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2014: o ano que começou antes do carnaval

Por Marcelo Castañeda, sociólogo e UniNômade

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Geralmente diz-se que, no Brasil, o ano começa depois do carnaval. Este ano parece estar contrariando o ditado popular, ao menos no que diz respeito às manifestações. Além disso, parece que a imprevisibilidade dá o tom. As apostas que eu fazia para os protestos neste ano se voltavam para eventos como carnaval (março), Copa do Mundo (junho/julho) e eleições (outubro/novembro). Mas o ano começou agitado entre rolezinhos paulistas, protestos contra a Copa articulados em várias capitais, bem como contra o aumento das passagens de ônibus no Rio de Janeiro.

Indo além de qualquer previsibilidade, o agito deste início de ano contrariou minhas apostas, contando com dois elementos comuns a todos os processos em curso. São praticamente duas constantes que vêm dando as caras desde junho: de um lado, os sites de redes sociais como forma cada vez mais usual de convocação, mobilização e divulgação dos diferentes atos; de outro, a repressão policial, que espalha pânico e terror, seja nos shoppings, nas ruas e até mesmo em saguões de hotel, chegando ao ponto de usar armas letais contra manifestantes, como ocorreu no final de janeiro em São Paulo.

O ano começou com o governo federal investindo ferozmente em uma campanha chamada Vai ter Copa, levatanda contra o grito das ruas que diz o inverso: Não vai ter Copa. O objetivo era abafar o grito cada vez mais recorrente nas ruas e redes, procurando criar um clima ufanista para a realização do megaevento. Pois bem, já em meados de janeiro, os rolezinhos paulistas atravessaram a previsibilidade governamental, mostrando, para quem quisesse ver, a segregação social e racial presentes nos shoppings paulistas e na sociedade brasileira. Convocados pelo Facebook, reunindo milhares de participantes, foram seguidamente dispersados por seguranças e forças policiais em seu direito de flanar e consumir. Não foram poucos os casos de estabelecimentos que fecharam as portas, abrindo mão de faturamento. Boa parte da discussão pública no mês de janeiro foi ocupada pelos rolezinhos, que chegou a ganhar atenção do próprio governo federal.

No final de janeiro, uma articulação de movimentos de várias cidades foi às ruas para protestar contra a realização da Copa do Mundo. Em São Paulo, a polícia reprimiu duramente a manifestação, provocando resistência. Dois fatos foram marcantes: primeiro, a queima de um fusca, explorada largamente pela mídia e por setores governistas como forma de tentar criminalizar os manifestantes, quando várias imagens mostram os manifestantes ajudando os ocupantes do veículo a saírem do carro que pegava fogo; segundo, um jovem que foi alvejado por três tiros enquanto fugia de policiais. A atenção da mídia se voltou com muito mais ênfase para o primeiro fato, mostrando que o pior estaria por vir.

No Rio de Janeiro, do final de janeiro até o momento ocorreram seis atos contra o aumento das passagens de ônibus e trens na cidade. A trágica morte do cinegrafista Santiago, atingido por um rojão durante a quarta manifestação contra o aumento das passagens, em 6 de fevereiro, em um verdadeiro cenário de guerra provocado pelas forças policiais, e em plena Central do Brasil, Centro do Rio, serviu como uma luva para que o poder constituído procurasse conter a multidão cada vez mais articulada e consciente de suas possibilidades para atuar como agente de mudança.

Essa morte lamentável está sendo colocada na conta dos manifestantes, como forma de tentar estancar as manifestações. As mensagens do poder constituído, em especial a partir de seus organismos de mídia, é clara: os manifestantes são assassinos, as manifestações são perigosas. O interessante é notar como os interesses se encontram. De um lado, a Rede Globo de Televisão tenta criminalizar os manifestantes e manifestações; de outro, o Partido dos Trabalhadores acena com a possibilidade de aprovar uma legislação antiterrorismo ou mesmo alterações mais severas do Código Penal. No fundo, tudo pela Copa do Mundo, tudo pelo fim das manifestações.

No entanto, tudo indica que as manifestações não vão cessar, mesmo com todo terror midiático e medidas repressivas do governo federal a partir da morte de um trabalhador no exercício de suas funções. Em 10 de fevereiro, uma manifestação contra o aumento das passagens reuniu cerca de mil pessoas.

Em 13 de fevereiro, outra manifestação contra o aumento das passagens teve pelo menos três mil presenças nas ruas do Centro do Rio, fazendo um longo trajeto entre a Candelária e a Prefeitura, ente responsável pela tarifa dos ônibus. E muita água está rolando junto: atos de desagravo, notas sendo produzidas por diferentes coletivos, reuniões para discutir conjuntura, assembleias, plenárias, aulas públicas — tudo isso faz pensar em um ano que subverte o calendário, começando antes do carnaval dar as caras.

A brecha democrática está aberta. Temos que lutar para mantê-la. Por mais que tentem criminalizar os manifestantes, as indignações são múltiplas e suas manifestações são imprevisíveis. O direito de se manifestar não pode ser cassado sob pena de mutilação da recente democracia brasileira que está se constituindo. O que esse início de ano mostra é que as faíscas de indignação que podem gerar grandes fluxos de pessoas nas ruas e redes, ambas cada vez mais imbricadas, não podem ser previstas de antemão. A grande aposta do poder constituído para este ano é a Copa do Mundo, inclusive em termos de repressão, pois desde o início foi um evento construído de “cima para baixo”. A Copa ainda continua como potencial pauta de protestos, mas eis que a realidade mostra sinais de que a sociedade pode surpreender a qualquer momento com astúcia e alegria. A revolta está à espreita. Que venha o carnaval, que ele traga a alegria que temperará as lutas que virão pela frente.

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