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A cortiça dos impudentes

Por Daniela Lima, escritora, para o dossiê UniNômade sobre as manifestações

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No filme A estratégia da aranha, de Bernardo Bertolucci, um revolucionário planeja a própria morte para servir de símbolo antifascismo. Mas como controlar o uso que se fará da morte de alguém? Sobretudo, quando estamos diante de um pragmatismo político radical, que propõe a utilização de pessoas e fatos. Um mecanismo que se apoia (com razoável sucesso) em dois sentimentos: medo e esperança.

O medo mais evidente é o de perder a vida. Portanto, quando a mídia exibe exaustivamente as imagens de um homem agonizando, repetindo: “poderia ser você”, as cordas do medo são esticadas. Somos movidos, afinal, por um sentimento primitivo de manutenção da vida. Mas contra quem este medo deve ser direcionado, já que os acusados da morte do cinegrafista Santiago Andrade estão presos?

Este é o momento adequado para fabricar um inimigo; dar uma cara para “o responsável pela violência nas manifestações”. Como se numa situação com tantas nuances fosse possível encontrar um único responsável – mesmo (ou principalmente) no campo ideológico. Portanto, esse inimigo vai assumir a face que melhor servir aos interesses do grupo político dominante.

Lendo com atenção o que está circulando na mídia, é possível perceber várias tentativas de delinear o perfil deste inimigo. E a partir desse esboço, já se pode mexer com outro sentimento: a esperança. “Vote em mim e o inimigo será destruído”. Desta forma, as necessidades básicas (saúde, educação, moradia) são deixadas de lado em favor de um revanchismo contra um inimigo fictício.

O medo é a cortina de fumaça ideal para que não se veja o que está acontecendo. Como seria possível diferenciar o rosto do amigo e do inimigo através do medo? Já a esperança, anula qualquer ação política no presente, nos empurrando a esperar pacientemente pelo futuro.

Não sabemos o que é a nova sociedade, a nova justiça, mas conseguimos reconhecer a absoluta injustiça – o intolerável. O intolerável impõe um limite: a partir deste ponto, não podemos mais suportar. Essa sensação promove a mobilidade, a ação política. Quando agimos estamos unicamente no presente e não precisamos nos fixar na esperança de que alguém, um dia, tornará “o mundo melhor”.

E como agir, diante de uma voz unívoca contra um inimigo fictício, senão sendo dissidente?

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