquisas da área da comunicação e da indústria cultural”, permite “reconhecer padrões dominantes e repetitivos (próprios da sociedade do espetáculo) que seria necessário evitar, desconstruir”. O interesse, aqui, no uso da palavra “jeito” está ligado à sua singularidade idiomática e às relações que ela viabiliza com o contexto brasileiro, que obviamente era de grande importância no pensamento e na prática de HO – ela incorpora a maioria das funções determinantes da noção de gesto, misturando-as porém com uma série de outras implicações ambíguas e interessantes.

Fernanda Carlos Borges (2006), a partir de leituras de Roberto DaMatta e de sua aluna Lívia Barbosa, que desenvolveram a noção de “jeitinho” no campo da sociologia, procura imprimir no conceito de jeito um caráter propriamente filosófico, aproximando-o de influências como Wilhelm Reich, José Angelo Gaiarsa, Oswald de Andrade, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Ela lembra que “no território da filosofia, diz-se que o filosofar começa a partir de um ‘espanto’ que muda a nossa consciência habitual e nos faz indagar” (Borges, 2006, p. 16) a respeito de algo. A autora sugere pensar-se esse espanto filosófico como uma “desestabilização de padrões de equilíbrio biomecânico do corpo humano, […] padrões de percepção e de ação sistematizados na forma do corpo”. E acrescenta: como uma “sacudida” no corpo. Para a autora, qualquer organização só é possível quando há interação, entendida como “encontro que provoca desordem” (Borges, 2006, p. 50). “Em termos de motricidade”, continua, “é somente quando os ciclos auto-sustentados do equilíbrio são perturbados que a consciência emerge para acertar o que foi desestabilizado, reestruturando […] formas e hábitos”. Para Borges, o jeito pode ser definido como “a capacidade que permite a emersão de uma forma absolutamente nova”, o que, nos termos da autora, equivale a uma “atualização da habilidade”.

Interessa aqui a noção de hábito, que, com sua conotação ao mesmo tempo de vestimenta e de repetição de condutas, atinge no parangolé o ponto máximo da sua própria ambiguidade. Um hábito que, quando vestido, suspende todos os hábitos, libera o corpo dos seus hábitos motores, do seu hábito de hábitos, da roupa gestual que ele tinha que vestir para funcionar socialmente. Nesse sentido, é como se vestir o parangolé fosse desnudar-se de um outro hábito, e assim tornar-se mais nu – e não menos – que antes. Hardt e Negri (2004, p. 197, tradução minha) chamam atenção ao interesse do conceito de hábito, desenvolvido pelo pragmatismo estadunidense, na medida em que ele permite “deslocar as concepções tradicionais da subjetividade da sua localização seja em um plano transcendental, seja em um eu interior profundo”, buscando a subjetividade, ao contrário, “na experiência cotidiana, nas práticas e na conduta”. A noção de hábito interessaria, assim, por ao mesmo tempo situar-se em “um meio-termo entre a lei fixa da natureza e a liberdade de ação subjetiva”, e por ser uma criação social e coletiva, permitindo ao social ganhar consistência a partir de práticas criativas que se fixam pela sua disseminação livre, e que não se situam nem no indivíduo, nem no social, mas em um ponto médio entre os dois. Pensado assim, o próprio conceito de hábito vai desembocando no de jeito.

É na relação com o social, e especificamente com a sociedade brasileira, que a noção do parangolé como máquina de jeitos se mostra mais interessante. A dança como gestualidade imanente liberada pelo parangolé, para Oiticica (1986, p. 73), se liga à “derrubada de preconceitos sociais, das barreiras de grupos, classes, etc.”, ao “desconhecimento de níveis abstratos, de ‘camadas’ sociais”, para a compreensão, em lugar delas, de uma certa totalidade dos corpos. Na sociedade brasileira, em que um ensaio de liberalismo convive com a tradição estamental/hierárquica, essas camadas sociais são estruturadas, como explicou DaMatta (1997), em torno da noção de pessoa, que opera, a partir do jogo de linguagem paradigmático “você sabe com quem está falando?”, para diferenciar níveis sociais e suas prerrogativas. Já a noção de indivíduo, abstração fundamental do liberalismo, opera trocando a singularidade pela igualdade. Em ambos os casos que convivem entre nós – regime liberal-economicista do indivíduo e regime hierárquico-patrimonialista da pessoa –, as roupagens sociais servem para separar o corpo da sua potência criativa enquanto corpo, e para obstar que essa criatividade se dê em um meio que não se reduz nem ao social, nem ao individual.

Com efeito, tanto no indivíduo quanto na pessoa o jeito que está em jogo na experiência do parangolé é cancelado. Ao indivíduo – que não tem corpo – a noção de jeito é absolutamente estranha, como se não houvesse encaixe possível: talvez daí a assertiva de Agamben (2015, p. 51) segundo a qual a burguesia ocidental moderna teria “perdido os seus gestos”. Já para a pessoa, toda a questão do jeito reduz-se às “boas maneiras”, isto é, aos gestos socialmente instituídos e voltados a fins sociais – a pessoa se distingue (se torna uma “pessoa distinta”) através da maneira correta de cumprimentar, de estar à mesa, de portar-se. O jeito do corpo, porém, liberado dos mitos do social, torna-se livre para não dirigir-se a nenhum fim instituído, mas conectar-se a uma produção coletiva e imanente de jeitos de ser.

É o que o parangolé libera como máquina de jeitos. Assim como a situação de jeitinho – Barbosa (1992) explica – não se calca nem na igualdade dos indivíduos perante a norma, nem na prerrogativa de determinadas pessoas para subtrair-se da norma (“você sabe com quem está falando?”), mas em uma combinação entre a ausência de título e a afetividade do corpo presente, o parangolé produz, a partir dessa mesma corporalidade e gestualidade afetiva, um meio em que tanto as estruturas do capitalismo patrimonial quanto as do liberal estão suspensas, e em que se abre uma outra economia das subjetividades. Essas estruturas, escreve Oiticica (1986, p. 74), fazem-se “como que esquemáticas, artificiais”, como se, de repente, víssemos “de uma altura superior o seu mapa, o seu esquema”. Passamos a acompanhar o esquema para além do esquemático, como se nos deslocássemos sobre um metaesquema – e aqui toda uma discussão sobre a distinção entre dispositivo e diagrama, agenciamento concreto e máquina abstrata, atual e virtual seria possível. Abre-se, nas palavras de HO, uma total “falta de lugar social” em que o “ser social” se subtrai de qualquer compartimentação (“elite”) para entregar-se à geleia geral dos corpos que dançam – como no carnaval.

Essa concepção radical da subjetividade (se é que ainda se pode falar propriamente de subjetividade nesse ponto) que o parangolé “propõe propor”, que dificilmente poderia ser expressa em uma formulação propriamente filosófica, aparece de maneira muito interessante no poema concreto/diagrama “IO: EU – INPUT/OUTPUT” com que o poeta André Vallias (2017, p. 200) contribui a HO Para Além dos Mitos: o eu como input/output, como zona de transe e de transa que, ao mesmo tempo que se invagina em si mesma, se abre a um atravessamento (penetração, penetrabilidade) constante, e não se deixa definir por nenhuma generalidade ou representação estática, não se deixa estruturar em termos de dentro e fora, mas como uma garrafa de Klein.

Discutindo a noção de “tropicamp” e a vivência de HO no “underground do underground” nova-iorquino, Gonzalo Aguilar (2016, p. 144) chama atenção ao “cruzamento entre a identidade como performance e o uso de maquiagem e ambivalência sexual como modos de questionamento do poder ditatorial e das normas da sociedade repressora”. O texto de Max Jorge Hinderer Cruz (2016, p. 317), que também descreve em detalhe a fase NY de HO, também fala das práticas camp de “apropriação, humor, desterritorialização de estruturas semióticas e padrões de conhecimento e, sobretudo, a des-essencialização de práticas culturais”. Cruz associa-as, em retrospecto, à antropofagia, mas há aí também uma prefiguração vivencial do queer como concepção/prática da subjetividade a partir da norma e do desvio – em ambos os casos, o que importa é o desvio –, mas há também uma diferença importante. No caso do queer – ao menos na medida em que este é pensado a partir da noção austiniana de performativo, isto é, sempre a partir de uma regra como condição de felicidade de uma determinada performance –, ainda pressupõe-se a regra como ponto de referência, mesmo que enfatize-se a impossibilidade de segui-la perfeitamente. No parangolé, ao contrário, na medida em que libera-se o corpo do seu hábito social para vesti-lo de pura dança, o desvio já não é pensado a partir de qualquer relação com a regra, mas como desvio em si mesmo, em sua pura medialidade/imanência.

Quarta experiência // Penetrável // Pôr o carnaval na praça

Penetrar um penetrável. Exercício de uma ação disponível. Vivência total dos sentidos – a manifestação ambiental da cor. Condensação de lugares reais: é como se o penetrável fosse um mapa, só que agora é possível perder-se no interior de um mapa. Cor, forma, textura dependem de onde a gente está situada; uma consciência definitiva do todo não está ao alcance. Tudo pode ser tocado, mas não tudo ao mesmo tempo e de uma só vez. A experiência é algo que se faz de um determinado jeito. Esse envolvimento na vida – “cair de boca na vida”. “O Teatro Oficina na verdade é um penetrável”, dirá Zé Celso no Youtube. E em algum ponto desse grande labirinto, de um desses labirintos, entre grandes blocos de cor concretos, redes, panos, areia, cascalho e seres vivos, a inscrição: “a pureza é um mito”.

Segundo Luiz Guilherme Vergara (2016, p. 299), o programa ambiental e o parangolé são “retomados” nos penetráveis “como pontos de viradas fenomenológicas e hermenêuticas para uma posição ética, curatorial e pedagógica que celebra o Brasil das utopias ao rés do chão”. Programa ambiental que “é voltado para uma arquitetônica da geografia das ações que simultaneamente invoca a desterritorialização e a reterritorialização dos devires” (Vergara, 2016, p. 291); utopias ao rés do chão que põem em jogo “a formação de um território de sinergias com o compromisso de atualizar pela experiência não literária a metacrítica do contemporâneo”. A utopia pensada e experimentada não como um outro lugar inalcançável, mas como um aqui e agora ao mesmo tempo topológico e extemporâneo em que o presente é suspenso para que outros modos de ser sejam propostos (“propor propor”), para que sirvam de crítica ao atual.

O mito da pureza se dissipa. Nos termos de Walter Benjamin (2011), recuperados depois por Agamben, o tempo progressivo e dialético do mito, em que a violência que funda o direito e o Estado e aquela que os conserva reproduzem-se circularmente, é interrompido por uma experiência qualitativamente diferente do tempo, em que a vida coletiva se torna possível. Politicamente e democraticamente, o que o penetrável torna possível é um espaço de comunidade entre “a gente” que não pressupõe nem o status de indivíduo, nem o de pessoa, mas que, muito pelo contrário, pressupõe o desnudamento desses hábitos sociais. Essa gente que se encontra no penetrável é e não é o povo, no sentido em que Agamben (2015) distingue entre dois sentidos de “povo”: tanto aqueles incluídos no corpo político (indivíduos, pessoas, cidadãos votantes, sujeitos de direito) quanto os pobres – “o povo” no sentido dos excluídos das mesmas estratificações sociais. Suspensos os mitos, esse povo na praça – todo mundo nu – opera uma zona de indistinção entre o dentro e o fora políticos, cria uma “utopia ao rés do chão” em que uma democracia se experimenta:

Hélio instala na praça central da Polis o umbral – o penetrável – que permite a passagem da dimensão corriqueira em que as estruturas sociais brasileiras autoritárias e iníquas comandam a vida para outra dimensão, externa ao cotidiano, na qual o comando sai de cena e todo o espaço é tomado pela experiência estética e existencial da redescoberta de sons e sentidos, ritmos e temporalidades, relações consigo mesmo e com os outros. (Soares, 2016, p. 58)

Esse povo que penetra a praça é, por essência, aquilo que falta a si mesmo, e é por isso que a sua realização coincide com a sua própria abolição (Agamben, 2015). É preciso, em alguma medida, abolir a individualidade e a pessoalidade para que os copos possam colocar-se em relação – é a “intersubjetividade transmutada em intercorporalidade” (Soares, 2016, p. 58) que abre a vivência ético-política. O programa ambiental é isso mesmo: inserção do carnaval na ágora, desnudamento dos indivíduos para fazê-los corpos e, dos corpos, corpo político. Para Oiticica (1986, p.76), a criação desses espaços “livres ao mesmo tempo à participação e à invenção criativa” serve como oportunidade para “uma verdadeira e eficaz experiência com o povo, jogando-o no sentido da participação criativa”. E mais até que uma experiência com o povo: experiência que o povo faz de si mesmo – como outro.

O que está em jogo, nesse paradigma, é a participação e a presença, em oposição à mediação e à representação. A inspiração de HO, nesse ponto, como ressalta Giuseppe Cocco (2016, p. 87) é situacionista, no sentido de que “a antiarte é o único caminho para se fugir da sociedade de consumo e do espetáculo”, ou seja, de uma existência em que a representação e a mediação tornam-se onipresentes e em que a experiência, seja estética, política ou outra, torna-se cada vez mais rara. Como explica Celso Favaretto (163), a expressão “a pureza é um mito” indica um distanciamento em relação ao abstrato-conceitual”. “O que interessa”, continua o autor, “não são os conceitos abstratos, os sujeitos, as instituições, as representações, os sentidos, mas a experiência, o singular, o corpo, o múltiplo”. “Chamarei então, Parangolé”, escreve Oiticica (1986, p. 79), “a todos os princípios […] formulados aqui, inclusive o da não-formulação de conceitos, que é o mais importante”. Essa posição radicalmente anti-representacional, que vai da estética e da política ao nível mesmo da metafísica, isto é, à questão dos conceitos, “poderá ser aqui uma posição totalmente anárquica” (Oiticica, 1986, p. 78), de maneira que “todas as formas fixas e decadentes de governo ou estruturas sociais vigentes entram aqui em conflito”. Ela traça uma linha, inclusive, entre HO e Deleuze, na medida em que para este a criação de conceitos é fundamental. E não se resume, é claro, a uma ideia abstrata, mas relaciona-se a experiências concretas já em curso na sociedade brasileira.

Em uma escala, por assim dizer (mas é uma impropriedade), “individual”, esse programa ambiental anárquico encontra-se, notadamente, na figura do marginal. Estão “justificadas” desse ponto de vista, segundo Oiticica (1986, p. 81), “todas as revoltas contra valores e padrões estabelecidos: desde as mais socialmente organizadas (revoluções, p. ex.) até as mais viscerais e individuais”, tendo estas últimas seu exemplo no “marginal, como é chamado aquele que se revolta, rouba e mata”. Esse tema – “o problema ou a tragédia da incomunicabilidade de uma vida à margem” – encontra-se desenvolvido no texto de Geraldo Silva (2016, p. 46). Traçando um paralelo explícito com Agamben, Silva (2016, p. 48) fala da “produção social contínua de vidas matáveis ou sacrificáveis” como problema brasileiro abordado por HO. Desse ponto de vista, os penetráveis como programa ambiental concretizariam a “recusa a um poder soberano que tenciona transformar nossas cidades em um gigantesco campo habitado pelo Homo Sacer”, aquele corpo humano que “pode ser morto, torturado e/ou desaparecido sem ninguém ter o direito de reclamar”. Se em Oiticica (1986) tais figuras eram encontradas em Cara de Cavalo ou Antônio Conselheiro, em Hélio Oiticica Para Além dos Mitos elas reaparecem na forma de Amarildo, e de todos os Amarildos sobre os quais vimos perguntando CADÊ?

Isso nos leva a uma escala topológica/urbana na qual, igualmente, o paradigma do penetrável tem suas manifestações concretas. Notadamente nas favelas ou, como se convencionou chamá-las, comunidades. Paola Berenstein Jacques (2016, p. 150), em seu texto, explica que, ao “mito urbano da pureza moderna” concretizado por Brasília, Le Corbusier e Niemeyer – essa urbanidade feita para burocratas –, HO opõe a favela com seu caráter simultaneamente pré e pós-moderno, na potência da sua absoluta impureza: mistura anárquica cheia ao mesmo tempo de violência e de cooperação. Já na arquitetura a favela leva ao paroxismo, ou mesmo além dele, o modelo urbano luso-brasileiro do “semeador”, que Sérgio Buarque de Hollanda (2016) opôs ao do “ladrilhador” (observado nas colônias espanholas). A ausência total de planejamento abstrato faz com que seja a contingência de cada momento a determinar o acoplamento infinitamente criativo das estruturas essenciais para morar e viver. A falta de amparo público leva a cooperação entre os indivíduos a níveis absolutamente distintos do que se observa no individualismo liberal ou no personalismo elitista do “asfalto”. Na mesma medida, assim, em que uma vida nua, desprovida de serviços positivos do Estado, e matável pelo mesmo Estado sem consequências jurídicas, é produzida no espaço marginal da favela, uma comunidade se desenvolve ali de um tipo especial, que torna possível uma interação ética e política entre a gente que, nas circunstâncias em que a vida é vestida pelos papéis e classes sociais, fica bloqueada. O paradigma da favela/comunidade, na ambiguidade que já manifesta-se na diferença entre esses dois nomes, deve ser levado muito seriamente, a partir de HO, não só a figura de uma violência imensurável contra a vida, mas também a fonte de uma potência igualmente forte de produção da vida em comum.

Nesse ponto, é importante a ressalva de Soares (2016, p. 60) no sentido de que “o vocabulário da ambivalência e da ambiguidade não basta”, e de que melhor seria falar de complexidade. Para além de todos os mitos brasileiros do indivíduo livre, da pessoa importante, do cidadão de bem, e mesmo das figuras do homem cordial, do malandro ou do marginal nas suas versões mitificadas (sempre descritas como ambíguas mas, ainda assim, inseridas em dualidades que acabam por estabilizá-las), aquilo de que a tropicália fala – e por isso ela opera uma ruptura decisiva na história das tentativas de pensar a singularidade brasileira – é da multiplicidade insondável de jeitos de ser e fazer que a democracia viva está sempre produzindo, e que escapam constantemente a todas as narrativas mitológicas. Recuperar e continuar hoje uma tropicália política implica em atentar, sobretudo, a essa abundância de criatividade e invenção que nunca deixou de trabalhar. Não perdemos a democracia em 2016, não só porque o Estado brasileiro já não podia ser chamado, antes, de democrático, mas porque a democracia viva, que HO nos ajuda a ver na favela, e que nada tem a ver com o Estado, permanece funcionando a todo gás – e talvez nem tenha sentido golpe algum.

Na minha experiência do livro-objeto-metaesquema, é esse o diagrama que se desenha – o de um Brasil violento, infinitamente problemático, mas igualmente rico em potência criativa. Respiro necessário em um debate político que nega constantemente todas as possibilidades positivas, sempre em favor da aceitação do pouquíssimo – seja econômico (“direita”), seja político (“esquerda”). Hélio Oiticica Para Além dos Mitos reinventa, atualiza e disponibiliza uma máquina HO para que a usemos e sigamos usando – do jeito que dermos de usá-la.

 

José Antonio R. Magalhães, doutorando em Direito na PUC-RJ, graduado e mestre em direito, é autor de Direito e violência em Jacques Derrida; seguido de uma leitura das manifestações de junho de 2013. Lumen Iuris: 2017.

 

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófogo e outros textos. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017.

BASBAUM, Ricardo. Hélio Oiticica: Exercícios de autoconstrução de si como artista. In: Hélio Oiticica para além dos mitos. Szaniecki, Barbara; Cocco, Giuseppe; Pucu, Izabela (Orgs.). Rio de Janeiro: R&L Produtores Associados, 2016.

BARBOSA, Lívia. O Jeitinho Brasileiro: A arte de ser mais igual que os outros. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BENJAMIN, Walter. Escritos sobre Mito e Linguagem. São Paulo: Editora 34, 2011.

BORGES, Fernanda Carlos. A Filosofia do Jeito: Um modo brasileiro de pensar com o corpo. São Paulo: Summus, 2006.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

DELEUZE, Gilles. Dois Regimes de Loucos. São Paulo: Editora 34, 2016.

DELEUZE, Gilles; Guattari, Félix. Mille Plateaux: Capitalisme et schizophrénie II. Paris: Minuit, 1980.

FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir. Paris: Gallimard, 1975.

__. The Subject and Power. In: Critical Inquiry, Vol. 8, No. 4. 1982.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multitude: War and democracy in the age of Empire. New York: The Penguin Press, 2004.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil: Edição crítica. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

ROUVROY, Antoinette. The digital regime of truth: from the algorithmic governmentality to a new rule of law. In: La Deleuziana, n. 3. 2016.

X